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Processo nº 248/97-B Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O reclamante CS vem, pelo requerimento de fls. 2 e 3, 'de harmonia com o preceituado nos artigos 127º e seguintes do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional', deduzir incidente de suspeição.
Alega que 'os autos em questão, designadamente o acórdão nº 323/2000 nos mesmos recém-proferido, são prova inequívoca de violação, mormente, do artigo 234º, 3º parágrafo do Tratado instituinte da Comunidade Económica Europeia – de cumprimento obrigatório para os tribunais supremos -, em detrimento óbvio dos legítimos interesses e direitos do recorrente in casu'. E, em seu entender, 'tal violação de lei, aliás: de norma supra legal, consuma o crime de denegação de justiça e prevaricação de juiz, previsto e punível pelo artigo 269º do Código Penal, pelo colectivo em causa, tendo por isso apresentado já na Procuradoria-Geral da República – através de telefax: vide documento 1 anexo – a competente denúncia'. Acrescenta que 'já o processo principal – o processo nº 248/97, dado por ‘findo’
– é um dos que, designadamente com motivo no acórdão nº 39/2000 nele proferido, o signatário pretende seja examinado pela comissão de inquérito temporária, ao abrigo do artigo 193º do Tratado CE, cuja constituição – conforme se alcançará do anexo documento 2 – peticionou em 25-IV-2000 ao Parlamento Europeu'. Termina dizendo que, 'em vista da devida comprovação do bem fundado quer daquela iniciativa jusprocessual penal quer do presente incidente, outrossim requer, ao abrigo do disposto no nº 1, in fine, do artigo 303º, ex vi do nº 3 do artigo
129º, ambos do Código de Processo Civil, a solicitação da decisão prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias atinente à correcta interpretação do normativo jus-eurocomunitário controvertido no caso, em ordem inclusivamente a saber-se que há, efectivamente, violação pelo colectivo sob suspeição da obrigação de reenvio àquele tribunal supremo europeu da quaestio juris pertinentemente antessuscitadas'.
O relator, por se lhe afigurar que o incidente de suspeição era improcedente, e entender que o reclamante devia ser condenado como litigante de má fé, lançou, nos autos, parecer em conformidade com esse seu entendimento e ordenou que o mesmo fosse ouvido sobre ele.
O reclamante respondeu, juntando a resposta 'recém-dada nos trâmites do Processo nº 490/93-A também desta 2ª Secção', dizendo dá-la por reproduzida na integra. Nessa resposta, depois de perguntar se 'a contra-acusação de ‘litigância de má fé’ (sic.), ao abrigo do disposto no artigo 127º, nº 3, do Código de Processo Civil português, por parte de um tribunal de justiça arguido num incidente processual de suspeição com fundamento em prova indiciária, com a força produzida in casu, é compatível com o direito comunitário consagrado no artigo
6º, nº 2, do Tratado da União Europeia', o reclamante alude a 'uma série de denúncias-crime [por si apresentadas] pelo comprovável cometimento por Juízes do Tribunal Constitucional identificados dos delitos de denegação de justiça e prevaricação e, em concurso real de infidelidade'; a um 'pedido à Presidente do Parlamento Europeu [...] que promova o necessário para que uma comissão de inquérito europarlamentar eventual inspeccione, um número considerável dos processos de constitucionalidade controvertidos in casu'; e a um pedido à mesma Presidente 'para que a aquele areópago supranacional proceda junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, supletivamente ao reenvio prejudicial a que o Tribunal Constitucional de Portugal, flagrantemente faltou na generalidade dos processos controvertidos 'in casu'. E conclui dizendo que 'face ao que antecede, é por demais evidente, se bem se julga, que, à míngua da 'benzina' de Eça, eu cingi-me em todos estes casos a pugnar com dignidade e brio por que todos Juízes do Tribunal Constitucional decidindo nos processos em que sou parte
(sem aspas) sejam irrepreensivelmente competentes e honestos. Aliás, permito-me mesmo – nessa senda – convidar este Alto Tribunal, desde logo na pessoa do Ilustre Relator, a dar uma prova inequívoca da sua boa fé, dirigindo prontamente ao Tribunal da União Europeia, ademais as questões pré-judiciais enunciadas no anexo Doc. A. Depois, sim, poderá não só o Ilustre Relator ter a hombridade de deduzir no foro competente a única acusação ‘in abstracto’ pertinente – a de denúncia caluniosa do recusante, no foro criminal, o que, tanto quanto sei, se escusou a promover -, como também poderá esse Alto Tribunal – quem quer que os seus membros sejam -, se o requerendo acórdão daquele Alto Tribunal europeu lhe for favorável, decidir licitamente sobre o tão ilegitimamente quão estultamente deduzido incidente de 'má fé' ora respondido.
2. Cumpre decidir o incidente de suspeição. E apenas o incidente: desde logo, porque o pedido de reenvio do processo, que o reclamante novamente formula, já foi indeferido pelo acórdão nº 323/2000, tendo-se então esgotado o poder de cognição do Tribunal sobre essa questão, pois a tal não obsta o facto de o reclamante agora dizer que, ao formular o pedido, visa conseguir 'a correcta interpretação do normativo jurídico-eurocomunitário controvertido no caso, em ordem exclusivamente a saber-se que há, efectivamente, violação pelo colectivo sob suspeição da obrigação de reenvio'. E não obsta, porque o fundamento de indeferimento do pedido de reenvio (inexistência neste Tribunal de processo pendente no sentido do artigo 234º, 3º, do Tratado CE) se mantém, seja qual for o fim visado pelo requerente.
II. Fundamentos:
3. No mencionado parecer, o relator, depois de consignar que 'o invocado acórdão nº 323/2000 (de 21 de Junho de 2000) indeferiu, entre o mais, o pedido de reenvio previsto no artigo 234º, 3º período, do Tratado da CE, que o reclamante formulou no traslado, que este Tribunal, pelo acórdão nº 39/2000 (de 29 de Janeiro de 2000), mandou extrair, a fim de, depois de pagas as custas, aí ser julgado um incidente'; e que 'este acórdão nº 39/2000 proferiu-o o Tribunal, depois de ter já tirado anteriormente os seguintes arestos: o acórdão nº 572/97, que indeferiu a reclamação apresentada contra um despacho de indeferimento de inadmissão de recurso; o acórdão nº 542/99, que confirmou um despacho de indeferimento de um requerimento apresentado; o acórdão nº 691/99, que confirmou outro despacho do relator', escreveu: Não cabe, obviamente, ao relator, sim ao Tribunal, decidir o incidente de suspeição (cf. artigo 29º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional). Já, porém, lhe cabe emitir parecer, quando se lhe afigure que o incidente deduzido é improcedente. Na verdade, a improcedência da suspeição, nos termos do nº 3 do artigo 130º do Código de Processo Civil, obriga o Tribunal a apreciar 'se o recusante procedeu de má fé'. Ora, quando ao relator se afigure que alguma das partes deve ser condenada como litigante de má fé, deve ele, por força do que dispõe o nº 7 do artigo 84º da Lei do Tribunal Constitucional, dizer nos autos 'sucintamente a razão do seu parecer', mandando ouvir o interessado por dois dias. Pois bem: as circunstâncias de facto em que o incidente é deduzido convencem o relator de que, com a sua dedução, o reclamante teve por única finalidade conseguir que os juízes deste Tribunal (ou, pelo menos, a sua maioria), fiquem impedidos de intervir nos múltiplos processos em que ele é 'parte' e em que igualmente deduziu idêntico incidente, desse modo colocando o Tribunal na impossibilidade de funcionar. Ora, deduzindo o incidente de suspeição com esse propósito, deve a suspeição ser julgada improcedente, conforme resulta do que preceitua o nº 3 do artigo 127º do Código de Processo Civil, conjugado com o nº
2 e com a alínea c) do nº 1 do mesmo preceito legal. E mais: num tal caso, o recusante, por fazer uso manifestamente reprovável de um meio processual, pois que o utiliza com o objectivo de entorpecer a acção da justiça, deve ser condenado como litigante de má fé [cf. artigo 456º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Civil]. De resto, a litigância de má fé, traduzida num uso manifestamente reprovável dos meios processuais, revela-se ainda no comportamento processual do reclamante, que atrás se deixou sumariamente descrito. Revela-a, desde logo, o facto de ele insistir no pedido de reenvio do processo, não obstante o Tribunal, no acórdão nº 323/2000, ter já indeferido essa pretensão. E isto, depois de haver formulado toda uma série de pretensões que o Tribunal foi desatendendo em sucessivos arestos.
4. As circunstâncias de facto em que o incidente é deduzido são, na verdade, de molde a convencer que o reclamante, ao deduzi-lo, visa unicamente conseguir que os juízes deste Tribunal (ou, pelo menos, a sua maioria) fiquem impedidos de intervir nos múltiplos processos em que ele é 'parte' e em que também deduziu idêntico incidente, desse modo colocando o Tribunal na impossibilidade de funcionar.
Ora, 'quando as circunstâncias de facto convençam de que a acção foi proposta
[...] para se obter motivo de recusa do juiz – dispõe o nº 3 do artigo 127º do Código de Processo Civil – deve a suspeição ser julgada improcedente. E, quando isso aconteça, o Tribunal deve apreciar 'se o recusante procedeu de má fé' (cf. artigo 130º, nº 3, do citado Código).
No caso, dúvidas não restam de que, ao apresentar a queixa crime, assim instaurando uma causa criminal, que é fundamento para se opor a suspeição aos juízes denunciados [cf. o nº 2 do citado artigo 127º, conjugado com a alínea c) do nº 1 do mesmo preceito legal], o que o denunciante (aqui reclamante) unicamente visou foi 'obter motivo de recusa' dos juízes. O comportamento processual do reclamante, insistindo na apresentação de pedidos já julgados e culminando com uma queixa crime, só para ter motivo para opor a suspeição aos juízes consubstancia litigância de má fé, pois representa um uso
(intencional) manifestamente reprovável do processo e dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a acção da justiça (cf. o artigo 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Para se ver que o propósito do reclamante ao deduzir o incidente é impossibilitar o Tribunal de funcionar e entorpecer a acção da justiça, basta historiar o que ocorreu nos autos. Foi o seguinte:
(a). O Tribunal, pelo seu acórdão nº 572/97, indeferiu a reclamação apresentada pelo reclamante contra um despacho que não lhe admitiu um recurso por si interposto para este Tribunal; e condenou-o nas respectivas custas.
(b). Transitado em julgado aquele aresto, foi, em 31 de Outubro de 1997, elaborada a conta de custas, sendo, de seguida, o reclamante avisado para as pagar, o que ele não fez.
(c). O reclamante veio, antes, arguir a inconstitucionalidade das normas dos artigos 18º e 20º, nº 1, do Decreto-Lei nº 149-A/91, de 5 de Abril, e, simultaneamente, arguir 'a nulidade da remessa à conta do processo' neste Tribunal, por violação do artigo 50º do Código das Custas Judiciais.
(d). O relator, por despacho de 2 de Dezembro de 1997, indeferiu o requerimento apresentado. Para tanto, concluiu que aqueles normativos não padecem de inconstitucionalidade e que se não cometeu qualquer nulidade, uma vez que o referido artigo 50º não é aplicável nos recursos de constitucionalidade.
(e). Contra esse despacho do relator foi apresentada reclamação, que o Tribunal indeferiu, mantendo o despacho reclamado, pelo seu acórdão nº 542/99. Neste aresto, foi o reclamante novamente condenado em custas.
(f). De seguida, veio o reclamante pedir a remessa dos autos à Relação, a fim de que, aí, fossem extraídos efeitos da amnistia concedida pela Lei nº 29/99, de 12 de Maio.
(g). Esta pretensão foi, contudo, indeferida pelo relator (despacho de 11 de Novembro de 1999), uma vez que aquela amnistia nenhum efeito útil podia ter sobre o destino da reclamação, que já tinha sido indeferida, com trânsito em julgado, pelo citado acórdão nº 527/97.
(h). Sendo apresentada reclamação contra esse despacho, foi o mesmo confirmado pelo acórdão nº 691/99, que, contrariamente ao solicitado pelo reclamante, não declarou extinto o processo da reclamação, nem ordenou a baixa do mesmo à Relação para aplicação da amnistia; tão-pouco declarou a nulidade das condenações em custas proferidas nos autos; e voltou a condenar o reclamante em custas.
(i). O reclamante apresentou nova reclamação, desta vez invocando o artigo 669º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil e pedindo que se reformasse
'radicalmente – revogar, pura e simplesmente – o ante decidido em matéria de custas nos presentes autos', uma vez que - disse – o Decreto-Lei nº 303/98, de 7 de Outubro é inconstitucional, tal como o são os Decretos-Lei nº 387-A/83, de 5 de Abril, e 72-A/90, de 3 de Março.
(j). O Tribunal, então, considerando que 'o pedido de reforma da decisão quanto a custas' era 'pura reedição de questões já julgadas' e se fundamentava 'na pretensa inconstitucionalidade de diplomas legais que, neste processo, o Tribunal já decidiu não padecerem de tal vício'; sendo 'manifesto que, com aquele pedido de reforma, o que o reclamante pretende é ‘obstar ao cumprimento da decisão proferida [...] na reclamação’ e à consequente ‘baixa do processo’'; mandou, no acórdão nº 39/2000, extrair traslado, a fim de o incidente ser julgado depois de pagas as custas contadas no processo, e ordenou que, uma vez ele extraído, os autos fossem remetidos ao Tribunal da Relação.
(l). É, pois, no traslado que o reclamante apresenta, entretanto, três novos requerimentos: um, o de fls. 34, a pedir a concessão de apoio judiciário; outro, o de fls. 44, a pedir se declare nulo e de nenhum efeito o aviso relativo à conta de custas elaborada nos autos, em 10 de Fevereiro de 2000; outro, o de fls. 46, a pedir o reenvio previsto no artigo 234º, 3º período, do Tratado CE.
(m). É sobre estes requerimentos que incide o despacho reclamado, de 21 de Março de 2000, cujo teor é o seguinte: O Tribunal, por considerar que, com o pedido de reforma da decisão quanto a custas então apresentado, o que o reclamante pretendia era 'obstar ao cumprimento da decisão proferida [...] na reclamação' e à consequente 'baixa do processo', entendeu que havia que observar o que preceituam as disposições conjugadas do art. 720º do CPC e do art. 84º, nº 8, da LTC. E, por isso, no acórdão nº 39/2000, mandou extrair traslado de várias peças do processo, a fim de, uma vez pagas as custas contadas neste processo, se julgar aquele incidente. As custas foram, entretanto, contadas, mas não foram ainda pagas. Ora, enquanto tal pagamento se não verificar, não é possível emitir pronúncia sobre estes novos incidentes.
(n). O Tribunal, pelo citado acórdão nº 323/2000, sem deixar de sublinhar que, sobre as restantes pretensões formuladas no traslado pelo reclamante (pedido de apoio judiciário e declaração de nulidade), tal como já tinha decidido no acórdão nº 39/2000, só poderia pronunciar-se depois de pagas as custas contadas no processo, manteve o despacho reclamado (o despacho de 21 de Março de 2000) e indeferiu o pedido de reenvio do processo, que o reclamante formulara sob invocação do artigo 234º, nº 3, do Tratado CE.
(o). Notificado do acórdão nº 323/2000, vem o reclamante deduzir o presente incidente de suspeição, insistindo, do mesmo passo, na 'solicitação da decisão pré-judicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias atinente à correcta interpretação do normativo jurídico-eurocomunitário controvertido no caso, em ordem exclusivamente a saber-se que há, efectivamente, violação pelo colectivo sob suspeição da obrigação de reenvio àquele tribunal supremo europeu da 'quaestio juris' pertinentemente 'antessuscitada'.
Regista-se que o reclamante, no requerimento em que deduziu o incidente de suspeição, informou que apresentou queixa crime, com fundamento em que, em seu entender, 'os autos em questão, designadamente o acórdão nº 323/2000 nos mesmos recém-proferido, são prova inequívoca de violação, mormente do comando do artigo
234º, 3º parágrafo do Tratado instituinte da Comunidade Económica Europeia'; e que 'tal violação consuma o crime de denegação de justiça e prevaricação de juiz, previsto e punido pelo artigo 369º do Código Penal'.
O incidente de suspeição é, assim, improcedente; e, como tal, deve ser julgado. O reclamante, tendo, como se disse, litigado de má fé, deve ser condenado como tal na correspondente multa [cf. os artigos 456º, nº 1, do Código de Processo Civil, 84º, nº 6, da Lei do Tribunal Constitucional e 102º, alínea a), do Código das Custas Judiciais].
É o que vai fazer-se.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar improcedente o incidente de suspeição;
(b). condenar o reclamante, como litigante de má fé, na multa correspondente a dez unidades de conta de taxa de justiça;
(c). condenar o reclamante nas custas, com dez unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2000 Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa