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Procº nº 257/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 21 de Junho de 1999 o relator lavrou nos presentes autos (cfr. fls. 18719 a 18726) decisão sumária com o seguinte teor:-
'Notificada do despacho proferido pelo relator de fls. 18.677 a
18.689 (e, no que concretamente ora releva, quanto ao convite que se formulou no ponto 6.2.2.), veio a recorrente Licª M... fazer juntar aos autos requerimento de onde ressalta que, na sua óptica, a decisão que intenta impugnar:-
- de um lado, interpretou e aplicou as normas ínsitas nas disposições combinadas dos números 1 e 2 do artº 308º e do nº 2 do artº 283º, ambos do Código de Processo Penal (na versão anterior à conferida pela Lei nº 59/98, de
25 de Agosto), numa dimensão segundo a qual a asserção constante do citado nº 2 do artº 283º deverá ser entendida por forma a que ‘os elementos probatórios existentes no processo não excluam a veracidade dos factos imputados aos arguidos sem necessidade de indiciação positiva e individualizada desses factos’ ou, o que é o mesmo na perspectiva da aludida recorrente, ‘desde que esses elementos probatórios deixem em aberto a possibilidade de os pressupostos da acusação virem a ser comprovados, de modo concreto e individualizado, num futuro julgamento’;
- de outro, interpretou e aplicou os normativos que se contêm nas disposições conjugadas dos artigos 399º, 402º, nº 1, 428º, nº 1, e 97º, nº 4, ainda do dito corpo de leis, de sorte a que os mesmos ‘não obrigam a Relação a proceder a uma apreciação especificada, individualizada e fundamentada, nem das razões de facto e de direito em que se baseou a decisão instrutória objecto do recurso, nem das razões de facto e de direito que, em apoio dessa decisão, foram apresentadas pelos arguidos nas suas alegações’.
Como suporte desse seu entendimento, a Licª M..., conquanto não deixando de reconhecer que o acórdão desejado recorrer nunca tenha expressamente invocado uma tal interpretação, efectuou explanação de diversos passos daquele aresto de onde, em direitas contas e segundo o seu ponto de vista, decorreria que essa interpretação e concomitante aplicação normativa «funcionou» como razão jurídica do decidido.
É, pois, ocasião de saber se do recurso interposto pela Licª M... referente àqueles grupos de normas e como tal admitido, poderá este Tribunal conhecer, não olvidando que nos situamos perante uma impugnação a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artº 70º da lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a qual, inter alia, exige, de uma banda, a suscitação, «durante o processo», da inconstitucionalidade de uma dada norma (ou, como tem sido aceite pela jurisprudência deste Tribunal, de uma determinada interpretação normativa) e, de outra, que a decisão pretendida colocar sob a censura deste órgão de administração de justiça veio a aplicar a norma (ou uma sua dimensão interpretativa) questionada como fundamento jurídico do juízo decisório nela levado a efeito.
2. Embora de um ponto de vista de estrita lógica discursiva isso porventura se possa afigurar como menos curial, iniciar-se-á a análise da questão em apreço pelo que respeita ao conjunto normativo constituído pelas assinaladas disposições dos artigos 399º, 402º, nº 1, 428º, nº 1, e 97º, nº 4, do Código de Processo Penal.
Da leitura do acórdão lavrado na Relação de Lisboa torna-se por demais evidente que o mesmo, ao menos de forma explícita, não discorreu no sentido de conferir a tal conjunto o entendimento que a recorrente Licª M... questiona como sendo incompatível com a Constituição.
Essa circunstância não impediria, contudo [desde que os demais requisitos pressupositores do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do citado artº 70º se encontrassem presentes], que do recurso se tomasse conhecimento, bastando, verbi gratia, que do teor do aresto impugnado se extraísse inequivocamente que o mesmo, como suporte jurídico-normativo da decisão nele tomada, não podia ter deixado de perfilhar esse entendimento (sob pena de, com toda a probabilidade, a decisão vir a ser outra), muito embora não expressamente invocado.
Todavia, e salvo o devido respeito por contrária postura, a leitura do acórdão sub specie não aponta no sentido de que as disposições conjugadas em causa foram, elas mesmas, interpretadas e aplicadas de modo a que o tribunal de recurso não estava vinculado a proceder a uma apreciação especificada e individualizada das razões de facto e de direito utilizadas pela decisão proferida no tribunal a quo, bem como de idênticas razões utilizadas pelos recorridos, fundamentando devidamente a discordância de umas e de outras.
Não interessa, obviamente, saber se, in casu, o acórdão prolatado pela Relação de Lisboa, na realidade, se alheou de tal apreciação e se não fundamentou (ou não fundamentou devidamente) o juízo de discordância em relação ao decidido pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e também do que, pela recorrente Licª M..., foi aduzido em abono da bondade dessa decisão. O que releva, isso sim, é que não resulta minimamente que, aceitando-se, por mera hipótese de raciocínio, que esses alheamento e não fundamentação ocorreram, isso se deveu a uma interpretação (e sequente aplicação) das normas em questão do modo como a recorrente a imputa a esse acórdão.
Mas, a ser assim, então, em primeira linha, seríamos levados a concluir que a eventual desconformidade com a Constituição residiria, não numa determinada dimensão normativa, decorrente do modo como foi interpretado o conjunto normativo em crise, mas sim na forma como se operou a subsunção ao caso concreto dos preceitos legais onde se contêm aquelas normas, subsunção essa levada a efeito pelo acórdão desejado recorrer, o que vale por dizer que o vício de incompatibilidade com a Lei Fundamental se continha na própria decisão lavrada na Relação de Lisboa.
Ora, como é sabido, objecto do recurso de constitucionalidade tal como o em apreciação são normas e não outros actos do poder público como, por exemplo, as decisões judiciais qua tale consideradas, pelo que, logo por aqui, se não poderia tomar conhecimento da vertente impugnação.
Mas, e continuando na senda da mencionada hipótese de raciocínio, se se entendesse que o aresto em causa não apreciou as razões de facto e de direito carreadas à decisão recorrida e à resposta à motivação de recurso apresentada pela recorrente Licª M...bem como não fundamentou (ou não fundamentou devidamente) o juízo de discordância com o decidido na 1ª instância, então impunha-se à mesma recorrente, tendo em conta o entendimento que propugnava relativamente ao conjunto normativo em apreço, e fundada na alínea b) do artigo
379º ou na alínea a) do nº 1 do artº 380º do Código de Processo Penal, que arguisse a nulidade do acórdão ou requeresse a sua correcção, aproveitando essa actuação processual para suscitar a questão da inconstitucionalidade daquele conjunto normativo quando interpretado no sentido de permitir a um tribunal de relação não levar a efeito tais apreciação e fundamentação.
Uma tal via permitiria, de uma parte, ficar a saber de modo concreto, inequívoco e inquestionável, se foi com base numa interpretação normativa como a ora posta em causa pela recorrente que o acórdão tirado na Relação de Lisboa efectivamente se fundou e, de outra - que, afinal, é a que mais releva -, imporia àquele tribunal de 2ª instância a tomada de decisão sobre a questão de inconstitucionalidade normativa, possibilitando, assim, abrir a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Não tendo a recorrente Licª M... seguido a presente via, tendo podido fazê-lo, não se pode dizer que não desfrutou de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa atinente ao conjunto normativo constituído pelas disposições dos artigos 399º, 402º, nº 1, 428º, nº
1, e 97º, nº 4, do Código de Processo Penal, pelo que, quanto a este particular, não se congrega um dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, motivo pelo qual se não toma conhecimento do objecto do presente forma de impugnação.
3. Resta analisar o conjunto normativo resultante das disposições combinadas dos números 1 e 2 do artº 308º e do nº 2 do artº 283º, ambos do diploma adjectivo criminal, na interpretação cuja feitura é assacada ao acórdão da Relação de Lisboa, interpretação essa que, como acima já se assinalou, a recorrente Licª M... entende ser aquela segundo a qual o aresto em crise perfilhou uma óptica no sentido de as expressões «indícios suficientes», constante do nº 1 daquele artº 308º, e «probabilidade razoável», usada no nº 2 do artº 283º têm o significado equivalente a os elementos probatórios carreados aos autos deixarem ‘em aberto a possibilidade de os pressupostos da acusação virem a ser comprovados, de modo concreto e individualizado, num futuro julgamento’.
Surpreende-se no acórdão intentado impugnar duas asserções de acordo com as quais ‘será possível provar, em julgamento, com a discussão ampla do caso, os elementos constitutivos da infracção imputada aos arguidos’ e que ‘é nessa possibilidade que se concretiza a suficiência de indícios e a decisão jurisdicional positiva de comprovação dos pressupostos jurídico-factuais da acusação com a pronúncia dos arguidos e a remessa dos autos a juízo de julgamento para aí, finalmente, a acusação ser sujeita à derradeira sindicância, a da comprovação do seu mérito’.
De outro lado, no despacho de não pronúncia, objecto do recurso decidido por aquele acórdão, foi entendido - após se considerar que o juízo fundamentador de uma pronúncia se não pode confundir com aqueloutro que deve ser levado a efeito para basear uma condenação criminal, visto que este último tem de se revestir de certeza e, consequentemente, há-de implicar uma muito maior exigência no convencimento subjectivo do juiz - quanto aos conceitos «indícios suficientes» e «probabilidade razoável» que, ‘se o juiz aquando da decisão instrutória, se encontrar numa situação de dúvida razoável, sobre se determinado facto se verificou ou não, deve ele formular um juízo sobre a maior probabilidade de condenação ou de absolvição em sede de julgamento’ E acrescentou-se:- ‘Se concluir que é mais provável a absolvição em sede de julgamento deve desde logo não pronunciar o arguido. Caso conclua que é mais provável a condenação, deve pronunciar o arguido, por se terem apurado indícios suficientes da prática dos factos criminosos’.
Dos transcritos excertos não se infere de modo líquido que o posicionamento, quanto ao entendimento perfilhado pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e pelo Tribunal da Relação de Lisboa quanto à suficiência de indícios e à probabilidade séria ou preponderante de uma condenação, como critério positivo para alicerçar uma pronúncia, tenha sido acentuadamente divergente, e que o critério interpretativo seguido por aquele segundo Tribunal foi aquele que a recorrente Licª M... lhe imputa.
Neste contexto, suscitar-se-iam desde logo fundadas dúvidas sobre se o conjunto normativo de que ora se cura foi interpretado e aplicado pela forma que a recorrente Licª M... considera ter sido levado a cabo no acórdão sob censura e que reputa desconforme à Constituição.
Divergente foi, seguramente, o modo como se aquilatou o material probatório que foi trazido aos autos - quer na perspectiva da ocorrência de factos objectivos, quer na verificação causal dos resultados, quer da imputação subjectiva -, pois que, enquanto o Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa os valorou como não podendo conduzir a uma probabilidade preponderante de condenação em sede de julgamento, o tribunal da 2ª instância, nesse ponto, perfilhou um juízo exactamente oposto.
Esses aquilatar ou valoração, como evidente se depara, é algo que, inquestionavelmente, se não compreende nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, sendo que um ou outra - nada para isso aponta - não resultaram da aplicação do critério normativo (a que se teria acedido no acórdão em causa pela interpretação questionada pela recorrente) utilizado nesse aresto.
3.1. Mas, mesmo que se aceitasse - o que por via hipotética e meramente argumentativa agora se concebe - que, na realidade das coisas, o acórdão de 18 de Novembro de 1998 veio a suportar-se na interpretação do conjunto normativo a que ora nos reportamos, e pela forma como a recorrente Licª M... tem para si como tendo nele sido sufragado e que considera inconstitucional, o que é certo é que sempre se imporia averiguar se - tendo em conta que a questão de inconstitucionalidade quanto a tal conjunto normativo não foi suscitada antes da prolação do dito acórdão - não teria havido, antecedentemente a essa prolação, oportunidade processual para uma tal suscitação.
A posição tomada pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa quanto à «suficiência de indícios» e à «probabilidade preponderante» a que já se fez referência, foi alvo de censura por banda da Representante do Ministério Público ao interpor recurso para a Relação de Lisboa do despacho de não pronúncia (cfr. a título de exemplo, na motivação do recurso por ela apresentada, fls. 16.577 a 16.581, 16.583 e «conclusões» 1.2. e 4 - fls. 16.764 e 16.766), propugnando por um entendimento que, afinal, se reconduz àquele que é agora questionado, do ponto de vista da sua legitimidade constitucional, pela recorrente Licª M....
E, identicamente, um tal entendimento veio a ser sustentado pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, no
«parecer» que formulou ao abrigo do artº 416º do Código de Processo Penal (cfr. fls. 17.955, 17.957, 17.958 e 17.971) e àcerca do qual a recorrente Licª M... se veio a pronunciar.
Pois bem.
Perante este circunstancionalismo, conhecida que era essa postura dos mencionados Representantes do Ministério Público, a qual contrariava, no que concerne à interpretação do conjunto normativo em crise e reportadamente às citadas «suficiência de indícios» e «probabilidade preponderante», o que fora defendido, nesse particular, pela decisão de não pronúncia, então à recorrente Licª M...- porque entendia que a interpretação sustentada por aqueles Representantes era conflituante com a Lei Fundamental - impunha-se o ónus de, na resposta à motivação do recurso do Ministério Público ou na «pronúncia» que veio a efectuar sobre o «parecer» emitido ao abrigo do artº 416º do Código de Processo Penal, suscitar a questão da inconstitucionalidade do entendimento em que se fundava a magistratura titular do exercício da acção penal e que, por entre o mais, foi usado para censurar o despacho de não pronúncia.
Isto vale por dizer, enfim, que, por parte da recorrente Licª M... houve oportunidade processual para suscitar a questão da enfermidade constitucional da interpretação que, a seu ver, veio a ser conferida pelo acórdão ora querido impugnar ao conjunto normativo em questão e, assim, obter, do Tribunal da Relação de Lisboa, uma pronúncia sobre a matéria.
Aquela interpretação (e, repete-se, a ter eventualmente ocorrido) não se desenha pois, como tendo sido conhecida, de forma surpreendente, inopinada ou inusitada, tão só com a prolação do aresto do tribunal de 2ª instância. Ela era já algo com que, de modo razoável e em face do desenrolar processual de que acima se deu notícia, se poderia contar, perante o que fora sustentado pelo Ministério Público (e isto sem se entrar na questão de saber se, em face de alguma jurisprudência, designadamente tomada pelos tribunais superiores, a referida interpretação se haveria de considerar como sendo, de todo em todo, inesperada).
Falece, assim, no caso deste conjunto normativo (e na hipótese que se figurou no presente ponto), um dos requisitos do recurso aludido na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 e que é, precisamente, o da não suscitação da questão de constitucionalidade não obstante ter havido oportunidade processual para tanto, razão pela qual, com base no nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, quanto a ele, se não toma conhecimento do objecto do recurso'.
2. Da transcrita decisão reclamou para a conferência, nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, a recorrente Licª M....
Em síntese, invocou, no que tange às normas constantes dos artigos
308º, números 1 e 2 , e 283º, ambos do Código de Processo Penal:-
- que, no seu entendimento, era líquido que a interpretação, quanto a tais normas, acolhida pelo acórdão pretendido recorrer (e que, sumuladamente, consistiria em, ao 'não se demonstrar em sede de instrução a impossibilidade de os arguidos terem cometido os factos de que são acusados, deve emitir-se despacho de pronúncia') foi acentuadamente divergente daqueloutra perfilhada pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, contrariou manifestamente o ponto de vista propugnado pelo Ministério Público (no ponto em que os representantes desta magistratura defenderam que os autos continham elementos probatórios suficientes para considerar indiciada a prática do crime), e unicamente essa mesma interpretação permitiu 'explicar o juízo formulado a propósito de cada um dos elementos da infracção alegadamente cometida pelos arguidos';
- que a um tal ponto de vista se deve ser chegado quando, da leitura do aresto em causa, se extrai que nunca no mesmo se formulou 'um juízo de maior probabilidade sobre a existência de qualquer dos elementos essenciais do crime imputado'.
E, no que respeita às normas ínsitas nos artigos 399º, 402º, nº 1,
428º, nº 1, e 97º, nº 4, ainda do mesmo corpo de leis, argumentou, também em síntese:-
- que, na sua perspectiva, não é correcta a óptica seguida na decisão sumária sob reclamação e de acordo com a qual, a não ter havido, por banda do Tribunal a quo, uma apreciação especificada e individualizada das razões de facto e de direito utilizadas pelo Juiz do Tribunal de Instrução Criminal, isso dever-se-ia, não a uma forma de interpretação e aplicação dos normativos em causa, mas sim a uma subsunção ao caso concreto dos respectivos preceitos;
- que, igualmente, não se perspectiva como certa a posição, seguida na decisão reclamada, e de harmonia com a qual a ora reclamante teve oportunidade de suscitar a nulidade do acórdão desejado recorrer e, não o tendo feito, não se poderia dizer que não desfrutou de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade das normas em questão, tendo em conta a jurisprudência seguida pelo Tribunal Constitucional segundo a qual a arguição de nulidade de uma decisão judicial não constitui, em regra, momento processualmente adequado para a suscitação da questão de inconstitucionalidade;
- que o acórdão tirado na Relação de Lisboa, quanto à decisão nele tomada, só 'pode encontrar fundamento na concepção interpretativa' que foi indicada pela ora reclamante nos seus requerimentos de interposição de recurso e de resposta ao convite que lhe foi dirigido pelo relator do Tribunal Constitucional;
- que a 'admissibilidade, como objecto de recursos de constitucionalidade, de normas ou interpretações normativas implicitamente aplicadas pressupõe necessariamente' que, 'na dúvida entre entender que o tribunal violou deliberadamente a lei ou que adoptou uma concepção normativa coerente com a sua prática constante', haverá que admitir a segunda alternativa.
2.1. Respondendo à reclamação deduzida pela Licª M..., o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da respectiva improcedência, porquanto, no seu ponto de vista, o acórdão lavrado no Tribunal da Relação de Lisboa não só não levou a efeito a interpretação e consequente aplicação dos blocos normativos indicados pela ora reclamante e pela forma como a mesma as imputa, como ainda a mencionada reclamante não curou de arguir a nulidade daquele acórdão, em face do vício que se surpreendia em tal decisão.
Por outro lado, as assistentes MC... e MA... identicamente propugnaram pela improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
3. A vertente conferência acolhe, no essencial, a fundamentação carreada à peça processual agora sob censura e que conduziu ao que na mesma foi decidido, sendo que este Tribunal tem para si que a argumentação aduzida no requerimento consubstanciador da reclamação não infirma os fundamentos fácticos, lógicos e jurídicos da aludida decisão.
Acrescenta-se ainda que, pelo que respeita ao argumento, utilizado pela Licª M... - e que se suporta em não ter utilizado a via de arguição de nulidade do acórdão desejado recorrer para então suscitar a ou as questões de inconstitucionalidade normativa, justamente pela razão de que a jurisprudência do Tribunal Constitucional aponta no sentido de que, em regra, não é momento processualmente adequado para uma tal suscitação que a mesma se efectue em requerimento de arguição de nulidades - que o mesmo não colhe.
Na realidade, se é certa aquela asserção quanto à jurisprudência constitucional, menos certo não é que se não pode passar em claro, e por isso se o sublinha, que não é por mero lapso ou acaso que se tem utilizado a expressão
«em regra», o que, aliás, não é escamoteado pela reclamante.
É que, de acordo com aquela mesma jurisprudência, se uma «parte» processual for surpreendida com uma interpretação normativa acolhida numa decisão jurisdicional, interpretação essa de todo insólita e inesperada, com a qual, razoavelmente, não poderia contar e que, dado o vício - fundado em inconstitucionalidade - de que padece, é passível de desencadear uma nulidade
[no caso, eventualmente uma nulidade de decisão fundada nas alíneas b) ou d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil] que acarrete a insubsistência da própria decisão, então, para efeitos do pressuposto, contido na alínea b) do nº
1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de suscitação da questão de inconstitucionalidade
«durante o processo», impõe-se a essa «parte» o ónus de utilizar o meio processual adequado - arguição de nulidade - e que no mesmo leve a efeito a referida suscitação.
Ou seja: aquela jurisprudência aponta no sentido de a suscitação da questão de inconstitucionalidade por via de arguição de nulidade se impor sempre que uma tal desconformidade com a Lei Fundamental acarrete o arguido vício e este se possa repercutir utilmente na decisão tomada, sendo que do mesmo curará, como é óbvio, o tribunal a quo, que, assim, ao tratar da questão atinente à nulidade, terá de equacionar aqueloutra de inconstitucionalidade.
Por isso, não é censurável o que, a propósito, é referido na decisão reclamada.
4. Em face do exposto, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se o juízo, constante da decisão sumária em crise, de não conhecimento do objecto do recurso interposto pela Licª M....
Custas pela mesma, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 10 de Novembro de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida