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Proc. nº 168/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional I Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Viana do Castelo deduziu acusação contra L..., imputando-lhe a prática de um crime previsto e punível pelo artigo 292º do Código Penal (condução de veículo em estado de embriaguez).
O Tribunal Judicial de Viana do Castelo, por sentença de 21 de Janeiro de 1999, condenou o arguido na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 700$00; em 90 dias de proibição de conduzir; e em custas. Tal condenação implica (no momento do respectivo trânsito em julgado) a caducidade do título de condução (provisório) do arguido, nos termos dos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, o que foi devidamente declarado na sentença.
2. L... interpôs recurso da sentença de 21 de Janeiro de 1999 para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando a inconstitucionalidade dos artigos
122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, por violação do princípio da legalidade [invocando os artigos 165º, nº 1, alínea c) e 198º, nº
1, alínea b), da Constituição] e do disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 5 de Janeiro de 2000, considerou que as normas contidas nos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, são materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição, e também organicamente inconstitucionais, por violação dos artigos 165º, nº 1, alínea c) e 198º, nº 1, alínea b), da Constituição. Consequentemente, revogou a decisão recorrida na parte em que declarou a caducidade do título de condução.
3. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 5 de Janeiro de 2000 ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição dos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº
1, alínea a), do Código da Estrada.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente alegou, tendo tirado as seguintes conclusões: Decorrendo das normas dos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), ambos do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, o efeito automático e necessário da caducidade da carta ou licença de condução em consequência da aplicação ao seu titular, durante o período probatório de dois anos, da pena de proibição de conduzir ou de sanção de inibição de conduzir efectiva, deve concluir-se que tais normas violam o preceituado no nº 4 do artigo 30º da Constituição.
Por seu turno, o recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
I. Num Estado de Direito, à decisão que imponha a perda de direitos, exige-se que pondere devidamente tal consequência.
II. Exige-se que nessa decisão seja devidamente valorado a maior ou menor gravidade do ilícito, bem como a censurabilidade do comportamento do agente.
III. Aferindo-se assim a culpa, a necessidade e a proporcionalidade da pena efectivamente aplicada.
IV. A perda de direitos civis, profissionais ou políticos não pode resultar de mero efeito da pena, não pode produzir-se ope legis ou, por outras palavras, não pode provir directamente da lei.
V. Decorre dos artigos 122º, n ºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada que a mera imposição de uma pena de proibição de conduzir ou de uma sanção de inibição de conduzir, a quem tenha carta há menos de dois anos, importa a caducidade do título de condução.
VI. A perda desse direito ocorre de forma necessária e automática.
VII. Pelo exposto, conclui-se que os artigos
122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada violam o preceituado no artigo 30º, nº 4 da Constituição.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. Os preceitos submetidos à apreciação do Tribunal Constitucional têm a seguinte redacção: Artigo 122º Títulos de condução
(...)
4 - O título de condução emitido a favor de quem não se encontra já legalmente habilitado para conduzir qualquer das categorias de veículos nele previstas tem carácter provisório e só se converte em definitivo se, durante os dois primeiros anos do seu período de validade, não for instaurado ao respectivo titular procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que correspondam proibição ou inibição de conduzir.
5 - Se, durante o período referido no número anterior, for instaurado procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que correspondam proibição ou inibição de conduzir, o título de condução mantém o carácter provisório até que a respectiva decisão se torne definitiva ou transite em julgado.
(...)
Artigo 130º Caducidade do título de condução
1 - A carta ou licença de condução caduca quando: a. Sendo provisória nos termos do nº 4 e 5 do artigo 122º, for aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva;
(...)
A) A eventual violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição, pelos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada
6. Os artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada, ao preverem a caducidade da carta ou licença de condução provisórias no caso de condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção de inibição de conduzir, violarão o princípio da proibição de penas automáticas consagrado no artigo 30º, nº 4, da Constituição?
A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua justificação
é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege. Todavia, a proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/92 - D.R., II Série, de 8 de Abril de 1993, 183/94 - inédito, 264/99 - D.R., II Série, de 13 de Julho de
1999, e 327/99 - D.R., II Série, de 19 de Julho de 1999).
7. No caso concreto, é efeito necessário da instauração de procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que correspondam proibição ou inibição de conduzir a não conversão em definitivo de um título de condução provisório. É determinante da caducidade de carta ou licença de condução provisória a condenação em pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva.
Consubstanciará esta prescrição legal um efeito automático da condenação?
A resposta negativa impõe-se por duas razões fundamentais: o direito a conduzir decorre de uma licença, que no caso é apenas provisória, e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.
Por outro lado, prevê-se um período experimental e de licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença definitiva.
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.
Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta.
Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução.
Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.
Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução - o qual constitui, materialmente, uma espécie de período probatório.
8. Mas, ainda numa certa concepção poderá entender-se que qualquer efeito automático de natureza penal sobre a licença provisória só poderia verificar-se se fosse igualmente automática a condenação em inibição de conduzir ou se a instauração do procedimento determinasse logo a caducidade da licença provisória. Todavia, nem resulta dos crimes de trânsito tal automaticidade, nem
é essa questão que agora é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional. Com efeito, nessa concepção, se a condenação em inibição de conduzir depende de juízos de culpa sobre o facto, não decorre automaticamente do facto, ex vi lege, qualquer efeito para o licenciamento provisório.
Deste modo, não se verifica a alegada violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição.
B) A eventual inconstitucionalidade orgânica dos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, alínea a), do Código da Estrada
9. Estes preceitos transitaram da antiga versão do Código da Estrada para a versão que foi consagrada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro. Alega o recorrente que eles estão feridos de inconstitucionalidade orgânica por não estarem contidos nos limites da lei de autorização legislativa que permitiu ao Governo proceder à revisão do Código da Estrada - a Lei nº 97/97
- nem já antes na Lei nº 63/93 que autorizara o Governo a aprovar o Decreto-Lei nº 114/94.
Porém, também é incorrecta esta argumentação.
Com efeito, já a Lei nº 63/93 previa a sanção de inibição de conduzir [alínea d)] e a cassação da carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contra-ordenações, o condutor devesse ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado [alínea a) do artigo 2º]. E a Lei nº 97/97 previa, nas alíneas a) e f), idêntica possibilidade.
Ora as normas sub judicio são uma decorrência natural de tais possibilidades. Se é autorizada a condenação em tais sanções, é evidente que fica logicamente prejudicado o momento da conversão de uma licença meramente provisória em definitiva na situação de mera instauração de procedimento ou que uma licença provisória não caduque no caso de condenação em sanção de inibição de conduzir.
De resto, a definição de sanções contra-ordenacionais e sanções acessórias desde que se contenham no regime geral não está abrangida na reserva parlamentar. III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional não julga inconstitucionais as normas questionadas. Em consequência, concede provimento ao recurso e determina que seja reformado o acórdão recorrido em consonância com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa