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Processo n.º 51/99
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. No presente processo o relator no Tribunal Constitucional elaborou em 16 de Setembro de 1999 a seguinte decisão sumária:
'I. Relatório
1. Sociedade A, S.A. veio, porquanto 'o seu fundamento expresso está claramente em oposição com a decisão', arguir a nulidade do Acórdão tirado em 19 de Novembro de 1997 pelo Pleno da Secção do Supremo Tribunal Administrativo que, por a recorrente não ter apresentado 'qualquer alegação tendente a demonstrar a alegada oposição de julgados, conforme é exigido pelo n.º 3 do artigo 765º do Cód. Civil', julgou deserto o recurso por si interposto do Acórdão de 15 de Novembro de 1995, que negara provimento ao recurso anteriormente intentado do despacho pelo qual foi liminarmente rejeitada a impugnação deduzida contra a coima que lhe fora aplicada pelo Chefe da 2ª Repartição de Finanças do Seixal. Das considerações expendidas para fundamentar a arguida nulidade destacam-se aquelas nas quais a ora recorrente sustenta que
'o Douto Acórdão padece de grave nulidade ao julgar, nos termos do n.º 3 do Artigo 765º do C.P.C., deserto o recurso interposto, por falta de alegações, não obstante reconhecer que tal disposição legal foi revogada.' Acrescentando seguidamente que
'ao recusar-se a conhecer um conflito de jurisprudência, com base numa lei expressamente revogada, o Venerando Pleno da Secção, está, numa atitude claramente inconstitucional, a negar à Recorrente um direito que lhe é constitucionalmente reconhecido que é o direito de acesso ao direito e aos tribunais'. Termina pedindo que seja declarada a nulidade daquele aresto, nos termos do artigo 668º, n.º 1, alínea c) do Código Civil, pois alegadamente 'o Tribunal dispõe de todos os elementos necessários para apreciar o conflito de jurisprudência existente e que fundamentou o recurso interposto'.
2. Não se conformando com o Acórdão proferido em 11 de Novembro de 1998 pelo Pleno da 2ª Secção desse Supremo Tribunal que desatendeu a reclamação por julgar inexistente a arguida nulidade, com fundamento em que 'a decidida deserção do recurso surge como conclusão lógica e necessária da conjugação da falta da alegação da recorrente com a previsão legal desta falta pela norma que se julgou ser aplicável, e sua respectiva sanção', Sociedade A, S.A. interpôs o presente recurso de constitucionalidade, nos termos do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional). Remetendo para o requerimento de arguição de nulidade a recorrente repete o que aí defendera: que 'ao decidir aplicar ao caso dos autos o disposto no expressamente revogado art.º 765º do Código de Processo Civil, o S.T.A. violou o direito da aqui recorrente de acesso ao direito e aos tribunais, consignado no art.º 24º da CRP, bem como aliás violou o disposto no art.º 204º'.
3. Neste Tribunal foi proferido o despacho de aperfeiçoamento previsto nos n.ºs
5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, tendo a recorrente, em resposta, referido que a questão de constitucionalidade fora 'suscitada em requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido em 19.11.97', recortando-a desta forma:
'a aplicação do art.º 765º do CPC, norma expressamente revogada, em conjugação com o disposto no art.º 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e a consequente determinação de um prazo para alegar sob pena do recurso ser julgado deserto, é inconstitucional.' Além disso, pretendeu suscitar uma outra inconstitucionalidade, supostamente implícita no mesmo requerimento de arguição de nulidade: 'a recusa de aplicação
- implícita - do 10º, n.º 2 do Código Civil', concluindo assim:
'Ao recusar-se - embora não o diga expressamente - a aplicar tais normas [as dos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil], aplicando antes uma norma que, embora não esteja em vigor, considera ser aplicável, o Douto Acórdão de que ora se recorre comete uma ilegalidade por violação do art.º 10º, n.º 2 do C. Civil.' II. Fundamentos
4. Dados os termos em que o recurso se encontra formulado, é de proferir decisão sumária ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro). Antes de mais, a 'outra inconstitucionalidade' suscitada na resposta ao despacho de aperfeiçoamento - que acaba por se volver, na parte final dessa resposta, em
'ilegalidade por violação do art.º 10º, n.º 2 do C. Civil', imputada ao Acórdão
- não pode, naturalmente, ser considerada: o único recurso interposto - e é o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que o delimita: cfr., por todos, o Acórdão deste Tribunal n.º 20/97, publicado no Diário da República, II série, de 1 de Março de 1997 - foi-o ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e não, designadamente, ao abrigo da alínea a) deste artigo. E não se preenchem, quanto ao recurso que teria como objecto a apreciação dessa outra inconstitucionalidade, os requisitos do recurso previsto na referida alínea b), desde logo por se invocar, não uma decisão de aplicação de norma tida por inconstitucional, mas sim uma decisão de recusa 'implícita' de aplicação (o que implicaria um recurso ao abrigo das alíneas a) ou c)). O que, só por si, impede de conhecer do recurso nesta parte (sem curar do facto de, mesmo admitindo que tivesse existido uma recusa implícita de aplicação de uma norma da decisão recorrida, ela não ter tido, manifestamente, fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade por violação de lei com valor reforçado).
5. Resta, portanto, a questão da inconstitucionalidade assacada à 'interpretação do art.º 765º do CPC, norma expressamente revogada, em conjugação com o disposto no art.º 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos'. Ora, da leitura do requerimento de arguição de nulidade do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, do de interposição do presente recurso de constitucionalidade e da resposta ao despacho de aperfeiçoamento infere-se que este Tribunal não é confrontado pela recorrente com uma real questão de constitucionalidade de uma norma, mas antes com uma discordância da sociedade recorrente quanto à decisão que considerou essa norma aplicável ao caso concreto. Com efeito, da análise das referidas peças processuais resulta que a recorrente questiona uma (alegadamente) errada determinação do direito aplicável pelo tribunal a quo, ao aplicar 'o disposto no expressamente revogado art.º 765º do Código de Processo Civil'. Da forma como a recorrente suscita a questão depreende-se que pretende pôr em causa que a norma do artigo 765º do Código de Processo Civil de 1967 possa ser aplicável aos recursos de oposição de Acórdãos no âmbito do contencioso administrativo, por remissão da Lei do Contencioso Administrativo para o referido Código. Todavia, a recorrente refere a alegada desconformidade constitucional simplesmente à decisão de aplicação da norma do artigo 765º do Código de Processo Civil de 1967, e não a uma norma - à norma revogatória do artigo 765º, ou, ainda, à própria norma remissiva para o regime do processo civil (o artigo
102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativo) ou a uma determinada interpretação dessa norma remissiva, interpretada no sentido de (contendo uma remissão 'estática') continuar a mandar aplicar tal artigo 765º. Impugnando directamente a constitucionalidade da aplicação da norma do Código de Processo Civil (sem a referir ao correspondente entendimento da norma que ordena a aplicação das normas do processo civil, tornando tal questão de constitucionalidade normativa objecto do presente processo), o que a recorrente faz, no essencial - como se retira aliás das formulações do requerimento de recurso e da resposta ao seu convite de aperfeiçoamento - é imputar a inconstitucionalidade à própria decisão judicial (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 18/96, publicado no Diário da República, II série, de 15 de Maio de 1996, e 154/98, ainda inédito). A recorrente, assim, não traz a este Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa - a desconformidade da norma remissiva que considera o referido artigo
765º ainda aplicável aos recursos por oposição de acórdãos no âmbito do contencioso administrativo (sendo certo que foi esta norma, com tal entendimento, a efectivamente aplicada pela decisão recorrida), ou, sequer, a inconstitucionalidade do artigo 765º do Código de Processo Civil de 1967, em si mesmo (ou de uma sua determinada interpretação). O que impugna é antes a decisão de aplicação deste artigo 765º do Código de Processo Civil, que se baseia, não directamente numa sua interpretação, pois não está em causa um seu particular sentido, mas sim na norma do artigo 102º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos. Está, pois, em causa a interpretação do sentido da remissão contida nesta norma
(no sentido de não ser uma remissão 'dinâmica'). E não, obviamente, do próprio artigo para o qual tal entendimento do referido artigo 102º remete, pois a própria norma objecto de remissão não comporta, em si, qualquer interpretação no sentido de, apesar de revogada, dever continuar a ser aplicável, tal como não comporta qualquer virtualidade aplicativa fora do processo civil independentemente daquela remissão (e, depois da sua revogação, da interpretação do sentido desta remissão, como sendo 'dinâmica' ou 'estática').
6. Ora, ao Tribunal Constitucional não compete formular um juízo sobre a boa ou má determinação do direito infra-constitucional aplicável pelo tribunal de cuja decisão se recorre, pois como se sabe - e logo resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal Constitucional (artigos 280º e 70º, respectivamente, para a fiscalização concreta) – 'no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas' (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821; cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996), 'com exclusão dos actos de outra natureza (actos políticos, actos administrativos, actos judiciais em si mesmos)'
(J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra Editora, 1993, pág. 983).
É que 'o sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade é, tal como vem sublinhando este Tribunal, um sistema de controlo normativo, uma vez que só podem ser objecto de recurso de constitucionalidade as normas jurídicas e não também as decisões judiciais, consideradas em si mesmas' (cfr., inter alia, o Acórdão deste Tribunal n.º 318/93, publicado no Diário da República, II série, de 2 de Outubro de 1993, e os Acórdãos n.ºs 638/93 e
412/94, estes dois inéditos). Na verdade, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de recursos interpostos de decisões dos outros tribunais, que recusem a aplicação de normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que as apliquem não obstante a sua inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo pelo recorrente, sendo que a questão de constitucionalidade a apreciar há-de ser uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, respeitante a uma norma
(ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação). Sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
280º da Constituição (correspondente à mesma alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), necessário se tornava, para que dele se pudesse conhecer, que, além do esgotamento dos recursos ordinários e da aplicação da norma impugnada como critério da decisão recorrida, se tivesse suscitado, durante o processo, uma questão de constitucionalidade de (uma ou mais) norma(s), e não que a recorrente se limitasse a suscitar e a impugnar perante este Tribunal a constitucionalidade da decisão judicial que determinou o direito aplicável. Por esta razão, não pode tomar-se conhecimento do presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decido não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC.'
2. Notificada de tal decisão, a recorrente veio invocar a sua nulidade, nos termos do artigo 668º do Código de Processo Civil, com fundamento em a decisão transcrita não estar assinada pelo relator. Por despacho de 6 de Outubro do corrente ano, este 'declaro[u] assinada a decisão sumária de fls. 164 a 170, que apenas por lapso não foi assinada logo em 16 de Setembro do corrente (contendo tão só a rubrica do relator, com excepção da última página), desta forma suprindo, nos termos da citada disposição legal, a nulidade invocada pelo requerimento de fl. 172.'
3. A recorrente veio então reclamar para a conferência da decisão sumária, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com os fundamentos seguintes:
'1. A aliás douta decisão sumária proferida a fls. 164 a 170, entendeu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo ora reclamante, em virtude de, durante o processo não se ter suscitado uma questão de constitucionalidade de (uma ou mais) norma (s). DA EXPRESSÃO ‘DURANTE O PROCESSO’ CONSTANTE DA ALÍNEA B) DO ARTIGO 70º DA LTC
2. Antes do recurso interposto para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo não seria de todo previsível que aquele alto Tribunal fosse dar a certa norma determinada interpretação, pelo que, a Recorrente não tinha o ónus de suscitar previamente à tomada de decisão, a questão da respectiva inconstitucionalidade.
É, portanto, esta, uma situação excepcional em que a interessada – Reclamante – não dispunha de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes do proferimento da decisão, pelo que deverá ser salvaguardado o recurso de constitucionalidade (cfr. os acórdãos n.ºs 136/85 e
479/89, o primeiro publicado no D.R., II Série, de 28 de Janeiro de 1986, e o segundo no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 389, a pág. 222 e seguintes). A Recorrente-Reclamante suscitou a questão da constitucionalidade na motivação desenvolvida perante o Pleno do STA. A interpretação dada pelo Pleno do STA à norma do artigo 765º do Código de Processo Civil era de todo imprevisível para a recorrente, pelo que havia uma impossibilidade processual de invocação anterior da inconstitucionalidade da norma do referido artigo. Resulta assim, à sociedade, que a inconstitucionalidade de tal norma apenas foi suscitada na motivação desenvolvida perante o Pleno do STA por tal constituir questão que surpreendeu a Recorrente-Reclamante na decisão recorrida. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 765º DO CPC DE 1961 E DO ARTIGO 120º DA LPTA
3. Notificada a Recorrente-Reclamante nos termos do art. 75-A da Lei do Tribunal Constitucional, para indicar quais as normas cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciadas no recurso, veio aquela referir como tais as normas do artigo 765º do Código de Processo Civil de 1961, e do artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na interpretação que lhes foi dada pelo Pleno do STA.
É deste modo notório, que o objecto de recurso de constitucionalidade foram as normas jurídicas acima referidas, e não a decisão judicial, como pretende aliás a douta decisão sumária que ora se reclama. A interpretação dos preceitos legais em causa dada pelo Pleno do STJ, contraria directamente os artigos 20º e 212º da Constituição da República Portuguesa da CRP, violando o acesso da Recorrente-Reclamante ao Direito e aos Tribunais, e violando outrossim, as suas garantias de defesa. Aplicando uma norma revogada – n.º 3 do artigo 765º do CPC de 1961 – e, consequentemente, julgando deserto o recurso interposto por falta de alegações, o Pleno do STJ violou claramente o direito constitucionalmente garantido a todos os cidadãos de recorrer de decisões judiciais. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. 1º, pág. 187, a garantia da via judiciária traduz-se no ‘direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante’. O direito de recurso (de actos jurisdicionais) tem dignidade constitucional
(cfr. alínea b) do n.º 1 do art.º 212º da C.R.P.). E, assim sendo, o legislador ordinário não pode suprimir os tribunais de recurso ou os próprios recursos. Ao legislador ordinário está vedado abolir o sistema de recursos ou afectá-lo substancialmente. Como já se referiu, a aplicação da norma constante do revogado artigo 765º do CPC pelo Pleno do STA, viola directamente o artigo 20º da Lei Fundamental, que consagra o direito de todos os cidadãos ao acesso ao Direito e aos Tribunais, e que por entre o mais, reafirma o princípio geral da Igualdade, entendido como limite objectivo à discricionariedade legislativa. O recurso é uma garantia do cidadão, segundo o que o Tribunal Constitucional tem uniformemente decidido. As garantias dos cidadãos só podem ser restringidas nos casos expressamente previstos na Constituição e devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Sendo certo que a s leis restritivas neste domínio não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo dos preceitos constitucionais (cfr. n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da CRP). Ora, a CRP não prevê expressamente uma restrição ao seguimento do recurso. Pelo que, não podendo a ora Reclamante recorrer por aplicação do artigo 765º do CPC de 1961 em conjugação com o art.º 102º da LPTA, são estes preceitos normativos inconstitucionais.' Em conferência, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. A argumentação da reclamante no sentido da verificação dos requisitos para se tomar conhecimento do recurso nada adianta de novo, que possa abalar os fundamentos da decisão reclamada. Afirma, na verdade, a reclamante, que não seria de todo previsível, antes do recurso interposto para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, que este Tribunal fosse 'dar a certa norma determinada interpretação, pelo que, a Recorrente não tinha o ónus de suscitar previamente à tomada de decisão, a questão da respectiva inconstitucionalidade,' bem como que 'suscitou a questão da constitucionalidade na motivação desenvolvida perante o Pleno do STA'. A própria formulação utilizada denuncia já que esta argumentação passa ao lado do fundamento da decisão reclamada: o que esteve em causa na decisão reclamada foi justamente saber se a recorrente se referiu uma 'certa norma', se suscitou e trouxe à apreciação deste Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa, ou se, como se disse nessa decisão, manifestou discordância quanto à decisão que considerou certa norma aplicável ao caso concreto. Ora, compulsando o requerimento de arguição de nulidade do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, verifica-se que a recorrente frisou que tal aresto 'padece de grave nulidade ao julgar, nos termos do n.º 3 do Artigo 765º do C.P.C., deserto o recurso interposto, por falta de alegações, não obstante reconhecer que tal disposição legal foi revogada', e, quanto à inconstitucionalidade, que 'ao recusar-se a conhecer um conflito de jurisprudência, com base numa lei expressamente revogada, o Venerando Pleno da Secção, está, numa atitude claramente inconstitucional, a negar à Recorrente um direito que lhe é constitucionalmente reconhecido que é o DIREITO DE ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS (art. 24º da Constituição da República Portuguesa)'. Apenas a este passo se pode referir a alegação da reclamante de que 'suscitou a questão da constitucionalidade na motivação desenvolvida perante o Pleno do STA', desde logo, porque essa foi a sua única intervenção perante o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (excluído o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade) após o Acórdão de 19 de Novembro de 1997, que julgou deserto o recurso para o Pleno por oposição de acórdãos, por si interposto do Acórdão de 15 de Novembro de 1995. E, ainda, por não se encontrar em tal requerimento de arguição de nulidade qualquer outra referência à Lei Fundamental. Ora, como é bom de ver, não se encontra aqui – nessa alegada suscitação da inconstitucionalidade 'durante o processo' – qualquer imputação de desconformidade constitucional a uma norma, mas sim a uma decisão judicial. Como, aliás, foi reconhecido pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, que descreveu do seguinte modo, sem referência a qualquer questão de constitucionalidade normativa, a argumentação da então reclamante por nulidade:
'seguidamente alega no sentido de demonstrar que as questões que indicara como tendo sido objecto de julgados opostos deveriam ter sido apreciadas segundo os trâmites dos art.ºs 732º-A e 732º-B do CP Civil, tendo o Pleno, ao não conhecer desse conflito de jurisprudência, negado à recorrente o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artº 24º da Constituição.'
(itálico aditado)
5. Esta conclusão é reforçada pela consulta do requerimento de recurso de constitucionalidade, no qual a recorrente, sem referir o artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, diz que 'ao decidir aplicar ao caso dos autos o disposto do expressamente revogado art.º 765º do Código de Processo Civil, o S.T.A. violou o direito da aqui recorrente de acesso ao direito e aos tribunais, consignado no art.º 24º da CRP, bem como aliás violou o disposto no art.º 204º'. Ou seja, novamente se regista a imputação de inconstitucionalidade, não a uma norma, mas à própria decisão judicial. Nem sequer se assaca a inconstitucionalidade à norma do artigo 765º do Código de Processo Civil, mas à decisão judicial que a aplicou. E o mesmo se pode dizer da resposta ao convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso, no qual, apesar de se fazer já referência à norma do artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, a recorrente continua a dizer que o que é inconstitucional é a 'a aplicação do art.º 765º do CPC, norma expressamente revogada, em conjugação com o disposto no art.º 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos', sem recortar adequadamente, com referência ao citado artigo 102º, a dimensão normativa ou interpretação desta norma que pretendia impugnar enquanto questão de constitucionalidade de uma norma. Pode, pois, dizer-se que não só a reclamante não suscitou durante o processo, como – conforme se disse na decisão reclamada – não trouxe ao Tribunal Constitucional 'uma questão de constitucionalidade normativa – a desconformidade da norma remissiva que considera o referido artigo 765º ainda aplicável aos recursos por oposição de acórdãos no âmbito do contencioso administrativo (sendo certo que foi esta norma, com tal entendimento, a efectivamente aplicada pela decisão recorrida), ou, sequer, a inconstitucionalidade do artigo 765º do Código de Processo Civil de 1967, em si mesmo (ou de uma sua determinada interpretação). O que impugna é antes a decisão de aplicação deste artigo 765º do Código de Processo Civil, que se baseia, não directamente numa sua interpretação, pois não está em causa um seu particular sentido, mas sim na norma do artigo 102º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos.' Aliás – como não deixou igualmente de notar-se na decisão sob reclamação –, a questão de constitucionalidade normativa cuja solução conduz à aplicação das disposições do Código de Processo Civil em causa (em particular o artigo 765º) ao recurso por oposição de acórdãos perante o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo não diz respeito a estas próprias disposições, mas à
'interpretação do sentido da remissão' contida no artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, no sentido de não ser uma remissão
'dinâmica'. Isto é, tal questão ancora-se, não nas próprias normas para as quais se remete, mas na norma remissiva, dizendo respeito ao entendimento desta remissão 'dinâmica' ou 'estática'. Isto porque, como também se salientou, aquelas normas objecto de remissão não comportam em si qualquer interpretação no sentido de, apesar de revogadas, deverem continuar a ser aplicáveis, tal como, aliás, não contêm 'qualquer virtualidade aplicativa, fora do processo civil, independentemente daquela remissão (e, depois da sua revogação, da interpretação do sentido desta remissão, como sendo ‘dinâmica’ ou ‘estática’)'.
6. Em face do teor do requerimento de recurso e da resposta ao respectivo convite de aperfeiçoamento não pode, pois, concluir-se que a recorrente tenha impugnado a constitucionalidade de certas normas, tendo antes discordado, por razões de constitucionalidade, da decisão judicial de aplicação de certas normas
– o que é bem diferente, e relevante, desde logo por, como se sabe, o nosso sistema de fiscalização concentrada de constitucionalidade apenas permitir o recurso para o Tribunal Constitucional para apreciar a constitucionalidade de normas, e não de actos concretos – decisões judiciais ou administrativas – que as apliquem. Acresce que, como se viu, a recorrente também não suscitou durante o processo uma questão de constitucionalidade normativa – como devia, para se poderem considerar preenchidos os requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. A este respeito, não pode aceitar-se a alegação da ora reclamante de que a aplicação das normas em causa 'era de todo imprevisível para a recorrente, pelo que havia uma impossibilidade processual de invocação anterior da inconstitucionalidade da norma '. Assim, durante a arguição de nulidade do Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Novembro de 1997 a recorrente não suscitou, como se viu, uma inconstitucionalidade normativa (mas sim da decisão judicial). Ou seja: nem mesmo depois de julgado deserto o recurso com fundamento no artigo
765º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, a recorrente suscitou a inconstitucionalidade desta última norma (ou de normas) na interpretação segundo a qual contém uma remissão 'dinâmica', antes se limitando a referir uma inconstitucionalidade da decisão judicial (e, designadamente, não suscitando então – tal como não individualizou depois – a desconformidade constitucional do artigo 102º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais). Não pode, pois, dizer-se que a ora reclamante tenha suscitado durante o processo uma questão de constitucionalidade normativa. Tal como, conforme se disse, não individualizou adequadamente a apreciação de uma tal questão – de desconformidade constitucional de normas, repete-se – como objecto do recurso que pretendeu trazer a este Tribunal. Há, pois, que desatender a presente reclamação e confirmar a decisão reclamada. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide desatender a presente reclamação, confirmar a decisão sumária reclamada e condenar a reclamante em custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 24 de Novembro de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida