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Procº nº 582/99.
ACÓRDÃO Nº 610/99
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. L., assistente em processo crime que correu seus termos pelo 1º Juízo Criminal de Lisboa, inconformada com a sentença que absolveu os réus M. e J., recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, rematando a motivação de recurso com as seguintes «conclusões»:-
“1ª Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu os arguidos da acusação particular deduzida pela ora recorrente e, ainda, que julgou improcedente o pedido cível por si formulado.
2ª Nos artigos jornalísticos em apreço, são-lhe imputados factos relativos à sua sexualidade, referindo inclusivé que a assistente se dedicou à prostituição quando tinha 19/20 anos, ou seja, quando ainda era menor.
3ª Tal matéria diz respeito ao comportamento sexual da ofendida, aspecto que não pode deixar de se integrar no âmbito da ‘esfera pessoal íntima’ da pessoa, reserva da intimidade da sua vida privada ou familiar (cfr. nº 1 do artº 26º da Constituição da República Portuguesa e artº 80º do Código Civil), absolutamente protegida e que não pode ceder em conflito com qualquer outro direito ou interesse público, mesmo perante o direito de informação evocado, mesmo sendo a assistente, que não é, uma ‘figura histórica do seu tempo’.
4ª Assim sendo, estamos no caso em apreço perante uma agressão à própria dignidade humana da pessoa da assistente, que se sentiu humilhada , como qualquer cidadão, devido aos alegados comportamentos sexuais que os arguidos lhe imputaram publicamente, sendo que a dignidade humana não poderá nunca ceder, face ao exercício de um qualquer outro direito ou interesse, pois é o artº 1º da Constituição que coloca todo o ordenamento jurídico sob a sua égide, ao prescrever que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (...)».
5ª O enxovalho público da assistente, decorrente da divulgação dos artigos em apreço, violou abruptamente a sua dignidade como pessoa humana, mas também a sua integridade moral (cfr. ainda, artº 25º da Constituição da República Portuguesa).
6ª A sentença recorrida deu como provado que os factos imputados pelos arguidos
à assistente correspondem à realidade, todavia, não existem elementos probatórios junto aos autos suficientes para que tais factos sejam considerados provados e nem que se evoque a certidão junta ao autos, dado que nos autos a que tal certidão diz respeito não ficou assente com força de caso julgado material que a assistente tenha sido prostituta aquando da sua menoridade.
7ª Daí que também neste parte deve a sentença ser alterada, considerando como não provados tais factos.
8ª A sentença recorrida considerou como não provado que o «o arguido M. tenha agido com intenção de denegrir a honra, a imagem e a consideração devidas à assistente, ou com intenção de devassar a vida provada da mesma assistente».
9ª Todavia, também aqui a decisão recorrida merece a censura da recorrente, dado que estamos no âmbito do Direito Penal, onde, para o crime específico de abuso de liberdade de imprensa apenas se exige que se verifique, por parte do agente o dolo genérico, seja directo, necessário ou, até eventual.
10ª Ou seja, basta que o agente tenha previsto a ofensa, o que no caso é flagrante, face à natureza dos factos em questão, conforme foi atrás referido, pois tendo sido dado como provado que o arguido M. actuou consciente e voluntariamente, face ao tipo de imputações feitas à pessoa da assistente - sejam falsas ou verdadeiras - é inquestionável que o mesmo quis põr em causa a sua dignidade como pessoa humana e a sua integridade moral.
11ª Daí a assistente entender que deveria ter sido dado como provado que o arguido M. agiu conscientemente, sabendo que ia denegrir a honra, a imagem e a consideração da assistente, ou seja, a sua dignidade como pessoa humana.
12ª Relativamente à responsabilidade criminal do arguido J., bem como da responsabilidade civil deste e da demandada civil ‘R.A., SA’, a douta sentença recorrida efectuou errada interpretação da lei, pois em parte alguma dos autos ficou demonstrado que foi impossível ao arguido J. impedir a publicação dos artigos jornalísticos em apreço.
13ª Ou seja, se não tomou conhecimento, cometeu o crime por que vinha acusado, sob a forma de omissão, por violação de um especial dever, de resto previsto na Lei de Imprensa (cfr. al. a) do artº 19º), de orientar, superintender e, até, determinar o conteúdo do periódico, o que significa que as normas constantes do nº 2 do artº 24º e na al. a) do nº 2 do artº 26º, têm de ser interpretadas numa perspectiva sistémica, à luz da referida norma do artº 19º, todos da Lei de Imprensa.
14ª Em suma, as competências do director de um periódico impõem-lhe um dever de conhecimento antecipado das matérias a publicar, de forma a poder impedir a divulgação daquelas susceptíveis de gerar responsabilidade criminal, é o mesmo que dizer que a omissão por parte do director, daquele dever de impedir a publicação de artigos com natureza criminal gera para este responsabilidade criminal, salvo se se provar que houve exoneração, o que não aconteceu no caso em apreço.
15ª Assim sendo, deverá também a decisão recorrida ser alterada relativamente ao arguido J. e, concomitantemente, ser também a decisão alterada quanto à demandada civil, tudo conforme a acusação privada e o pedido de indemnização civil formulado pela recorrente.
16ª A douta decisão violou, assim, entre outras do douto suprimento de Vª Exª, a norma constante no artº 1º; 25º; 26º, nº 1; 37º e 38º, todos da Constituição da República Portuguesa; o artº 80º do Código Civil, artºs 180º e 192º do Código Penal; e os artºs 19º, al. a); 24º, nº 2 e 26º, nº 2, al. a) da Lei de Imprensa”
2. Por acórdão de 5 de Maio de 1999, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
Escreveu-se, em dados passos, nesse aresto:-
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No caso dos autos, e no que à protecção da vida privada respeita, a lei é bem exigente no prossecução dessa protecção; haverá sempre punição pela prática do crime ainda que a imputação do facto seja feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade dessa imputação; ou seja, a lei
(artº 180º nº 3 do C. Penal) veda a exceptio veritas quando tenha por objecto factos pertinentes ` intimidade da vida privada e considera irrelevantes os interesses legítimos que sustentem a imputação; abre, porém, uma excepção que é, aliás, comum a todo o tipo de crimes: a dirimência da ilicitude (artº 31º do C. Penal).
E foi pela verificação desta excepção que a sentença recorrida decidiu do modo como o fez.
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2
Pretende a recorrente que não existem elementos probatórios nos autos suficientes para se vir a dar por provado, como se deu, que os factos imputados pelo arguido à assistente correspondem à realidade pois nos autos a que a certidão respeita não ficou assente com força de caso julgado material que a assistente tivesse sido prostituta aquando da sua menoridade.
A sentença socorreu-se, para fundamentar a sua convicção sobre os factos da certidão junta aos autos; esta contém uma sentença transitada em julgado que condenou uma tal Ma. pelo crime do artº 2º do D-L 44579 de 19/9/62 por se ter provado que A Ma., em várias vezes, facultou quartos a diversos indivíduos para manterem relações sexuais remuneradas com mulheres e raparigas entre as quais as 13 indicadas na acusação (sic). Ora, entre estas 13 indicadas na acusação, para o que a sentença remete, consta, desde logo, a ora assistente, L..
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E, como se vê da mesma certidão, a L. (ora assistente) prestou declarações na policia judiciaria a 6/5/66 em que confessa conhecer a Ma. se ter prostituído na casa dela.
Bem decidiu, pois o Tribunal recorrido ao dar por provada tal matéria.
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A absolvição do arguido M. não resultou da ausência dos elementos do tipo de crime do artº 180º mas da verificação (bem fundada na sentença, impõe-se dizer) da verificação da dirimente da ilicitude exercóicio de direito prevista no artº 31º nº 2 al. a) e referida no nº 3 do artº 180º. Ambos do C. Penal.
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4
Alega a recorrente que o arguido J. cometeu o crime por omissão por ter violado um dever especial de orientar, superintender e até determinar o conteúdo do periódico de que era director e cita o artº 19º al. a) da Lei de Imprensa que fixa algumas das competências do director do periódico.
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Resulta, assim, do artº 26 nº 1 al. a) que o director fica exonerado da responsabilidade criminal (no caso, como cúmplice uma vez que os escritos eram assinados pelo jornalista, seu autor) se provar que não conhecia o escrito ou que não lhe foi possível impedir a publicação.
Trata-se., aqui, de uma alternativa e não de circunstâncias cumulativas.
No caso, da prova produzida resulta que o arguido J. não conhecia os escritos por, então, os seus múltiplos afazeres profissionais levarem, na prática, a que essa função de visionamento dos artigos estivesse confiada, na altura, ao chefe de redacção do periódico.
A sua responsabilidade criminal teria, portanto, de ser afastada
- como foi - verificada a excepção prevista na parte final da al. a) do nº 2 do artº 26º citado.
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3. Do acórdão de que algumas partes se encontram transcritas pretendeu a assistente, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, recorrer para o Tribunal Constitucional, o que fez por intermédio de requerimento de 14 de Maio de 1999, onde disse:-
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Porque a interpretação da norma constante do nº 2 do artº 31º do Código Penal, relativa à dirimência da ilicitude, de que o douto acórdão recorrido se serviu para absolver as arguidos dos crimes pelos quais vinham acusados, contende com a dignidade da pessoa humana consagrada no artº 1º da Constituição da República Portuguesa à qual, quer o princípio da reserva da intimidade da vida privada (artº 25º, 26º, nº 1, 37º e 38º da Lei Fundamental), quer a liberdade de imprensa, expressão e informação estão subordinados;
Porque no aresto recorrido, ao considerar como provada a prática pela recorrente de actos de prostituição baseando-se para tal na sentença de fls. dos autos (artºs 124º a 127º do Código de Processo Penal), violou-se o princípio do contraditório consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa, dado que nos autos a que respeita tal sentença a ora recorrente nunca foi ouvida/constituída como arguida, ou seja, nunca foi permitido contrariar tal tese aproveitada pelo aresto recorrido.
Porque a interpretação da norma constante na alínea a) do nº 2 do artº 26º da Lei de Imprensa, contende com os «limites da lei interna» a que se reporta o nº 2 do artº 29º da Constituição, norma esta que remete necessariamente para os artºs 10º, 13º, 14º e 15º do Código Penal.
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Porém, por despacho prolatado em 20 de Maio de 1999 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, o recurso não veio a ser admitido, por isso que, relativamente às normas cuja apreciação se pretendia ser levada a efeito pelo Tribunal Constitucional, a recorrente não suscitou a respectiva inconstitucionalidade.
4. É desse despacho que vem deduzida a vertente reclamação, aduzindo a ora reclamante que “na sua motivação de recurso...faz menção expressa
às normas constitucionais em apreço, pelo que se deverá entender que, ao menos tacitamente, foi suscitada a alegada inconstitucionalidade”. E acrescentou que:-
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
...............................; de resto, sempre deverá entender-se que a recorrente não teve possibilidade de suscitar tal questão anteriormente.
à cautela, e por mero dever de patrocínio sempre se dirá o seguinte: sempre poderá considerar-se o recurso interposto nos termos da al. a) do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15.11, dado que «a recusa de aplicação relevante não tem de ser apenas a expressa - pode ser a simples recusa implícita, como se verifica quando a decisão do Tribunal extrai consequências correspondentes à declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade» (...)
Não só as ilegalidades/inconstitucionalidades alegadas resultam expressamente do texto do acórdão recorrido, como deste se extraiem consequências correspondentes à declaração de ilegalidade das normas citadas.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Pronunciando-se sobre a reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal exarou parecer no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
II
1. Como se extrai das amplas transcrições acima efectuadas, torna-se claro que, antecedentemente à prolação do acórdão intentado impugnar, a ora reclamante não assacou a qualquer norma constante do ordenamento jurídico infra-constitucional (ou a uma sua qualquer forma de interpretação) algum vício de desconformidade com a Lei Fundamental.
Antes, e pelo contrário (cfr. «conclusão» 16ª da motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa), o que sustentou foi que a sentença lavrada na 1ª a instância e que colocou sob a censura daquele Tribunal da Relação, ela mesma, violou determinados preceitos da Constituição.
De outro lado, é por demais evidente que nunca foi equacionada qualquer questão de enfermidade constitucional apontada, directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, ao nº 2 do artº 31º do Código Penal e no que tange à exclusão da ilicitude, sendo que foi esse normativo [recte, a alínea b) daquele nº 2 e não a alínea a), como por lapso se escreveu no acórdão desejado recorrer] que determinou, na sentença então censurada perante a Relação de Lisboa, a absolvição do arguido M..
Igualmente, não obstante a sentença de 1ª instância se ter fundado em matéria fáctica extraída de uma certidão de anterior decisão judicial, se não lobriga que, aquando do recurso para a 2ª instância, a ora reclamante tivesse sustentado que uma dada norma jurídica regente da validade dos meios de prova a produzir seria inconstitucional se interpretada no sentido de permitir que se dêem como demonstrados factos tidos por provados em sentença já transitada, factos esses reportados a quem, no respectivo processo, não assumiu a qualidade de arguido.
2. Daqui, para além do mais, resulta que é infundada a perspectiva da reclamante segundo a qual não teve a mesma, antes do acórdão que pretendeu impugnar, oportunidade processual para suscitar as questões de inconstitucionalidade.
3. No que tange às asserções, constantes do requerimento consubstanciador da reclamação, de harmonia com as quais sempre se poderia considerar o recurso querido interpor como estribado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, dir-se-á, de uma banda, que o requerimento apresentado pela ora reclamante em 14 de Maio de 1999 nunca se refere a tal alínea e, de outra, que, de todo em todo, não houve, por parte do aresto da Relação de Lisboa, qualquer recusa de aplicação normativa, seja explícita, seja implicitamente.
III
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se a reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 10 de Novembro de 1999- Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida