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Processo nº 357/00
3ª Secção Messias Bento
(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza)
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... foi condenado, por acórdão da 6ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, de
4 de Agosto de 1999, na pena única de 7 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas correspondentes a 10 crimes de falsificação [artigo 256º, nº
1, alínea a), e n.º 3, do Código Penal], 8 crimes de burla qualificada (artigos
217º, nº 1, e 218º, nº 1) e 1 crime de burla simples (artigo 217º, nº 1). Tendo o arguido interposto recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 13 de Abril de 2000, veio julgá-lo parcialmente procedente. Assim, este Tribunal declarou extinto o procedimento criminal relativo a 3 dos crimes de burla, e absolveu o arguido de 1 crime de burla qualificada e de 1 crime de falsificação de documento, tendo confirmado o acórdão recorrido na parte relativa 'às demais penas parcelares em que este arguido foi condenado' (9 crimes de falsificação de documento e 5 crimes de burla qualificada). Em resultado do novo cúmulo jurídico realizado, veio o recorrente a ser condenado na pena única de 6 anos de prisão.
2. Recorreu, então, o arguido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, visando 'a apreciação da constitucionalidade da primeira parte da norma do artigo 256º, nº 3, do Código Penal em conjugação com o nº 1 do mesmo artigo e a definição de documento dada pela alínea a) do artigo 255º e artigo 1º, nº 3, do mesmo diploma, por violação dos artigos 29º, nºs 1, 3 e 4, e alínea c) do artigo
165º da Constituição da República Portuguesa'.
O RECORRENTE concluiu como segue as alegações que apresentou neste Tribunal: I. O acórdão recorrido condenou o ora recorrente nos termos do artigo 256º, n.º
1, a), e n.º 3 do Código Penal, interpretando que a alteração e a substituição das chapas de matrícula dos veículos automóveis está prevista e é punida pelo nº
3 do artigo e diploma referido, em virtude de aqueles elementos dizerem respeito a documento autêntico ou com igual força. II. O Tribunal 'a quo' decidiu a presente questão na esteira do Assento de
5-11-98 – DR 1ª Série de 22-12-98, segundo o qual, 'na vigência do Cód. Penal de
1982, a alteração dolosa da chapa de matrícula consubstancia um crime de falsificação de documento p. e p. pelo seu art. 228º nºs 1 al. a e 2'. III. Na verdade o acórdão recorrido aplicou a norma do artigo 256º, n.º 3, do Código Penal na medida e com os mesmos fundamentos em que a aplicou e interpretou o citado Assento nº 3/98, mormente este ter sido aplicado na vigência do Código Penal de 1982. IV. No entanto somos do entendimento que só pode considerar-se como documento autêntico ou com 'igual força' o que a lei define como tal, o que não é manifestamente o caso da chapa de matrícula, caso contrário estar-se-ia a fazer uma interpretação que vai além do sentido possível das palavras, e de conceitos legalmente pré definidos (cfr. artigo 9º, n.º 2, do Código Civil) sendo incompatível, entre outros, com o fundamento de segurança jurídica dos cidadãos. V. Donde a norma do artigo 256º, n.º 3, do Código Penal e a interpretação acolhida pelo douto acórdão recorrido, é inconstitucional por violação dos nºs
1, 3 e 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa e artigo 165º, n.º 1, c), da mesma Lei Fundamental. VI. A interpretação dada à norma do artigo 256º, n.º 3, pelo Assento citado e perfilhada no acórdão recorrido, verificamos que o mesmo não recorreu à lei para definir 'documento autêntico ou com igual força'; então temos uma inconstitucionalidade numa dupla vertente; uma normativa, pois exige-se do legislador um especial cuidado na construção dos tipos penais e outra interpretativa, a operada pelo julgador. VII. Inconstitucionalidade numa vertente normativa, pois os tipos de crimes pelas consequências que a sua prática acarreta, devem estar definidos na lei, com um suficiente grau de determinação dos seus pressupostos, em atenção aos princípios da legalidade democrática e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais inerentes a um Estado de Direito Democrático; VIII. Numa vertente interpretativa, a equiparação de chapa de matrícula à expressão 'documento com igual força' à de documento autêntico exarada no nº 3 do artigo 256º operada pelo acórdão recorrido apoiando-se no Assento nº 3/98 supra referido, é materialmente inconstitucional em face dos artigos 29º, nº 1,
3 e 4, da Constituição e artigo 1º, n.º 3, do Código Penal, IX. Pois, independentemente do processo interpretativo utilizado pelo julgador, o certo é que, na ausência de 'pressupostos' que estejam 'expressamente' cominados na Lei, 'no momento da correspondente conduta', este
'criou/regulamentou' um tipo legal de crime, faceta esta que incumbe exclusivamente ao legislador alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa; X. Ao retirar-se daquele preceito uma dimensão normativa igual à do artigo 228º, n.º 2, do Código Penal de 1982 e, em ambas, afastando-se da noção legal civilista de 'documento autêntico ou com igual força', não indicando qualquer dispositivo legal que os defina, não constante explicitamente do seu elemento literal, estar-se-á a preencher uma lacuna de regulamentação. XI. Assim e também em conformidade com o sentido do que é 'expresso' referido no nº 3 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, não caber ao intérprete ou aplicador do direito aplicar normas penais com base em critérios por si formulados. XII. Com a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, nem sequer é possível ao próprio legislador, (sem ofender a Constituição), estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resulta da interpretação ou integração (inconstitucional) da lei realizada pelo tribunal 'a quo', pois equiparando a alteração dolosa da chapa de matrícula a documento autêntico ou com igual força, teria sempre o legislador que definir, primeiramente,
'documento autêntico ou com igual força' para efeitos penais, ou, independentemente da definição supra, expressamente tipificar como crime agravado a falsificação dos elementos identificativos dos veículos...'.
Nas suas alegações, o MINISTÉRIO PÚBLICO começou por afirmar não existir, nem fundamento para imputar à norma penal qualquer inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, nem qualquer questão perspectivável como de aplicação retroactiva da lei. No que toca à invocada inconstitucionalidade da interpretação realizada pelas instâncias, o Ministério Público entendeu que tal questão não poderia integrar o objecto do recurso, afirmando: O Tribunal Constitucional já definiu, em termos de clara maioria, nomeadamente no Acórdão nº 674/99 – aderindo à tese recentemente sustentada por Rui Medeiros
– que 'hipóteses em que se questionam certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal – ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal – não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento' – naturalmente insindicáveis num sistema que comete ao Tribunal Constitucional, não a apreciação e julgamento de um 'recurso de amparo', mas de estritas questões de inconstitucionalidade de 'normas'.
(...) Só que – pelas razões constantes do dito aresto, para cuja fundamentação inteiramente se remete – tal não constitui objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de 'normas'.
No tocante à inconstitucionalidade 'normativa' invocada, o Ministério Público afirmou no essencial que 'não se verifica qualquer 'esssencial indeterminação' do conceito legal utilizado pelo legislador no dito artigo 256º, nº 3, do Código Penal, incompatível com as exigências do princípio da tipicidade'.
Deste modo, o magistrado do Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
1º - Conforme resulta da jurisprudência firmada maioritariamente no Acórdão
674/99, não integra objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade normativa a imputação à decisão recorrida de interpretação e aplicação extensiva ou analógica de certo conceito legal, usado pelo legislador penal para tipificar certo crime.
2º - A norma constante do artigo 256º, nº 3, do Código Penal, ao tipificar o crime de falsificação de documento' com base no conceito de 'documento autêntico ou com igual força', não afronta o princípio da legalidade, já que o mesmo não obsta a que o legislador se possa socorrer de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados na definição dos tipos penais.
3º - Termos em que não deverá conhecer-se da questão de inconstitucionalidade
'interpretativa' suscitada pelo recorrente, devendo julgar-se improcedente a questão da 'inconstitucionalidade normativa' por ele levantada quanto ao artigo
256º, nº 3 do Código Penal.
3. Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento parcial do recurso, veio o recorrente responder. Em síntese, quanto à invocação da alínea c) do nº 1 do artigo 165º, o recorrente esclareceu, no essencial, que questionava 'o facto de a norma do caso sub judice possibilitar ao aplicador da lei a aplicação de penas a crimes não previstos inequivocamente pela mesma, e permitir concretamente, através de conceitos indeterminados, a criação de crimes por parte do aplicador da lei, contrariando frontalmente o disposto' naquele artigo. Assim, a interpretação 'levada a cabo pelo tribunal recorrido' seria inconstitucional, 'porquanto estando em causa matéria ligada a direitos fundamentais, formular critérios interpretativos que levem à criação de crimes, ou ao agravamento do tipo legal de crime caber unicamente ao legislador, ao qual é cometida a tarefa de emissão legislativa consubstanciadora de alterações ou modificações pertinentes a essa matéria'. Relativamente ao apelo aos nºs 3 e 4 do artigo 29º da Constituição, o recorrente esclareceu que o considera violado porque a prática da infracção em causa foi anterior ao assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Novembro de 1998, sendo que só com este teria surgido a equiparação da falsificação das chapas de matrícula a falsificação de documento com 'igual força' a documento autêntico. Quanto ao problema do não conhecimento objecto do recurso, na parte relativa à interpretação levada a cabo pelo Tribunal recorrido, o recorrente veio invocar o acórdão nº 122/00 do Tribunal Constitucional, que, perfilhando orientação diferente da que fez vencimento no acórdão nº 674/99, se decidiu pelo conhecimento do objecto do recurso. Citou ainda o voto de vencido aposto neste
último acórdão pelo Conselheiro Sousa Brito, e concluiu afirmando que 'nunca pôs em causa a decisão judicial em si mesma considerada, mas o sentido que extraiu da norma, independentemente do método interpretativo utilizado, desde que – como defendemos – esse resultado interpretativo não caiba no sentido possível das palavras de uma lei penal'.
4. Tendo havido mudança de relator, cumpre decidir, antes de mais, se deve conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
5. Algumas precisões:
5.1. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, visando 'a apreciação da constitucionalidade da primeira parte da norma do artigo 256º, nº 3, do Código Penal em conjugação com o nº 1 do mesmo artigo e a definição de documento dada pela alínea a) do artigo 255º e artigo 1º, nº 3, do mesmo diploma'.
Importa sublinhar, antes de mais, que o nº 3 do artigo 1º do Código Penal não pode considerar-se como integrando o objecto do recurso, pois, como resulta do confronto do requerimento de interposição do recurso com a conclusão VIII das alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente hesitou em considerá-lo como fazendo parte desse objecto ou, antes, como critério ou parâmetro de aferição da invocada inconstitucionalidade do nº 3 do citado artigo 256º.
Também não vai conhecer-se da invocada violação dos nºs 3 e 4 do artigo 29º da Constituição, porque não está aí em causa nenhum problema de inconstitucionalidade normativa, mas uma alegada aplicação retroactiva do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Novembro de 1998.
Aliás, há que sublinhar que, contrariamente ao que o recorrente pretende, este assento não foi, sequer, aplicado pelo acórdão recorrido, nem tão-pouco podia tê-lo sido, pois ele foi tirado para interpretar os artigos 228º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 229º, nº 3, do Código Penal de 1982, que não eram aplicáveis no caso. O assento apenas foi convocado pelo acórdão recorrido para sublinhar que a nova lei – recte, o artigo 256º, nº 3, do Código Penal -, no ponto considerado, acolheu a solução que já estava consagrada na lei antiga, tal como esta foi interpretada pelo mesmo assento: de facto, o aresto recorrido - depois de sublinhar que 'a redacção dos nºs 1 e 3 do artigo 256º do actual Código Penal corresponde, ponto por ponto, às dos nºs 1 e 2 do artigo 228º do Código Penal de
1982'; e que 'a definição de documento dada pela alínea a) do artigo 255º do actual Código Penal corresponde à que era dada pelo artigo 229º do Código Penal de 1982 – acrescentou que, no domínio do Código por último citado, 'foi largamente debatida a questão de saber se a chapa de matrícula automóvel, depois de nele ter sido aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico', sendo na sequência desse debate que surgiu o mencionado assento. E o mesmo aresto ajuntou: 'apesar de estar em causa lei nova, dada a coincidência das normas em confronto, não se descortinam razões para alterar a orientação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça'.
6. Sobre a questão de saber se deve ou não conhecer-se do recurso:
6.1. O objecto do recurso é, assim, constituído pelo artigo 256º, nº 3, do Código Penal, conjugado com o nº 1 do mesmo artigo e com 'a definição de documento dada pela alínea a) do artigo 255º' do mesmo Código'. Na verdade, o acórdão recorrido concluiu que a alteração da chapa de matrícula de um veículo automóvel é punível como falsificação de documento autêntico ou com igual força.
O artigos do Código Penal acabados de referir preceituam como, a seguir, se indica. Artigo 256º (Falsificação de documento)
1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: a).Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; b). Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou c). Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. [...]
3. Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale de correio, a letra de câmbio, a cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de sessenta a seiscentos dias.
Por sua vez, o artigo 255º, subordinado à epígrafe definições legais, reza assim na sua alínea a): Para efeito do disposto no presente capítulo considera-se: a). Documento: a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
6.2. Segundo o recorrente, o acórdão recorrido fez uma interpretação inconstitucional do citado artigo 256º, n.º 3, do Código Penal, verificando-se essa inconstitucionalidade numa dupla vertente: numa vertente normativa, traduzida em violação do princípio da legalidade penal, uma vez que 'os tipos de crime [...] devem ser definidos na lei com um suficiente grau de determinação nos seus pressupostos', e isso não acontece com o mencionado artigo 256º, n.º 3; e numa vertente interpretativa, porque o acórdão recorrido, ao considerar que 'a alteração ou substituição das chapas de matrícula de automóveis está prevista e
é punida' pelo n.º 3 do referido artigo 256º, 'em virtude de aqueles elementos dizerem respeito a documento autêntico ou com igual força', foi 'além do sentido possível das palavras e de conceitos legalmente pré-definidos', pois 'só pode considerar-se como documento autêntico ou com ‘igual força’ o que a lei define como tal, o que não é manifestamente o caso da chapa de matrícula'. E com isso – disse - violou os nºs 1,3 e 4 do artigo 29º e a alínea c) do n.º 1 do artigo
165º da Constituição. O que, segundo o recorrente, a Relação fez no acórdão recorrido foi 'preencher uma lacuna de regulamentação', embora não lhe caiba 'aplicar normas penais com base em critérios por si formulados'. Ou seja: 'equiparando a alteração dolosa da chapa de matrícula a documento autêntico ou com igual força', o acórdão recorrido procedeu a uma 'interpretação ou integração (inconstitucional) da lei'.
Em conclusão, pois: o que o recorrente censura ao acórdão recorrido é ter qualificado a chapa de matrícula de automóvel, depois de nele ter sido aposta, como documento autêntico ou com igual força. Dizendo de outro modo: censura-lhe o facto de ter subsumido ao conceito de documento autêntico ou com igual força a chapa de matrícula aposta em automóvel. E censura-lho porque, em seu entender, o princípio da legalidade penal tem, forçosamente, que conter-se nos limites da tipicidade imposta pelo artigo 29º, nº 1, da Constituição; e, por isso, toda a interpretação que extravase tais limites tornará inconstitucional a norma assim interpretada.
6.3. Mas, a ser assim, o que o recorrente verdadeiramente questiona, ratione constitutionis, não é tanto um certo sentido ou dimensão normativa que o acórdão recorrido tenha extraído do citado artigo 256º, n.º 3, mas, mais propriamente, o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido incluir no conceito de documento autêntico ou com igual força a chapa de matrícula colocada em automóvel. Ou seja: o recorrente não questiona, exactamente, que o legislador pudesse 'tipificar como crime agravado a falsificação dos elementos identificativos dos veículos' (cf. a conclusão XII). Questiona, isso sim, a decisão judicial que, por um processo de interpretação que a Constituição proíbe, chegou a esse resultado.
Foi, aliás, isto mesmo que o Tribunal teve ocasião de pôr em destaque no acórdão n.º 674/99 (publicado no Diário da República, II série de 25 de Janeiro de
2000), em que estava em causa uma decisão judicial que incluiu no conceito de astúcia a reserva mental de incumprimento. Nesse aresto, deu-se conta da posição do recorrente nos termos seguintes: Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade incriminatória, consignado no artigo 29º, nº 1, da Lei Fundamental, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva «que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos», consequenciaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do referido princípio constitucional.
E, logo a seguir, o mesmo aresto interrogou-se: Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
Também no presente recurso deve formular-se esta mesma pergunta.
6.4. É com amparo no mencionado acórdão n.º 674/99, cuja doutrina é perfeitamente transponível para aqui, que vai dar-se resposta a tal interrogação, ou seja, à questão de saber se este Tribunal é competente para sindicar o processo interpretativo que conduziu o tribunal recorrido a qualificar a chapa de matrícula de automóvel como documento autêntico ou com igual força. Adianta-se já que a resposta é negativa.
Escreveu-se, a propósito, no citado acórdão n.º 674/99: O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão
«apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº 353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.). Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Conselheiro Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então: De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...]. Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal). Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito. [...] Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento. Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95: Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...]. E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº 154/98: Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo
292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição. No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa.
[...] Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto. E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº 682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção». Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de
1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de
1999). Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição. Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição? Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal. Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida. Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste, é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade. A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos. Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada. Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador. Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material). Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita. Também este aresto não obteve unanimidade. Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade ‘normativa’ – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são ‘estruturalmente’ diferentes do ora em apreço». Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator
[o Vice-Presidente, Conselheiro Luís Nunes de Almeida], através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº 285/99. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342): A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal. Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal. Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo. Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode
(sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica
àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso.
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados. Com efeito, o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional – nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando ocorresse apenas reserva mental de incumprimento. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla. Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não
é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido. Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Conselheiro Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica. Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.). Ora, assim sendo, no caso vertente, em que nem sequer ocorreu uma integração analógica ou «operação equivalente», mas uma mera interpretação da lei que vem contestada pelo recorrente, tem necessariamente de se concluir pela inexistência de uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
6. 5. Continua a subscrever-se a jurisprudência firmada pelo Tribunal neste acórdão n.º 674/99, que se transcreveu. E, por isso, também agora se conclui, como logo inicialmente se advertiu, que o Tribunal não tem competência para conhecer da questão de constitucionalidade que os autos nos propõem: é que não se está, no caso, em presença de uma questão de inconstitucionalidade normativa, já que o recorrente, verdadeiramente, o que censura é a própria decisão judicial
– recte, o processo interpretativo por ela adoptado, que a conduziu a incluir a chapa de matrícula no conceito de documento autêntico ou com igual força. Isso
é, em boa verdade, o que significa o facto de lhe censurar que, ao interpretar o artigo 256º, n.º 3, do Código Penal, incluindo no conceito de documento autêntico ou com igual força a chapa de matrícula automóvel, o acórdão recorrido tenha percorrido um caminho - seja ele ainda interpretação ou constitua já integração - que é proibido pela Constituição, por importar violação do princípio da legalidade penal.
Sendo isto assim, não pode conhecer-se do recurso nesta parte, pois o Tribunal carece de competência para tanto.
6.6. A questão que o recorrente apelidou de vertente normativa da inconstitucionalidade de que, em seu entender, enferma o artigo 256º, nº 3, do Código Penal, essa, sim, é uma verdadeira questão de inconstitucionalidade de que ao Tribunal cumpre conhecer: na verdade, tal questão coloca-se face ao conteúdo e aos dizeres desse preceito legal. Essa questão de inconstitucionalidade é, porém, infundada, pois o legislador penal não está impedido de utilizar conceitos indeterminados na definição dos crimes.
Nesta parte, tem o recurso que improceder. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso, na parte em dele se conhece;
(b). condenar o recorrente nas custas, com dez unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 19 de Julho de 2000 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida quanto à parte em que não conheceu do recurso. Também quanto a ela o teria julgado improcedente, nos termos da declaração junta) José de Sousa e Brito ( vencido quanto à parte em que se não conheceu do recurso, por entender que também quanto a ela se deveria Ter julgado improcedente o recurso, pelas razões da declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e da minha declaração de voto no Acórdão nº 674/99). Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto Votei vencida quanto à parte em que se decidiu não conhecer do objecto do recurso, pelas seguintes razões:
1. O Tribunal julgou não poder conhecer da questão que o recorrente designa como
'vertente interpretativa', consistente na alegada inconstitucionalidade da alínea a) do nº 1 e do nº 3 do artigo 256º do Código Penal, na 'interpretação acolhida pelo douto acórdão recorrido', de acordo com a qual 'a alteração e a substituição das chapas de matrícula dos veículos automóveis está prevista e é punida pelo no 3 do artigo e diploma referido, em virtude de aqueles elementos dizerem respeito a documento autêntico ou com igual força'. Tal interpretação, apoiada na doutrina formulada no Assento nº 3/98 do Supremo Tribunal de Justiça, teria ido 'além do sentido possível das palavras e de conceitos legalmente definidos', com violação dos nºs 1, 3 e 4 do artigo 29º e da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição.
É sabido que o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional é constituído por normas efectivamente aplicadas durante o processo. E, de acordo com a jurisprudência corrente deste Tribunal, a norma jurídica cuja constitucionalidade há-de ser apreciada é tomada com o sentido que lhe foi interpretativamente atribuído pela decisão recorrida. Assim se escreveu, por exemplo, no acórdão nº 168/99 (não publicado): 'Quando das disposições legais em causa se extraem, ou podem extrair, diferentes proposições normativas, ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto da verificação de constitucionalidade as normas legais aplicadas, de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido'. Noutros termos, objecto do recurso é a 'norma, interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada dessa decisão' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, pág. 881). A norma efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido é a que este extraiu, por interpretação, da alínea a) do nº 1 e do nº 3 do artigo 256º do Código Penal. O sentido dessa norma, como resulta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, é o seguinte: a alteração da chapa de matrícula de veículo automóvel é punível como falsificação de 'documento autêntico ou com igual força'. Com efeito, após ter referido que 'no domínio do Cód. Penal/82 foi largamente debatida a questão de saber se a chapa de matrícula automóvel, depois de nele ter sido aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico', o acórdão recorrido recorreu ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1998, que a resolveu afirmativamente, e considerou não existirem razões para alterar a orientação fixada, apesar de estar em causa lei nova,
'dada a coincidência das normas em confronto'. Deste modo, é a norma aplicada, interpretativamente extraída da respectiva fonte legal – e não a fonte em si mesma considerada, como acto legislativo ou como disposição legal –, que constitui objecto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como afirma ARMINDO RIBEIRO MENDES (no Relatório apresentado na I Conferência da Justiça Constitucinal da Ibero-América, Portugal e Espanha – Os órgãos de fiscalização da constitucionalidade: Funções, competências, organização e papel no sistema constitucional perante os demais poderes do Estado, separata de Documentação e Direito Comparado, nº 71/72, Lisboa, 1997, pág. 719), 'objecto de controlo de constitucionalidade são as normas jurídicas e não os preceitos normativos que as contêm'. Não tem assim autonomia – não podendo assumir-se como questão diferenciada de constitucionalidade – o problema de saber se o teor do nº 3 do artigo 256º do Código Penal ofende a Constituição por insuficiente definição dos pressupostos da punição. O que não impede que a análise da disposição legal em causa possa configurar-se como um momento relevante do juízo de constitucionalidade normativa a realizar.
2. É incontroverso que os poderes do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade se dirigem a normas jurídicas e não a decisões judiciais. Já não é isenta de dúvidas a resposta à questão de saber como deve traçar-se a fronteira entre umas e outras, para o efeito de delimitar o âmbito do poder de fiscalização da constitucionalidade normativa pelo Tribunal Constitucional [sobre a questão, em termos genéricos, cf. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade – os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, págs. 336-34, que afirma:
'A competência do Tribunal Constitucional deve, pois, abranger a fiscalização da constitucionalidade de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico'
(pág. 339)]. O problema colocado no presente recurso é o de saber se deve afastar-se do
âmbito da fiscalização pelo Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade, por violação do princípio da legalidade penal, de normas interpretativamente obtidas (ou, o que é dizer o mesmo, de determinadas interpretações normativas) que foram aplicadas na decisão recorrida. Deve lembrar-se antes de mais que o Tribunal Constitucional se tem considerado em geral competente para julgar a constitucionalidade de interpretações normativas, ou de normas interpretativamente obtidas (entendida aqui interpretação no seu sentido amplo, abrangendo o processo de detecção da norma por via de analogia ou de interpretação em sentido estrito), apesar da dificuldade prática, por vezes experimentada, da distinção entre norma e decisão judicial. Como se afirmou no acórdão 612/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Janeiro de 1995), 'O Tribunal Constitucional vem entendendo, numa jurisprudência longamente firmada, que invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação - hipótese que não se confunde com aquelas em que pura e simplesmente se invocou a inconstitucionalidade da própria decisão, e só desta'. Indispensável é que esteja em causa um critério normativo de decisão, em que o Tribunal recorrido se tenha baseado como ratio decidendi. Independentemente da questão de saber em que termos se coloca a distinção entre interpretação e aplicação, não pode obviamente o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, que envolve a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou a decisão, como resultado da conjugação indissociável do facto e do critério normativo utilizado. Mas pode e deve aferir a constitucionalidade desse critério normativo. Não são, pois, sindicáveis nem a aplicação a uma dada situação concreta de um critério normativo – isto é, a subsunção, operada pelo aplicador do direito, do caso concreto à norma–, nem a obtenção, pelo julgador, de uma solução não decorrente de critérios estritamente normativos.
À luz das considerações indicadas, o objecto do presente recurso é inegavelmente uma norma jurídica, que pode enunciar-se com generalidade e abstracção: quem falsificar a chapa de matrícula de veículo automóvel é punível como agente de um crime de falsificação de um documento com força igual à do documento autêntico.
3. Esta afirmação, por si só, não resolveria totalmente o problema, na medida em que, residindo a questão de constitucionalidade suscitada na alegada violação do princípio da legalidade criminal pela interpretação adoptada, há quem entenda (e foi esta a solução que fez vencimento no caso presente) não poder tal vício ser conhecido por este Tribunal, que, aliás, tem proferido decisões de sentido não unívoco (cf. designadamente os acórdãos citados no acórdão nº 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000). Debruçou-se sobre a questão RUI MEDEIROS (ob. cit., págs. 340-342), que, relativamente às hipóteses em que o tribunal obtém uma norma penal através do mecanismo da integração de lacunas por analogia, considera que não é possível conhecer do recurso de constitucionalidade por violação da legalidade criminal, já que o que verdadeiramente seria fiscalizado seria não a norma mas o 'próprio processo de obtenção da regra aplicável' (ob. cit., pág. 341). Assim, por considerar estar em causa o acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, não seria possível ao Tribunal Constitucional conhecer do recurso sempre que o próprio legislador pudesse, sem ofender a Constituição, estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resulta da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo Tribunal a quo. Aceitou esta doutrina o acórdão nº 674/99 (embora aparentemente como obiter dictum, já que afirmou que no caso 'nem sequer ocorreu uma integração analógica ou 'operação equivalente', mas uma mera interpretação da lei que vem contestada pelo recorrente'), julgando-a aplicável aos casos de normas penais obtidas por via de 'integração analógica' ou de 'formas não admissíveis de interpretação extensiva'.
4. Apesar de assentar em argumentação ponderosa (cf., para além da citada obra de RUI MEDEIROS, os pontos 49 a 53 do acórdão nº 674/99 do Tribunal Constitucional), tal doutrina não parece ser procedente. Antes de mais, importa ter presente que a tese em apreciação afasta certas questões de constitucionalidade da fiscalização do Tribunal Constitucional não em função do seu objecto (constituído por uma verdadeira norma), mas em função do seu fundamento: a saber, a circunstância de a norma obtida resultar de determinado processo interpretativo desconforme com o princípio da legalidade penal. Ora, não se encontra base constitucional ou legal para excluir da fiscalização da constitucionalidade de normas (posto que se trate de efectivas normas, ainda que interpretativamente construídas, como no presente recurso) a apreciação de um específico fundamento dessa inconstitucionalidade. Na verdade, se a norma em causa pode ser confrontada com a Constituição com fundamento na violação de outras normas ou princípios constitucionais (o que não
é posto em causa pela doutrina que agora se analisa), não se vê porque deva ser excluído o fundamento consistente na violação da legalidade criminal. Não se diga que, se o legislador formulasse directamente uma norma com o conteúdo que lhe foi interpretativamente atribuído pelas instâncias, tal norma não violaria a Constituição. Este argumento não vale, já que a norma cuja constitucionalidade se aprecia é a que foi aplicada no processo, e não uma norma hipoteticamente criada por acto legislativo. De resto, a inconstitucionalidade da norma pode resultar da violação da Lei Fundamental não pelo seu próprio conteúdo, mas pelo processo da sua obtenção: basta pensar nas hipóteses de inconstitucionalidade orgânica e formal, resultantes da violação, no processo de formação da norma, de preceitos constitucionais de competência e de forma. Também nestas últimas hipóteses, seria possível ao legislador elaborar uma norma de conteúdo idêntico, sem violar a Constituição. Mas essa seria uma outra norma, e não aquela cuja inconstitucionalidade orgânica ou formal se suscita. Não parece também procedente o argumento de que basear o juízo de constitucionalidade na natureza do processo de interpretação ou integração usado
é sindicar o 'acto de julgamento'. Na verdade, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, há que distinguir – apesar das inevitáveis dificuldades teóricas e práticas suscitadas – entre tudo o que é resultado da ponderação do caso concreto submetido ao Tribunal, e que releva da decisão, daquilo que é a adopção de critérios normativos, e que releva da norma aplicada. Ora, quando um tribunal extrai, a partir de uma fonte, um critério normativo válido para uma série de casos, utilizando um processo hermenêutico também considerado válido para esses casos, não é o singular acto de julgamento que está em causa, nem a concreta decisão do tribunal em que esse acto se consubstancia. Pelo contrário, nessas hipóteses, a questão é manifestamente de constitucionalidade normativa. Acresce que, em bom rigor, averiguar da violação do princípio da legalidade penal não supõe necessariamente a exacta qualificação do procedimento metódico usado (analogia, interpretação extensiva), mas tão só apurar se a norma obtida
'ultrapassa o sentido possível das palavras da lei penal' (cf. a declaração de voto do Conselheiro Sousa Brito no acórdão 674/99 e o acórdão nº 205/99, Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999). Ou, noutros termos,
'independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita' (acórdão nº 205/99, seguido pelo acórdãos nº 285/99 e 122/00, publicados no Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999 e de 6 de Junho de 2000, respectivamente). Mas deve ainda ponderar-se o argumento (utilizado no acórdão nº 674/99) de que admitir o recurso em hipóteses como as do caso em apreciação seria aceitar que o Tribunal Constitucional procedesse ao controlo da interpretação judicial das normas penais, pois 'a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (...)'. Assim, 'seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu 'sentido natural' (e qual é ele, em cada caso concreto), com base em violação do princípio da separação de poderes', bem como, se 'uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República', com base na 'existência de uma inconstitucionalidade orgânica'. Este argumento não deve também aceitar-se, já que pressupõe que o entendimento criticado implicaria entender como violação do princípio da legalidade uma interpretação 'errónea', qualquer que ela fosse, por corresponder à adopção de um sentido normativo divergente do seu 'sentido natural', ou seja da interpretação 'correcta'. Semelhante argumento não pode proceder, porque é dirigido contra uma posição cuja defesa, em boa verdade, ninguém adopta. Na verdade, uma coisa é a bondade de uma dada interpretação, e outra, bem distinta,
é a contrariedade à Constituição dessa mesma interpretação. Uma disposição penal pode ser objecto de diferentes interpretações compatíveis com o princípio da legalidade. O que este princípio proíbe é que o julgador alcance, contra o princípio nullum crimen sine lege certa, uma norma cujo conteúdo ultrapassa o sentido possível das palavras da lei. Quanto à possibilidade – alegadamente proporcionada pela doutrina criticada no acórdão nº 674/99 – de assacar a determinada interpretação outras causas de inconstitucionalidade (como a orgânica), deve lembrar-se que o Tribunal Constitucional tem, por diversas vezes, apreciado a constitucionalidade orgânica de interpretações adoptadas pelas instâncias, em hipóteses em que há interpretações alternativas não violadoras das regras constitucionais de competência. Para referir apenas acórdãos tirados em matéria penal, cabe mencionar o acórdão nº 609/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1996), que, confrontado com o alcance de uma dada norma revogatória, afastou a interpretação que conduziria à sua inconstitucionalidade orgânica
(tratava-se da revogação por um Decreto-Lei não autorizado de uma norma penal), impondo uma interpretação que considerou conforme com a Constituição. De modo semelhante, o acórdão nº 41/00 (não publicado) impôs determinada interpretação do artigo 199º do Código de Processo Penal (contrária à adoptada na decisão recorrida), de modo a afastar a sua inconstitucionalidade orgânica, afirmando:
'a norma constante do artigo 199º do Código de Processo Penal, se fosse interpretada no sentido de abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entraria em colisão com o disposto no citado artigo 164º, alínea m), da Constituição'. Já no acórdão nº
520/99, não publicado, (estava em causa o respeito por uma lei de autorização legislativa em sede de direito de mera ordenação social), onde se reconheceu a
'dificuldade tão amiudadamente sentida de estabelecer, de modo inequívoco e resposta fácil, a linha de demarcação entre uma questão de interpretação normativa constitucionalmente sindicável e um mero reexame da matéria fáctica apurada e do enquadramento jurídico que lhe foi dado nas instâncias, mormente no tribunal a quo', a razão pela qual não se veio a conhecer do objecto do recurso, foi a de que não se suscitava uma 'questão de constitucionalidade normativa - ou de sua interpretação'.
5. Mesmo que não se subscreva integralmente a argumentação acabada de enunciar, sempre teria de se ter em consideração que, no presente processo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa considerou como documento com igual força à de documento autêntico a chapa de matrícula de veículo automóvel por aplicação da doutrina fixada no Assento de 5 de Novembro de 1998 (também aqui discordo do que se decidiu no ponto 5. do acórdão). Na verdade, o acórdão recorrido, afirmou (a fls. 7238):
'No domínio do Cód. Penal/82 foi largamente debatida a questão de saber se a chapa de matrícula automóvel, depois de ter sido aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico. O STJ em assento de 5-11-98 – DR Iª Série de 22-12-98 – fixou a orientação segundo a qual, na vigência do Cód. Penal de 1982, a alteração dolosa da chapa de matrícula consubstancia um crime de falsificação de documento p. e p. pelo seu art. 228º nºs 1 al. a) e 2. Apesar de estar em causa lei nova, dada a coincidência das normas em confronto, não se descortinam razões para alterar a orientação fixada pelo STJ'. Após estas afirmações, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se, na parte ora relevante, a transcrever alguns trechos do citado Assento. Recorde-se ainda que o recorrente impugnou a dimensão normativa acolhida no Assento, fazendo-lhe referência expressa. Assim, e em qualquer caso, aceitando o Tribunal Constitucional fiscalizar a constitucionalidade de normas resultantes de Assentos (com o alcance que decorria da redacção inicial do Código Civil, ou com o alcance que lhes foi posteriormente atribuído), sempre teria que conhecer o objecto do presente recurso, julgando improcedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
6.Tomando então como norma a apreciar a que atrás se definiu, caberia então observar que o apuramento de uma violação do princípio da legalidade penal, na sua vertente de tipicidade, não corresponde a saber se a disposição em causa foi bem ou mal interpretada, mas a saber se a norma aplicada (com a interpretação que lhe foi dada), por exceder o sentido possível das palavras da lei, se revela imprevisível para os destinatários. Como se afirmou no acórdão nº 168/99,
'averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos'. Para o recorrente, o entendimento de que a chapa de matrícula corresponde a um documento com igual força ao documento autêntico não seria admissível, porque se teria afastado a 'noção legal civilista de 'documento autêntico ou com igual força', não indicando qualquer dispositivo legal que os defina'. Não cabendo ao julgador 'aplicar normas penais com base em critérios por si formulados', verificar-se-ia a inconstitucionalidade da citada interpretação por violação do princípio da igualdade. Cabe antes de mais sublinhar, em primeiro lugar, que a lei penal pode evidentemente formular conceitos cujo alcance não coincida com o alcance de conceitos da lei civil; e não apenas nos casos em que se explicita esse diferente alcance (cf., por exemplo, a definição legal de documento oferecida na alínea a) do artigo 255º do Código Penal), mas também quando decorre da lei, através dos diversos elementos interpretativos atendíveis, a existência de autonomia conceitual da norma penal. Em segundo lugar, deve observar-se que, se existe uma noção civilista de documento autêntico, o mesmo não se passa relativamente ao que seja documento com força igual à daquele, apenas se encontrando a equiparação, para efeitos de força probatória, dos documentos particulares autenticados (cf. artigo 377º do Código Civil).
7. Veja-se agora se, ao entender abrangido no grupo de documentos com força idêntica aos documentos autênticos a chapa de matrícula de veículo automóvel, a corrente jurisprudencial dominante (e que fez vencimento no já referido Assento de 5 de Novembro de 1998, relativamente à versão inicial do Código Penal de
1982), acolhida no acórdão recorrido, terá formulado uma norma penal em contrariedade ao sentido possível das palavras da lei. Quanto à noção de documento constante da alínea a) do artigo 255º do Código Penal, ela parece suficientemente ampla para abranger, na sua letra, a chapa de matrícula (cf., sobre a questão HELENA MONIZ, anotação à disposição em causa no Comentário Conimbricence do Código Penal – Parte especial, dir. por FIGUEIREDO DIAS, tomo II, Coimbra, 1999, págs. 668-669). Quanto à questão de saber se ela pode ser reconduzida ao conceito de documento com igual força, afigura-se que a expressão literal do preceito legal é, também, suficientemente ampla para que nela possa caber o referido documento. Basta reconhecer que 'a chapa de matrícula aposta num veículo constitui o suporte material, visível para toda a gente e obrigatório, de um número criado por entidade pública com competência para tal – por isso com a fé pública que daí decorre' (cf. Assento citado), o que torna plausível, em termos gerais, a sua consideração como documento com força igual. Relembre-se que esta afirmação não implica um juízo de valor sobre a questão de saber se a interpretação adoptada nas instâncias é a mais adequada, tendo em conta todos os factores a ter em conta na descoberta do sentido da norma (quanto ao problema dos pressupostos da qualificação do crime de falsificação, no plano da interpretação do direito infra-constitucional, v. HELENA MONIZ, ob. cit., págs. 686-688). Deste modo, a norma impugnada não se revela violadora do princípio da tipicidade, como expressão do princípio da legalidade criminal (nº 1 do artigo
29º da Constituição). Assim, julgaria improcedente o presente recurso, também nesta parte.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza