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Processo nº 159/00
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Tribunal de Círculo de Pombal, de 30 de Outubro de
1997 (de fls. 318 e segs.), A. G. foi condenado, como autor material de um crime de receptação, punido pelo artigo 231º do Código Penal com a pena de prisão até
5 anos ou com multa até 600 dias, na pena concreta de 150 dias de multa, à taxa diária de 5 mil escudos.
O acórdão condenatório foi integralmente confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (por acórdão de fls. 367 e segs.), na sequência de recurso interposto pelo arguido.
Perante a falta de pagamento da multa, o Tribunal de Círculo de Pombal notificou o ora recorrente para se pronunciar sobre a conversão em prisão da multa em que tinha sido condenado (cf. o despacho de fls. 480, verso).
A. G. veio, em resposta à notificação, afirmar a insusceptibilidade de conversão, nos seguintes termos:
'1º
Os factos que levaram à condenação do Arguido ocorreram no âmbito da aplicação do anterior Código Penal, ou seja antes da entrada em vigor do actual Código Penal revisto, que ocorreu em 1 de Outubro de 1995.
2º
Conforme se vê da Douta Sentença proferida o Arguido A. G. foi condenado na pena de 150 dias de multa à taxa diária de Esc. 5.000$00 (cinco mil escudos),
3º
não sendo fixado na Sentença qualquer tempo de prisão em alternativa, conforme previa o nº 3 do artº 46º na anterior redacção.
4º
O actual artº 49º do Cód. Penal é pois inaplicável ao Arguido já que a Lei Penal não tem aplicação retroactiva salvo se lhe for mais favorável.
5º
Acresce que o não pagamento da multa não é imputável ao Arguido porquanto este não dispõe actualmente de meios ou recursos financeiros próprios que lhe permitam efectuar o pagamento do valor elevado da multa.
6º
Acresce que o nº 3 do artº 49º do Código Penal, na sua actual redacção, ao exigir também para que o Arguido não seja privado da liberdade a prova de um facto negativo, é inconstitucional por duas ordens de razões:
7º
Em primeiro lugar por violar o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a Lei (artº 13º da Constituição da República Portuguesa).
8º
Em segundo lugar por violar o disposto no artº 32º do mesmo diploma por ao exigir a prova de um facto negativo, não assegurar ao Arguido todas as garantias de defesa já que a prova irrefutável de um facto negativo é de todo em todo impossível, ficando pura e simplesmente na disponibilidade incontrolada do julgador que não da sua livre convicção que terá de ser sempre fundamentada.
É ainda inconstitucional por violar o disposto no artº 29º do mesmo diploma.'
O Juiz do Tribunal de Círculo de Pombal considerou, por um lado, que
'o disposto nesse artigo 49º em nada agrava a situação dos arguidos e é de aplicação imediata'. Por outro lado, afastou a alegação de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, ou dos artigos
29º e 32º da Lei Fundamental.
2. Do despacho do Juiz do Tribunal de Círculo de Pombal que procedeu
à conversão em prisão da pena de multa não paga recorreu o condenado para o Tribunal da Relação de Coimbra (por requerimento de fls. 501 e segs.), tendo concluído, no que agora interessa, do seguinte modo:
'1 - Sendo o Arguido condenado como autor material de um crime de receptação por factos que contra ele foram dados como provados e que teriam ocorrido na vigência do Cód. Penal de 1982 na pena de 150 dias de multa e bem ainda no pagamento solidário das indemnizações arbitradas, é-lhe inaplicável o artº 49º do actual Cód. Penal se a sentença não fixou desde logo ao abrigo do nº 3 do artº 46º do C. Penal na sua redacção anterior qualquer pena de prisão em alternativa por não ser de aplicação retroactiva.
2 - O nº 3 do artº 49º do actual Código Penal, ao exigir ao Arguido, sob pena de privação da liberdade, a prova de um facto negativo ou seja de que a razão do não pagamento lhe não é imputável equivale à consagração da prisão por dívidas ou à sua possibilidade violando designadamente princípios fundamentais de direito processual penal que têm no nosso direito constitucional consagração inequívoca designadamente os princípios do acusatório, do princípio in dubio pro reo e o princípio de que o processual penal deverá assegurar todas as garantias de defesa. (Cfr. artºs 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa).
3 - A interpretação e aplicação do art. 49º do C. Penal com o sentido adoptado na Decisão Recorrida é pois manifestamente inconstitucional já que, viola designadamente os arts. 13º, 29º, 32º da Constituição da República Portuguesa. Padecendo,
(...)
5 - Inconstitucionalidades que se suscitam.
6 - A Douta Decisão Recorrida violou, como já vimos, de entre outras as seguintes normas: artº 46º nº 3 do C. Penal na sua redacção anterior, actual redacção do art. 49º do mesmo diploma e artºs 13º, 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa.'
O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso (por acórdão de fls. 530 e segs.), afirmando designadamente o seguinte:
'Efectivamente, o recorrente foi condenado em 1997 por factos ocorridos em 1994, portanto antes da entrada em vigor do CP revisto, circunstância que obrigou o Tribunal a ponderar na sentença entre a aplicação ao caso do CP na redacção inicial ou na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de 15 de Março, aliás em obediência ao estabelecido no nº 4, do artigo 2º, do CP, em qualquer das redacções, referindo a propósito que, aplicando-se o CP na redacção de 1982, o arguido seria condenado em 18 meses de prisão e em 45 dias de multa à taxa diária de 5.000$00 e que aplicando-se o CP revisto o arguido seria condenado na pena de 150 dias de multa à mesma taxa diária, pelo que optou, naturalmente, por ser o regime concretamente mais favorável. Por aplicar o CP na redacção de 1995 (cfr. fls 7 verso). Ora, tendo-se optado, como se impunha, por este regime, não se deveria ter fixado na mesma sentença, como não se fixou, a pena subsidiária, como era necessário na vigência do nº 3, do artigo 46º, da versão originária do CP, quanto à prisão alternativa, antes e bem, a ordem de cumprimento da prisão subsidiária foi dada através do despacho ora impugnado, após verificados os pressupostos enunciados no nº 1, do artigo 49º, do CP revisto e depois de ter sido dada oportunidade ao MºPº e ao recorrente para se pronunciarem sobre tal questão, ou seja, depois de ter sido respeitado o princípio do contraditório. E dissemos que bem se procedeu dado que, embora a prisão subsidiária corresponda, após modificações levadas a cabo no CP pelo Decreto-lei nº 48/95, à então denominada prisão em alternativa, verificou-se alteração não só do respectivo nome, mas também das assinaladas ocasião e forma da sua fixação devido a uma melhor técnica legislativa, porquanto a prisão resultante da conversão da multa criminal não está para com tal multa numa relação de alternatividade, mas de subsidiariedade, já que só deve ser aplicada e, consequentemente, cumprida, depois de esgotados todos os meios de cumprimento da multa (neste sentido, cfr., v. g., Maia Gonçalves, CP Anotado, 12ª edição, 1988, pág. 200). Por outro lado, o regime pelo qual se opte tem de ser aplicado em bloco, não sendo lícito ao julgador respigar de cada uma das versões do Código penal aplicáveis disposições isoladas, de forma osmótica ou simbiótica (neste sentido cfr., v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989, BMJ
390/142). Aliás, misturando ou combinando as disposições legais mais favoráveis de cada uma das leis concorrentes, o juiz estaria arvorado em legislador, criando uma terceira lei dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo (neste sentido cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, CP, 1º Volume, pág. 100, Edição de
1995). Carece, pois, claramente de razão o recorrente, quando defende que lhe é inaplicável o artigo 49º, do actual CP, se a sentença não fixou desde logo, ao abrigo do nº 3, do artigo 46º, do CP na sua redacção anterior, qualquer pena de prisão em alternativa. Assim como carece de razão no que concerne às inconstitucionalidades que suscita. Com efeito, a lei criminal não foi aplicada retroactivamente, uma vez que, como vimos, a prisão subsidiária corresponde à prisão em alternativa, prevista na lei
à data do crime que o recorrente praticou, pelo que não se verifica violação do artigo 29º, da CRP. E o nº 3, do artigo 49º, do actual CP, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigos 13º, da CRP, dado que a execução da prisão subsidiária pode ser declarada extinta se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável. Exigência que de modo algum põe em causa as garantias de processo criminal a que se reporta o artigo 32º da CRP, porquanto o aforismo negativa non sunt probanda não quer dizer que os factos negativos não têm de ser provados, mas apenas que a simples negação pelo demandado da alegação do autor não precisa de ser provada. Por isso esta regra, quando entendida no sentido de que não carecem de prova os factos negativos, não é de aceitar, pois, se o direito, que se faz valer, tem como requisito um facto negativo, deve esse facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos. Não há nenhum motivo para soluções diferentes nos dois casos, dado que os factos negativos não têm que se presumir pela mera circunstância de o serem (cf. Vaz Serra, Provas, pág. 64). In casu, ninguém melhor que o recorrente poderia fazer a prova de que não tinha condições económicas para efectuar o pagamento da multa, prova que nunca se propôs fazer, não obstante ter sido notificado para se pronunciar sobre a eventualidade de vir a cumprir prisão subsidiária e depois de efectuadas as averiguações possíveis sobre aquelas condições. E só se o recorrente tivesse tido essa preocupação de se propor provar que não tinha condições económicas para efectuar o pagamento da multa, a existirem dúvidas no espírito do julgador sobre tais condições, seria ocasião de se fazer apelo ao princípio in dubio pro reo, princípio só invocável, como é óbvio, quando são colocadas dúvidas.'
3. Inconformado, o condenado recorreu para o Tribunal Constitucional
(cf. requerimento de fls. 534), pretendendo a 'apreciação em sede constitucional nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, da norma do nº 3 do artº 49º do actual Código Penal, nº 3 do artigo 46º do C. Penal na sua anterior redacção na medida em que, ao exigir ao Recorrente sob pena de privação da sua liberdade a prova de um facto negativo, ou seja, de que a razão de não pagamento lhe não é imputável equivale à consagração da prisão por dívidas ou à sua possibilidade, violando designadamente princípios fundamentais do direito processual penal designadamente os princípios do acusatório, 'in dubio pro reo' e o princípio de que o processo penal deverá assegurar todas as garantias de defesa, violando em suma designadamente os artºs 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa'.
Chamado a alegar neste Tribunal, veio o recorrente afirmar o seguinte, nas conclusões das alegações (de fls. 99 e segs.):
'1 - tendo todos os cidadãos a mesma dignidade social E SENDO IGUAIS PERANTE A LEI, a substituição das penas de multa por prisão viola o disposto no nº 2 do artº 13º da Constituição da República Portuguesa. Já que,
2 - privilegia e beneficia quem tem poder económico e financeiro para efectuar o pagamento da multa e,
3 - prejudica quem não dispõe desses recursos que por falta de
'dinheiro' corre o risco de ver substituída a multa em dias de prisão efectiva. Ou seja,
4 - por falta de dinheiro não tem o Recorrente POSSIBILIDADE DE COMPRAR A LIBERDADE!... Acresce que,
5 - fazendo o nº 3 do artº 49º do C. Penal depender a suspensão da Execução da prisão subsidiária da prova a cargo do Arguido, que lhe exige que prove que o não pagamento da MULTA LHE NÃO É IMPUTÁVEL
é por demais óbvio,
6 - que a prova de tal factualidade negativa é muito difícil se não impossível pelo que IMPONDO-SE TAL ÓNUS AO ARGUIDO, põe-se em causa em PROCESSO PENAL princípios fundamentais aos quais foi conferida dignidade constitucional como sejam os PRINCÍPIOS DO ACUSATÓRIO, o do 'IN DUBIO PRO REO' consagrados nos artºs 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa que também se mostram violados.
7 - A Douta Decisão Recorrida violou, assim, salvo o devido respeito pelos fundamentos invocados e por outros que V. Excªs se dignarão suprir como pessoas que além de guardiões da Constituição, não deixam de ser os últimos guardiões da liberdade, o disposto designadamente nos artigos 13º, 29º, e 32º da Constituição da República Portuguesa. Pelo que,
8 - deve declarar-se a inconstitucionalidade da norma do nº 3 do artº
49º do actual Código Penal, nº 3 do artº 46º do Código Penal na sua redacção anterior, na medida em que permita a substituição da multa por prisão quando aquela não é paga voluntária ou coercivamente'.
4. O Ministério Público, nas suas contra-alegações (de fls. 104 e segs.), veio começar por afirmar que o objecto do recurso deveria considerar-se
'reportado à redacção actual do nº 3 do artigo 49º do Código Penal (disposição efectivamente aplicada ao arguido), carecendo de sentido a 'invocação' do nº 3 do artigo 46º do mesmo Código, na sua anterior redacção '.
Relativamente ao mérito do recurso, o magistrado do Ministério Público defendeu a respectiva improcedência. Antes de mais, por não estar em causa uma – 'obviamente inconstitucional' – 'prisão por dívidas'. E acrescentou:
'Os princípios constitucionais invocados pelo recorrente não obstam, deste modo, a que uma pena de multa, não paga pelo arguido condenado, possa implicar a
'conversão' ou o 'ressurgimento' da pena de prisão que – no caso 'sub juditio' – podia ser cominada como consequência da prática de certo tipo legal de crime ) o previsto no artigo 231º, nº 1 do Código Penal) ressalvando inteiramente a norma questionada no presente recurso a relevância de um incumprimento não devido a causa imputável ao próprio arguido'.
Em segundo lugar, entende que 'o sistema instituído pelo legislador penal garante, aliás, de forma suficiente, os interesses legítimos do arguido que se defronte com uma efectiva dificuldade económica no pagamento da multa, só como última 'ratio' admitindo a sua 'conversão' em prisão efectiva', citando, para ilustrar tal afirmação, a relevância da situação económica do arguido na determinação do montante da multa (nº 2 do artigo 47º), a possibilidade de proceder ao pagamento desta a prestações ou de diferir no tempo o momento do cumprimento (nº 3 do artigo 47º), a faculdade de requerer a substituição da multa por dias de trabalho (artigo 48º do Código Penal) e a possibilidade de suspensão do cumprimento da prisão sob a condição do cumprimento de deveres ou regras de conduta (nº 3 do artigo 49º).
Por último, o Ministério Público defendeu que 'não é desproporcionado e lesivo das garantias de defesa a imposição ao arguido do ónus de convencer o tribunal de que ocorre uma situação de real e efectiva impossibilidade de cumprimento da pena de multa, fundado na alegação de que tal traduziria a imposição do ónus de provar um 'facto puramente negativo': é que a prova de tal 'facto' radicará, naturalmente, na demonstração convincente pelo arguido de que ocorre uma situação de real carência económica que o impossibilita de solver a multa que lhe foi cominada (mesmo com a concessão dos
'benefícios' consentidos pelo nº 3 do artigo 47º do Código Penal)', e lembrou que o arguido, no caso dos autos, 'não diligenciou minimamente proceder a tal demonstração, limitando-se a invocar genericamente que ' não dispõe actualmente de meios ou recursos financeiros próprios que lhe permitam efectuar o pagamento do valor elevado da multa', sem concretizar factos, nem oferecer quaisquer provas – e impugnando a decisão proferida com base em razões que nada têm que ver com um possível 'excesso' ou desproporção na interpretação do nível de exigência com que deve ser avaliado o cumprimento satisfatório de tal ónus probatório'.
5. Cabe começar por delimitar o objecto do recurso. Segundo consta do respectivo requerimento de interposição, o recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade 'da norma do nº 3 do artº 49º do actual Código Penal, nº
3 do artigo 46º do C. Penal na sua anterior redacção, na medida em que, ao exigir ao Recorrente sob pena de privação da liberdade a prova de um facto negativo, ou seja, de que a razão de não pagamento lhe não é imputável equivale
à consagração da prisão por dívidas ou à sua possibilidade (...)'.
O nº 3 do artigo 49º do Código Penal, na redacção em vigor
(resultante da Reforma operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, e não alterada pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro), dispõe:
'Artigo 49º Conversão da multa paga em prisão subsidiária
(...)
3. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de
1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
(...)'
Por seu turno, o nº 3 do artigo 46º, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, tinha o seguinte teor:
'Artigo 46º Pena de multa
(...)
3. Quando o tribunal aplicar a pena de multa será sempre fixada na sentença prisão em alternativa pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
(...)
Do citado requerimento de interposição de recurso, bem como das alegações apresentadas neste Tribunal, resulta com clareza que a norma que o recorrente considera inconstitucional é a que impõe ao condenado, para evitar a execução da prisão subsidiária, o ónus de 'provar que a razão do não cumprimento da multa lhe não é imputável'. O cumprimento de tal ónus implicaria a difícil, se não impossível, prova de um 'facto negativo', equivalendo o regime fixado a uma verdadeira prisão por dívidas.
Nas alegações, porém, o recorrente, além de manter a invocação de inconstitucionalidade a que acaba de se fazer referência, sustentou ainda que 'a substituição das penas de multa por prisão viola o disposto no nº 2 do artigo
13º da Constituição da República Portuguesa', porque 'privilegia e beneficia quem tem poder económico e financeiro para efectuar o pagamento da multa'. Todavia, e ainda que se possa entender ter sido colocada uma questão de constitucionalidade normativa, não pode o objecto do recurso ser alargado nas alegações relativamente à delimitação efectuada no requerimento de interposição do recurso. Assim, neste processo não está propriamente em causa o regime de conversão da multa não paga em prisão subsidiária, regulado designadamente nos nºs 1 e 2 do artigo 49º do Código Penal, normas cuja inconstitucionalidade o recorrente não invocou em devido tempo.
Por outro lado, não questionando o recorrente verdadeiramente a constitucionalidade do regime previsto na anterior redacção do nº 3 do artigo
46º do Código Penal (apesar de lhe fazer referência na parte em que delimita o objecto do recurso), apenas pode o Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade do nº 3 do artigo 49º do Código Penal em vigor, na parte em que faz depender a suspensão da execução da prisão subsidiária da prova, pelo condenado, de que 'a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável'.
6. Na perspectiva do recorrente, o regime previsto no nº 3 do artigo 49º do Código Penal poria em causa os princípios do acusatório, in dubio pro reo, e da plenitude das garantias de defesa, violando designadamente os artigos 13º, 29º e
32º da Constituição.
Importa antes de mais afirmar que não se vislumbra em que é que a norma impugnada contraria a 'estrutura acusatória do processo penal' constitucionalmente garantida (nº 5 do artigo 32º), não tendo de resto o recorrente procedido a qualquer explicitação que permitisse compreender o sentido desta imputação de inconstitucionalidade.
O mesmo pode dizer-se relativamente à alegada violação do artigo 29º da Constituição, cujo sentido o recorrente também não indica, em nenhuma das peças processuais produzidas.
Afirma também o recorrente, nas suas alegações, ter sido violado o princípio da igualdade (artigo 13º). Todavia, na medida em que a lesão do referido princípio é referida à 'substituição das penas de multa por prisão'
(conclusão nº 1 das alegações apresentadas neste Tribunal), prevista em norma que não integra o objecto do presente recurso, não tem também sentido a análise dessa alegada lesão.
Resulta do exposto que a norma do nº 3 do artigo 49º deverá ser confrontada com o princípio de que o processo penal assegura todas as garantias de defesa (nº 1 do artigo 32º) e, em especial, com o princípio in dubio pro reo.
7. Um dos aspectos da argumentação do recorrente consiste na afirmação de que é 'muito difícil, se não impossível', a prova de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado, dado tratar-se da demonstração de uma 'factualidade negativa'. Dessa excessiva dificuldade ou mesmo impossibilidade resultaria a contrariedade à plenitude das garantias de defesa, consagrada no nº 1 do artigo 32º.
Salta à vista a falta de procedência desta imputação. Na verdade, a demonstração de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado pode naturalmente fazer-se por via da prova de factos positivos, de onde resulte essa não imputabilidade. Basta pensar, por exemplo, na apresentação de determinados documentos (declaração de rendimentos, recibo do subsídio de desemprego, atestado da Junta de Freguesia, declaração relativa a eventual internamento hospitalar, entre outros), dos quais se deduza não ser imputável ao condenado o não pagamento da multa em que foi condenado.
Conclui-se, pois, que não é à prova de um facto ou (factualidade) negativo que o nº 3 do artigo 49º do Código Penal faz apelo, mas antes à demonstração dos factos, que regra geral serão positivos (insuficiência económica, doença, etc.), de onde se extrai a conclusão de que o não pagamento se deveu a causa não imputável ao condenado.
Não se pode, pois, considerar, em função da razão apontada pelo recorrente, que a norma impugnada contrarie o nº 1 do artigo 32º, onde se consagra a plenitude das garantias de defesa.
8. Importa ainda verificar se o regime em causa no presente recurso de constitucionalidade resiste incólume à invocação do princípio in dubio pro reo.
Este princípio, que se aceita decorrer da Constituição em estreita ligação com o princípio da presunção de inocência (cfr., quanto à relação entre a presunção de inocência e o in dubio pro reo, HELENA MAGALHÃES BOLINA, Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção de inocência (artigo
32º, nº 2, da CRP), in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXX, 1994, págs. 440-446), assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente (CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, reimp. da Universidade Católica, Lisboa,
1981, pág. 310). Noutros termos, pode afirmar-se que é 'resultante de dois postulados processuais – o postulado processual geral da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre (...) e o postulado processual criminal que tem por incondicionalmente inadmissível uma condenação penal em que se não tenha
'convencido' o réu da sua efectiva responsabilidade e culpabilidade'
(CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, policop., Coimbra, 1968, págs. 55-56).
Assim, decorre do in dubio pro reo que 'todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à 'dúvida razoável' do tribunal, também não possam considerar-se como 'provados' (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, reimp., Coimbra, 1984, pág. 213).
9. Como já se disse, não se integra no objecto deste processo a constitucionalidade da conversão da multa não paga em prisão subsidiária, em si mesma considerada, nem dos diferentes aspectos da sua regulamentação actual. Importa tão-só apurar se viola a Constituição a regra prevista no nº 3 do artigo
49º, enquanto faz depender a suspensão da execução da prisão subsidiária da demonstração pelo condenado de que o não pagamento da multa lhe não é imputável.
Cabe desde já dizer que não se verifica a invocada inconstitucionalidade por lesão do princípio in dubio pro reo. E isto, pelas seguintes razões.
Antes de mais, importa ter presente que, como refere o magistrado do Ministério Público nas contra-alegações apresentadas neste Tribunal, o Código Penal prevê diversos mecanismos dirigidos a tornar a prisão subsidiária um instrumento de 'última ratio', e nos quais a situação concreta do arguido é objecto de ponderação relevante. Particular importância têm, aqui, a tomada em consideração da condição económico-financeira e dos encargos pessoais do arguido na determinação do montante correspondente a cada dia de multa (nº 2 do artigo
47º), a possibilidade de autorização judicial para o cumprimento da multa em prestações, ou num prazo que não exceda um ano, bem como a faculdade de o condenado requerer a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade. Deve concluir-se, a partir do regime vigente, que a imposição de pena de multa tem como condição necessária a possibilidade de o arguido proceder ao seu cumprimento. Conclusão contrária a esta, de resto, poderia revelar-se violadora do princípio da igualdade, por levar a que apenas aqueles que não tivessem condições de pagar a multa viessem a ter de cumprir a prisão subsidiária. Note-se, de resto, que o Tribunal Constitucional, através do seu acórdão nº
149/88 (D.R., II, 17/9/98, pág. 8570), embora reportando-se ao regime
(diferente) decorrente da versão inicial do Código Penal de 1982, afirmou:
'(...) se o juiz, no momento de ditar a pena, já apurou que o réu não tem, efectivamente, possibilidades de pagar a multa, não faria sentido que tivesse sempre de condená-lo numa pena efectiva de multa (...)' (cf. ainda FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Lisboa,
1993, págs. 131-132 e 146). Do exposto resulta que o âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 49º é, no fundo, circunscrito aos casos em que a falta de pagamento da multa pelo condenado se deve a alguma alteração superveniente da situação que fora anteriormente dada como provada pelo tribunal (neste sentido, relativamente ao regime da versão inicial do Código penal, v. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 145, que se refere à
'(...) deterioração fortuita das condições económico-financeiras do condenado após a condenação, ligada a paralela deterioração das condições pessoais para cumprir os dias de trabalho sucedâneos, com os quais o condenado tenha concordado').
Tendo em conta que o objecto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional é constituído por normas jurídicas aplicadas na decisão recorrida, e que tais normas são tomadas no sentido com que foram aceites e aplicadas nessa decisão – isto é, normas interpretativamente mediadas pelo tribunal recorrido –, há que apurar o exacto alcance que foi dado ao nº 3 do artigo 49º pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Ora, cabe destacar do acórdão o seguinte trecho, especialmente significativo para o problema em apreciação:
In casu, ninguém melhor que o recorrente poderia fazer a prova de que não tinha condições económicas para efectuar o pagamento da multa, prova que nunca se propôs fazer, não obstante ter sido notificado para se pronunciar sobre a eventualidade de vir a cumprir prisão subsidiária e depois de efectuadas as averiguações possíveis sobre aquelas condições. E só se o recorrente tivesse tido essa preocupação de se propor provar que não tinha condições económicas para efectuar o pagamento da multa, a existirem dúvidas no espírito do julgador sobre tais condições, seria ocasião de se fazer apelo ao princípio in dubio pro reo, princípio só invocável, como é óbvio, quando são colocadas dúvidas.'
Daqui resulta claramente que o tribunal a quo, salientando que não viola a Constituição a norma que prevê a necessidade de provar factos negativos, não interpretou a disposição em causa no sentido de impor um estrito ónus a cargo do condenado de demonstrar que a causa do não pagamento da multa lhe não é imputável. Pelo contrário, o tribunal considerou existir antes um dever de cooperação do condenado, cujo cumprimento é pressuposto da própria intervenção do princípio in dubio pro reo. Que o acórdão recorrido não entendeu o nº 3 do artigo 49º no sentido de prescrever um verdadeiro ónus a cargo do condenado resulta da afirmação de que as dúvidas que viessem a existir no espírito do julgador haveriam de ser resolvidas não contra o arguido (como aconteceria se tal ónus tivesse efectivo lugar) mas a seu favor. Por outro lado, não deixou o tribunal de considerar que seria necessário que o condenado 'tivesse a preocupação de se propor provar que não tinha condições económicas para efectuar o pagamento da multa'. Foi por o condenado não se ter sequer proposto fazer essa prova (e não por ter omitido a respectiva demonstração cabal) da não imputabilidade do não pagamento da multa, que lhe foi negada a suspensão da execução da prisão subsidiária. Em sentido substancialmente não muito diferente, afirma o Ministério Público, nas suas alegações, que 'no caso dos autos – o arguido não diligenciou minimamente proceder a tal demonstração, limitando-se a invocar genericamente que 'não dispõe de meios ou recursos financeiros próprios que lhe permitam efectuar o pagamento do valor elevado da multa', sem concretizar factos, nem oferecer quaisquer provas – e impugnando a decisão proferida por razões que nada têm que ver com um possível 'excesso' ou desproporção na interpretação do nível de exigência com que deve ser avaliado o cumprimento satisfatório de tal ónus probatório'. Entendida nos termos apontados a norma que constitui objecto deste processo, revela-se sem consistência a imputação de violação do princípio in dubio pro reo. Assim, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida