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Processo nº 468/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. Os recorrentes J... e JP..., notificados da decisão sumária, que não conheceu do recurso, por si interposto, ao abrigo ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Maio de 2000, pedindo que se 'aprecie a interpretação feita pelo douto acórdão recorrido das normas processuais penais sobre repartição do ónus da prova, a interpretação feita do disposto no n.º 1 do artigo 308º do Código de Processo Penal e 180º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, interpretação em violação do disposto nos artigos 32º, n.º 2, e 204º da Constituição da República Portuguesa, bem como a interpretação feita do disposto no artigo 180º, n.º 1,
183º, n.º 2, e 31º da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, em violação ao disposto nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 37º e 204º da Constituição da República Portuguesa', vêm dela reclamar para a conferência.
Alegam os reclamante que apenas foram 'confrontados com a interpretação da norma havida por inconstitucional quando lhes foi notificado o acórdão da Relação de Lisboa', pelo que não tiveram oportunidade processual para suscitar a constitucionalidade da mesma. Acrescentam que, tendo a decisão de 1ª instância feito 'uma interpretação da lei com a qual os ora reclamantes se conformaram', no recurso para a Relação, interposto pelo assistente, eles 'apenas poderiam suscitar a questão da inconstitucionalidade por antecipação, isto é, para hipótese do Tribunal da Relação vir a dar provimento ao recurso', o que lhes não era exigível.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal disse:
1º A douta decisão sumária, proferida nos autos, assentou num duplo fundamento: o não terem os recorrentes suscitado, durante o processo – podendo tê-lo feito – qualquer questão de inconstitucionalidade; o não terem as questões suscitadas, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta a natureza de questões de inconstitucionalidade normativa – limitando-se os recorrentes a questionar a constitucionalidade da decisão proferida e deixando de especificar, como lhes cumpria, quais as concretas interpretações normativas que pretendem fazer sindicar para este Tribunal.
2º Limitando-se os recorrentes, na sua reclamação, a questionar o primeiro daqueles fundamentos alternativos para o não conhecimento do recurso, é evidente que a decisão proferida sempre subsistiria incólume com base na inidoneidade do objecto do recurso, que não versa sobre uma verdadeira questão de inconstitucionalidade de normas.
3º É, por outro lado, manifesto que os recorrentes tiveram plena oportunidade processual de suscitar as questões de constitucionalidade que – de forma procedimentalmente inadequada – acabarem por pretender colocar à consideração deste Tribunal.
4º Sendo evidente que, conforme resulta de jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal Constitucional, recai efectivamente sobre as partes – incluindo o recorrido – o ónus de, por antecipação, suscitarem as questões de constitucionalidade que directamente se conexionam com a matéria controvertida.
5º E sendo inegável – como bem demonstra a douta decisão ora reclamada – a existência de estrita conexão e dependência entre o objecto do recurso interposto para a Relação e a matéria das invocadas inconstitucionalidades.
6º Termos em que deverá naturalmente improceder a presente reclamação.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Na decisão sumária, depois de se consignar que 'o acórdão recorrido, concedendo provimento parcial ao recurso interposto pela assistente M..., mandou que o despacho de arquivamento (proferido pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, em 21 de Janeiro de 2000) seja substituído por outro que pronuncie os arguidos (ora recorrentes) pelo crime previsto e punível pelos artigos 180º, n.º 1, e 183º, n.º 2, do Código Penal (crime de difamação cometido através de meio de comunicação social), e 31º da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro
(autoria e comparticipação nos crimes cometidos através da imprensa), pronunciando o arguido JP... (jornalista do jornal ‘Tal & Qual’), como autor, e o arguido J... (director do mesmo jornal), como cúmplice', escreveu-se: Não pode, porém, conhecer-se do recurso, uma vez que se não verificam os respectivos pressupostos. O recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, de facto, que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinadas normas jurídicas (ou de certa dimensão normativa delas) e que, não obstante isso, a decisão recorrida as aplique como suas rationes decidendi. Só em casos de todo anómalos e excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de suscitar, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas ratione constitutionis, é que ele deve ser dispensado do cumprimento desse ónus. Pois bem: no presente caso, são os próprios recorrentes quem diz que o 'recurso
é interposto sem que tenha sido suscitada a questão da inconstitucionalidade durante o processo'. Acrescentam, porém, que tal se deve ao facto de 'não terem tido oportunidade processual' para o fazer. A verdade, porém, é que os recorrentes tiveram oportunidade processual de suscitar a inconstitucionalidade das normas cuja constitucionalidade pretendem agora ver apreciada. Com efeito, a assistente, na motivação do recurso, sustentou, entre o mais, que
'os factos relatados no auto de notícia e respeitantes ao alegado ‘mau feitio’
[...] são ainda difamatórios e injuriosos, como tal puníveis, por força do artigo 180º, nºs 2 e 3' (cf. conclusão 6ª), não sendo admissível a prova da verdade desses factos (cf. conclusão 7ª); e que os depoimentos das testemunhas inquiridas 'não são idóneos para integrar a boa fé por parte do arguido – artigo
180º, n.º 2, alínea b), do Código Penal [...]'. E, na sua resposta, os arguidos disseram que o Juiz recorrido tinha decidido bem, quando os não pronunciou pelos crimes dos artigos 180º e 181º do Código Penal (cf. conclusão 1ª); que 'não se
[lhes] afigura cometido o crime de difamação', uma vez que, 'ainda que se considerasse estarmos perante uma ofensa à ‘honra e consideração’ da recorrente,
[..] sempre a conduta dos recorridos não seria punida, porquanto estaria afastada, porque foi, como se demonstrou, feita para realizar ‘interesses legítimos’ e porque os mesmos provaram, ainda que indiciariamente, serem as imputações verdadeiras' (cf. conclusão 9ª) - 'e, ainda que o não fossem, dada a credibilidade das fontes, sempre o jornalista tinha fundamento sério para as reputar como verdadeiras' (cf. conclusão 10ª); e que 'o jornalista actuou sem qualquer dolo, quer específico [...], quer genérico (no caso do crime previsto e punível no artigo 180º)': cf. conclusão 17ª. Vale isto por dizer que, no recurso, o que, justamente, se discutiu foi, entre o mais, se, na instrução, tinham sido 'recolhidos indícios suficientes' de, através de escrito publicado na imprensa, terem os arguidos (um deles, director de um jornal; o outro, jornalista desse mesmo jornal) praticado factos que, por serem ofensivos da honra e consideração da assistente, são susceptíveis de integrar o crime de difamação, sem ter sido feita prova da verdade da imputação, nem haver 'fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira'. Ora, só disto tratam o artigo 308º do Código de Processo Penal; os artigos 180º, n.º 1, e 183º, n.º 1, do Código Penal e o artigo 31º da Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro; e a alínea b) do n.º 2 daquele artigo 180º. Por isso, tiveram os recorrentes oportunidade de, na resposta então apresentada, suscitar a inconstitucionalidade da interpretação, que veio a ser feita pelo acórdão recorrido, das normas que pretendem ver apreciadas no recurso. O que acaba de dizer-se vale para as 'normas processuais penais', que, embora sem as indicarem, os recorrentes dizem versar 'sobre repartição do ónus da prova': de facto, na referida resposta, disseram eles que, 'como se demonstrou,
[a sua conduta foi] feita para realizar ‘interesses legítimos'’; que 'provaram, ainda que indiciariamente, serem as imputações verdadeiras'; que 'ainda que o não fossem, dada a credibilidade das fontes, sempre o jornalista tinha fundamento sério para as reputar como verdadeiras'; e que 'o jornalista actuou sem qualquer dolo, quer específico [...], quer genérico (no caso do crime previsto e punível no artigo 180º)'. Por conseguinte, na dita resposta, também os recorrentes puderam suscitar a inconstitucionalidade da interpretação, que veio a ser feita pelo acórdão recorrido, das 'normas processuais penais sobre repartição do ónus da prova', sejam elas quais forem. Não sendo caso de dispensar os recorrentes do ónus da suscitação, durante o processo, da inconstitucionalidade das normas, que pretendem ver apreciadas por este Tribunal; e não tendo eles suscitado essa inconstitucionalidade antes de proferido o acórdão de que recorrem; não pode conhecer-se do recurso por eles interposto. Os recorrentes, de resto, falam da 'interpretação feita pelo douto acórdão recorrido' das normas que indicaram, mas não enunciam nenhuma das interpretações que questionam. Tal pode significar que, em direitas contas, o que eles questionam não é, propriamente, a constitucionalidade de uma certa dimensão normativa (um determinado sentido) dos referidos preceitos legais, mas antes a constitucionalidade da conclusão, a que chegou o acórdão recorrido, de que existem indícios suficientes da prática de um crime de difamação, praticado pelos arguidos através da imprensa; e de que se não fez prova da verdade da imputação feita, nem havia 'fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira'. Mas, se for assim, a conclusão a que, então, tem que chegar-se é que os recorrentes não colocam ao Tribunal uma questão de inconstitucionalidade normativa – única para cujo conhecimento ele é competente –, antes lhe pedem que aprecie a constitucionalidade da própria decisão recorrida, considerada em si mesma – o que, obviamente, ele não pode fazer. Se as coisas forem como, por último, se referiu, também o Tribunal não pode conhecer do recurso, mas, agora, por incompetência, atento o objecto que para ele se indica.
4. Suposto mesmo que era caso de dispensar os recorrentes do ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, uma coisa é certa: os recorrentes que, no requerimento de interposição de recurso, falam na
'interpretação feita pelo acórdão recorrido' das normas que indicaram, não enunciam nenhuma das interpretações que questionam – o que levou a que, na decisão sumária, se admitisse que eles não colocam ao Tribunal uma questão de inconstitucionalidade normativa, antes lhe pedem que aprecie a constitucionalidade da própria decisão, considerada em si mesma – continuam a não enunciar a interpretação que, em seu entender, viola a Constituição.
Assim sendo, que mais não seja porque os recorrentes (ora reclamantes) não identificam, em termos processualmente adequados, a norma (recte, a interpretação) que pretendem ver apreciada ratione constitutionis, com o que, mesmo na reclamação, não cumprem a exigência feita pelo artigo 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não pode conhecer-se do recurso. Há, por isso, que indeferir a reclamação apresentada.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação apresentada; e, em consequência, confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso;
(b). condenar os reclamantes nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça
Lisboa, 7 de Novembro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida