Imprimir acórdão
Processo n.º 546/99
2ª secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. A... interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, recurso contencioso eleitoral, pedindo que se declarasse nula ou anulada a deliberação de 11 de Março de 1998 da Comissão Regional da Região de Turismo do Nordeste Transmontano. Por sentença de 25 de Março de 1999 daquele Tribunal foi concedido provimento ao recurso, anulando-se em consequência o acto de eleição do Presidente da Comissão Executiva da mencionada Região de Turismo, para o efeito considerando como ilegal a representação em tal acto da Junta Autónoma de Estradas pelo Governador Civil de Bragança. Desta decisão interpôs António André Pinelo Tiza recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Em contra-alegações que apresentou, A... defendeu a manutenção da sentença do tribunal de 1º instância, uma vez que a 'indicação do Governador Civil enquanto representante da Junta Autónoma de Estradas [...] infringe o artigo 12º, n.º 1, al. c) iv, já citado, do D.L. 151/93, de 6 de Maio' (ponto 49 das contra-alegações). Segundo sustentou, 'prevendo a lei a representação da Junta Autónoma das Estradas, não pode o seu presidente alienar a competência para a sua apresentação, isto é, transferir ou ceder a terceiros a referida representação, a tal se opondo os artigos 266º C.R.P. e 29º C.P.A.' (ponto 55). Em sede de conclusão voltou a defender que 'ocorre violação do artigo 12º, n.º
1, al. c) iv, do D.L. 151/93, de 6 de Maio'[conclusão L)]. O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 9 de Junho de 1999, concedeu provimento ao recurso – concluindo que 'não foram, assim, violados os artigos
12º, n.º 1, alínea c), subalínea v), dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 151/93, de 6/5 e 266º da C.R.P., não se enquadrando a situação em apreciação na previsão dos n.ºs 1 e 2 do artigo 29º do C.P.A', decidiu que 'o acto eleitoral não padece da ilegalidade que lhe é assacada na sentença do tribunal
‘a quo’ que, assim, não se pode manter'.
2. Deste último acórdão pretendeu A... recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), afirmando que:
'A norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada é o artigo 12º, n.º
1, al. c) do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio, quando interpretada no sentido de habilitar que a representação institucional de uma pessoa colectiva pública – no caso a Junta Autónoma de Estradas – se possa efectuar mediante instituto de direito privado – e por órgão de pessoa colectiva pública distinta
– no caso o Governador Civil, órgão do Estado, cujo estatuto se encontra vertido no Decreto-Lei n.º 252/92, de 19 de Novembro. Os princípios que se consideram violados são o princípio da legalidade com os seus corolários de reserva e compatibilidade, vertido no artigo 266º da CRP e os da inalienabilidade e irrenunciabilidade da competência das pessoas colectivas. O Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade em todas as peças processuais elaboradas no âmbito do contencioso eleitoral, incluindo nas alegações que apresentou neste Supremo Tribunal Administrativo, a sustentar a legalidade da sentença recorrida.' Por despacho do relator no Supremo Tribunal Administrativo o recurso não foi admitido, pois 'contrariamente ao que vem referido no requerimento de fls.
615/616, o agora recorrente A... não suscitou no processo a inconstitucionalidade do artigo 12º, n.º 1, alínea c), do D.Lei 151/93, de 6/5'.
3. Inconformado, o recorrente reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional. Na reclamação, depois de indicar a violação do artigo 266º da Constituição como fundamento da anulação do acto eleitoral, 'bem como a violação dos artigos 12º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio, 29º do CPA e artigos 5º, n.º 1, 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 184/78, de 18 de Julho', o reclamante discorda do entendimento do Supremo Tribunal Administrativo segundo o qual o reclamante não suscitou no processo a inconstitucionalidade do artigo
12º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio. Segundo o reclamante, 'sempre sublinhou que o artigo 12º, n.º 1, al. c), subalínea iv) do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio, havia de ser interpretado em compatibilidade com o princípio da legalidade plasmado no artigo 266º da Lei Fundamental, como se alcança das respectivas alegações e respectivas conclusões apresentadas no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto', o mesmo tendo defendido nas alegações e respectivas conclusões apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo – 'daí que tenha assacado ao acto impugnado – isto é, à deliberação da Região de Turismo – a violação do artigo 266º CRP e sempre de forma repetida, como se pode ainda aferir do teor da sentença prolatada pelo TACP e do próprio Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.' Em vista do processo, o Ministério Público pronunciou-se no Tribunal Constitucional pela improcedência da presente reclamação, porquanto:
'É manifesto que o ora reclamante não suscitou, durante o processo – podendo perfeitamente tê-lo feito – de forma idónea e adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao presente recurso de fiscalização concreta, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 – o que, sem mais, compromete irremediavelmente a respectiva admissibilidade'. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. Fundando-se o recurso que o ora reclamante intentou interpor na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – que prevê o recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo –, a sua apreciação exige a verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos específicos:
· suscitação, durante o processo, de uma questão de constitucionalidade normativa;
· aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como critério de decisão do caso; e
· esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente. No caso concreto, o despacho reclamado fundamentou-se no não preenchimento do primeiro dos requisitos enunciados, consistente na suscitação, durante o processo, de uma questão de constitucionalidade. O sentido deste requisito deve ser determinado em conformidade com a razão da sua exigência no quadro do sistema de apreciação da conformidade constitucional das decisões dos tribunais delineado pela Constituição. No que agora importa, são traços fundamentais desse sistema, como se sabe, a limitação da intervenção do Tribunal Constitucional à apreciação da conformidade constitucional de normas e a caracterização dessa intervenção como decisão de um recurso, isto é, como reapreciação ou reexame de uma decisão da questão de constitucionalidade. Havendo, pois, a exigência da suscitação, durante o processo, da questão de constitucionalidade de ser precisada em conformidade com esses traços, pode concluir-se que suscitar a inconstitucionalidade de uma norma há-de significar imputar, perante o tribunal recorrido, a desconformidade com a Constituição, não ao acto de aplicação do Direito – seja ele um acto de administração ou uma decisão judicial –, mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos n.ºs
37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II série, de 15-05-1996). Como pode-se ler no Acórdão n.º 269/94 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994):
'Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.' E, como se notou no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995, também a propósito da exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo:
'[...] a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e perceptível. Bem se compreende que assim seja, pois, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo. A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.' Pressuposto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – e, portanto, condição da sua apreciação neste Tribunal
– é, pois, que a questão de constitucionalidade normativa (isto é, imputada a uma norma ou a uma sua interpretação, devidamente identificada) tenha sido suscitada por forma clara e perceptível, de tal modo a que o tribunal recorrido saiba que está posto perante uma questão de conformidade constitucional de uma norma, e desta questão possa conhecer.
5. Resulta dos pontos 39, 49 e 55 das contra-alegações apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo que o ora reclamante imputou a desconformidade constitucional à própria decisão da 1ª instância, que, alegadamente, 'violou o disposto no artigo 1178º do C.C. e o n.º 3 do artigo 12º do Decreto-Lei n.º
151/93, de 6 de Maio'. E, ainda que as contra-alegações do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo – momento idóneo para suscitar uma questão de constitucionalidade normativa cuja decisão pudesse ser reapreciada por este Tribunal – se referissem a uma violação do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa, faziam-no de modo inadequado à identificação da inconstitucionalidade de uma norma (referindo-se, antes, a um acto concreto) ou de uma sua dada interpretação, que, aliás, não se identifica ou formula. Em particular, não podem considerar-se bastantes para imputação de inconstitucionalidade a uma norma as referências que se fazem nessas contra-alegações à Constituição da República, segundo as quais:
'B) Constituíram fundamentos da anulação do referido acto eleitoral a violação dos artigos 12º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio, 266º CRP, 29º do CPA e artigos 5º, n.º 1, 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 184/78, de 18 de Julho, tendo-se por ilegal, face àqueles normativos, a representação da Junta Autónoma de Estradas pelo Governador Civil de Bragança; Q) Prevendo a lei a representação da Junta Autónoma de Estradas, não pode o seu Presidente alienar a competência para a sua representação, isto é, transferir ou ceder a terceiros a referida representação, a tal se opondo os artigos 266º C.R.P. e 29º C.P.ª
(...)
'Y) As ilegalidades invocadas projectam-se no acto final eivando-o de ilegalidade (artigo 29º do CPA; artigo 13º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º
287/91, de 9 de Agosto; al. b) do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio; artigo 14º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 151/93; 266º CRP; artigos 2º a 4º do Decreto-Lei n.º 252/92 de 19 de Novembro e artigos 7º e 8º do Decreto-Lei 184/78, de 18 de Julho).' Em face dos autos, não pode, pois, considerar-se preenchido o requisito da suscitação durante o processo de uma questão de constitucionalidade normativa. Não foi isso que fez o ora reclamante, tendo antes defendido durante o processo
– como ele próprio reconhece – existir 'violação do artigo 266º CRP (princípio da legalidade) como fundamento da anulação do referido acto eleitoral, bem como a violação dos artigos 12º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio' (pontos 22 e 27 da presente reclamação) Aliás, não só não pode considerar-se procedente, neste sentido, a alegação do reclamante segundo a qual 'sempre sublinhou que o artigo 12º, n.º 1, al. c), subalínea iv) do Decreto-Lei n.º 151/93, de 6 de Maio, havia de ser interpretado em compatibilidade com o princípio da legalidade plasmado no artigo 266º da Lei Fundamental', como pode duvidar-se de que tal afirmação, se efectuada nestes termos durante o processo, fosse por si só, ela mesma, bastante para considerar verificado tal requisito, sem que se identificasse perante o tribunal a quo, de forma mais clara e perceptível, qual a interpretação da norma que se considerava ferida de inconstitucionalidade. Em suma: tendo o recurso de constitucionalidade por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas infra-constitucionais, e não de decisões judiciais
– pelo que não poderia nele estar em causa 'o assacar ao acto impugnado a violação de tal norma constitucional' –, e não tendo a inconstitucionalidade de uma norma, ou de uma sua dimensão interpretativa devidamente identificada, sido adequadamente suscitada durante o processo, como é de exigir, não poderia tomar-se conhecimento do recurso que se tentou interpor. Pelo que se conclui que o despacho reclamado de não admissão do recurso não merece censura, devendo a presente reclamação ser indeferida. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça no montante de 15 UC. Lisboa, 10 de Novembro de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida