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Proc. nº 587/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal da Comarca de Santo Tirso, R... intentou contra J... e mulher, RC..., acção com processo sumário pedindo: a resolução do contrato de arrendamento do imóvel identificado nos autos, de que autor e réus eram, respectivamente, senhorio e inquilinos; a condenação dos réus a despejarem o imóvel arrendado; a condenação dos réus a pagarem as rendas vencidas e vincendas até ao efectivo despejo.
No saneador-sentença, o Juiz da Comarca de Santo Tirso julgou a acção procedente, decretando a resolução do contrato de arrendamento e condenando os réus a despejarem de imediato o imóvel arrendado e a pagarem as rendas em dívida até efectiva entrega do prédio.
2. Tendo sido interpostos recursos de agravo e de apelação por J... e mulher, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão, em que negou provimento a tais recursos e confirmou, na parte impugnada, a decisão apelada (acórdão de
13 de Março de 2000, a fls. 9 a 19 vº dos presentes autos).
Disse a Relação do Porto, no mencionado acórdão:
'No caso dos autos, e como decorre do expendido em I antecedente e da factualidade provada que se teve por fixada nos antecedentes nºs 2 e 3, em finais de Abril de 1997 – termo do prazo de contestação da acção – as somas devidas (e que os RR. – apelantes deveriam ter depositado, nos termos do art.
1048º, para operar a caducidade do direito do A. – apelado à resolução do respectivo contrato de arrendamento) correspondem ao somatório da renda vencida em Março de 1996, no montante de Esc. 22.457.50, com a indemnização correspondente a 50% de tal renda e, bem assim, das rendas, subsequentemente vencidas, de Abril de 1996 a Abril de 1997, ambos os meses incluídos. Com efeito, assim tem de ser entendido, atento o exposto em I antecedente, complementado com a constatação de que, mesmo que as rendas de Abril de 1996 a Abril de 1997 fossem do montante mensal de Esc. 22.457.50 – e não o eram, como decorre do nº 2 supra –, ainda assim a indemnização (de 50% das rendas) devida pelos RR. e que foi objecto do depósito efectuado apenas acresceriam Esc.
10.816.00 (Esc. 832.00 – (Esc. 23.289.50-Esc. 22.457.50) x 13 meses). O que sempre seria insuficiente para poder ser tida como paga a aludida renda ainda
[...] não depositada até à data da contestação. Donde resulta que o depósito efectuado pelos RR. não pode ser havido como liberatório, sendo indiferentes e totalmente irrelevantes para a conclusão que acaba de ser tirada quaisquer das vicissitudes ocorridas após o sobredito prazo aludido no art. 1048º e relacionadas com depósitos efectuados pelos RR., e respeitantes à renda do contrato de arrendamento aludido nos autos: a caducidade prevista no art. 1048º só operaria se, até ao termo do prazo da contestação – finais de Abril de 1997 – os RR. tivessem pago ou depositado as «somas devidas» com o sentido que a esta expressão deve ser atribuído, nos termos expendidos em I antecedente. O que, como ficou demonstrado, não fizeram, subsistindo, pois, a invocada causa de resolução do contrato de arrendamento (falta de pagamento da renda, abrangente da total ausência de pagamento e, bem assim, da extemporaneidade da ocorrência deste, nos termos que ficaram assinalados), a determinar a procedência da acção, nos termos sentenciados. Entendimento este que não pode ser afastado com a invocação de qualquer pretensa renúncia do A.-apelado ao direito à resolução do contrato, uma vez que os RR. não lograram provar qualquer manifestação unilateral de vontade do senhorio-A., consubstanciadora da perda voluntária de um direito, em que aquela «renúncia» se traduz [...]. Bem ao contrário, não sendo vedado ao A. receber pagamentos parciais, não se vê bem a que título se lhe poderia exigir que devolvesse mensalmente aos RR. as quantias (insuficientes) que estes iam depositando unilateralmente, na conta bancária, e a que o A. tinha indubitável direito. Aliás, o inconformismo do A. ficou suficientemente evidenciado e traduzido na propositura da presente acção de despejo dentro do prazo de um ano a contar da renda não paga (esta diz respeito a Março de 1996, tendo a acção sido instaurada, em 13.02.97). Improcedem, assim, as correspondentes conclusões formuladas pelos apelantes.'
3. J... e mulher deduziram 'reclamação para a conferência' do acórdão de
13 de Março de 2000, sustentando que o mesmo enferma da nulidade prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, uma vez que não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade material dos artigos 1041º, nº 1, do Código Civil e 58º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano.
Por acórdão de 22 de Maio de 2000 (fls. 20 e seguinte), o Tribunal da Relação do Porto, qualificando a questão em apreço como 'arguição de nulidade' do acórdão anteriormente proferido, desatendeu a reclamação, com o seguinte fundamento:
'[...] impõe-se salientar que, conforme jurisprudência pacífica [...], só se deve tomar conhecimento de questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, uma vez que estas se destinam a resumir, para o tribunal
'ad quem', o âmbito do recurso e seus fundamentos [...]. Ora, os apelantes não suscitaram de modo algum, nos termos que ficaram caracterizados, a sobredita questão, que agora pretendem seja apreciada e decidida em conferência, com suprimento da arguida nulidade reportada ao disposto no art. 668º, nº 1, alínea d), 1ª parte, do CPC. Não havendo, pois, que conhecer de tal questão, não sofre o acórdão de fls. 186 a 196 vº [fls. 9 a 19 vº destes autos de reclamação] da correspondente nulidade, não devendo, por outro lado, este tribunal de recurso pronunciar-se acerca das – só agora – invocadas inconstitucionalidades, uma vez que se mostra já esgotado o respectivo poder jurisdicional, nos termos do disposto nos arts. 666º, nº 1 e
716º, nº 1, ambos do CPC.'
4. J... e mulher vieram então interpor recurso para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 29 a 33 dos presentes autos), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, invocando que:
'[...] o artº 1041º1 do C.C. viola o princípio da proporcionalidade, os princípios do Estado de Direito Democrático e o princípio da igualdade, consagrados nos artºs 2º, 13º1 e 2 e 18º2 da C.R.P.
[...] o artº 58º2 do RAU viola os princípios do Estado de Direito, da igualdade e proporcionalidade e o princípio de acesso ao Direito e aos Tribunais consagrados nos artºs 2º, 13º, 18º2 e 20º1 da C.R.P. Viola ainda o direito fundamental da habitação consagrado no artº 65º da C.R.P.'
5. O Desembargador Relator não admitiu o recurso, por considerar que a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo (despacho de fls. 28).
J... e mulher reclamaram para o Tribunal Constitucional do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82
(requerimento de fls. 2 a 2 vº).
O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação do Porto, manteve 'o despacho reclamado, pelas razões no mesmo exaradas', acrescentando que 'as, ora, arguidas inconstitucionalidades não foram suscitadas durante o processo, mas tão só no que, indevidamente, foi qualificado de «reclamação para a conferência», quando de mera arguição de pretensa nulidade do acórdão se tratava' (despacho de fls. 3 e 3 vº).
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. Constituem pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional:
– que os recorrentes suscitem, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretendem que este Tribunal aprecie;
– que essas normas tenham sido aplicadas na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
E, por força do disposto no artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
7. No caso dos autos, os ora reclamantes não suscitaram de modo processualmente adequado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das normas legais em torno das quais se situava o litígio que os opunha ao senhorio do imóvel de que eram arrendatários.
Não o fizeram, designadamente, nas alegações de recurso de apelação por eles interposto da decisão do Tribunal da Comarca de Santo Tirso para o Tribunal da Relação do Porto (alegações constantes de fls. 22 a 27 vº destes autos).
Só no requerimento apresentado no Tribunal da Relação do Porto, em que, reclamando para a conferência, arguiram a nulidade do acórdão que se pronunciou sobre aquele recurso, os aqui reclamantes se referiram à eventual inconstitucionalidade de certas normas relativas aos efeitos da mora do locatário.
Como resulta de jurisprudência constante deste Tribunal, a arguição de nulidade de uma decisão judicial não é, em regra, momento adequado para suscitar uma questão de inconstitucionalidade, pois que se encontra já esgotado o poder jurisdicional do tribunal em causa relativamente à matéria objecto do litígio – à matéria a que respeita a questão de inconstitucionalidade.
E não configura o caso dos autos uma daquelas situações em que excepcionalmente se justificasse dispensar o recorrente de cumprir o ónus de invocar a inconstitucionalidade durante o processo. Na verdade, como bem refere no seu parecer o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, os reclamantes tiveram 'plena oportunidade processual' para suscitar tal questão, já que a matéria em discussão – que foi objecto do recurso de apelação por eles interposto – se manteve a mesma desde a 1ª instância.
8. Conclui-se assim que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o tipo de recurso que os ora reclamantes pretendiam interpor.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 9 de Novembro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida