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Processo nº 395/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que são recorrente E. T. e recorrido o Ministério Público, foi proferida decisão sumária, em 9 de Junho último, do seguinte teor:
'1. -E. T. foi condenado, por sentença de 20 de Janeiro de 2000, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Santa Cruz, pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de oito anos e seis meses de prisão, e, pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º e 131º do mesmo Código, na pena de vinte meses de prisão. Efectuado o cúmulo jurídico foi o mesmo condenado na pena única de nove anos de prisão. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nas respectivas alegações
– e no que ora interessa – limitou-se o arguido, em sede de conclusões, a afirmar que o acórdão violou 'entre outros, o artigo 32º, 33º, 16º, nº 2, 72º,
133º, 137º, 148º e 23º, todos do Código Penal e 20º da Constituição'. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Abril último, concedeu parcial provimento ao recurso, e, assim, condenou o recorrente como autor de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131º, com referência aos artigos 32º, 33º, nº 1, e 73º, nº 1, alíneas a) e b),, todos do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão. Operando o cúmulo jurídico com a pena aplicada pelo crime de homicídio tentado, foi o mesmo condenado na pena única de quatro anos e meio de prisão, confirmando-se, em tudo o mais, o acórdão recorrido.
2. - Mantendo-se inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro. Segundo defende, o acórdão de que decorre violou o disposto nos artigos 21º e
32º, nºs. 1 e 2, da Constituição da República (CR). Consoante explicita, a questão de constitucionalidade foi suscitada tanto na motivação do recurso interposto para o Supremo como nas alegações neste apresentadas. E, na verdade, lê-se na conclusão 16º dessas alegações, escritas, que o acórdão da 1ª instância violou 'entre outros os artigos 32º, 33º, 16º, nº 2, 72º, 133º,
137º, 148º e 23º todos do Código Penal, 21º e 32º, nºs 1 e 2, da Constituição'
(reproduzindo, assim, o que na motivação do recurso já constava).
3. - Entende-se ser de proferir decisão sumária, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dado que não pode conhecer-se do objecto do recurso – não vinculando o Tribunal Constitucional a decisão que inicialmente o admitiu, nos termos do nº 3 do artigo 76º do mesmo diploma legal.
4. - É certo que o requerimento do arguido, ao interpor recurso para este Tribunal, não contém todos os requisitos exigidos legalmente – nº 2 do artigo
75º-A da lei nº 28/82 – como seja a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, falta que, em princípio, poderia ser sanada mediante a formulação do convite a que se refere o nº 5 desse mesmo artigo 75º-ª Seria, no entanto, praticar um acto inútil, uma vez que o vício de constitucionalidade é sempre, ao longo dos autos, imputado à decisão. Com efeito, e como resulta dos locais processuais aludidos, a questão de constitucionalidade é unicamente direccionada à decisão, em si mesmo considerada, com tal ausência de imputação de qualquer desconformidade constitucional a normas aplicadas na decisão, na sua totalidade ou em certo trecho, ou a qualquer concreto sentido de dimensão interpretativa das normas utilizadas. Ora, essa questão há-de ser reportada a uma norma e não directamente à própria decisão judicial que a aplica: o objecto do recurso não é constituído pela decisão judicial em si mesma, por suposta inconstitucionalidade, uma vez que o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente entre nós é um sistema de controlo normativo, como, de resto, a jurisprudência constitucional tem sustentado, uniforme e reiteradamente (cfr., por todos, os acórdãos nºs.
318/93, 238/94 e 18/96, publicados no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993, 28 de Junho de 1995, e 15 de Maio de 1996, respectivamente). Sendo assim, não pode conhecer-se do objecto do recurso por falta desse pressuposto, contido na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5. - Em face do sumariamente exposto e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.'
2. - Notificado, veio o arguido reclamar para a conferência ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, defendendo que se decida no sentido de se conhecer do recurso por si interposto.
Aí se escreve, nomeadamente, 'ser inacreditável que se deixe de conhecer de um recurso invocando razões puramente gramaticais ou linguísticas e sobretudo quando está em causa a legítima defesa ou seja um dos direitos fundamentais da pessoa humana, não só individuais como comuns à generalidade dos estados civilizados'.
E acrescenta-se:
'É vulgar e normal dizer-se de qualquer sentença ou despacho que aplique norma inconstitucional que o mesmo é inconstitucional quando nele ou nela se aplicou norma que viola a constituição, mormente quando essa respeita aos direitos, liberdades e garantias, porquanto estas mesmas são aplicáveis directamente, vinculam as entidades públicas e provados como vimos o direito de defesa é precisamente um deles (Artigos 18 e 21 da Constituição). Ora atendendo ao espírito e à razão de ser, (e não tanto à letra) do quanto o Recorrente diz e como diz quando recorre para o Supremo, como para o Tribunal Constitucional, para que aí lhe façam justiça, evitando que os Acórdãos que o condenou não viole o artigo 21 da Constituição, é óbvio que não quer significar que esse acórdão é inconstitucional mas apenas e tão só que viola essa disposição. E mais do que as palavras, melhor é ver o que o Recorrente escreve a propósito nas 15 conclusões que a antecedem a 16º, onde depois de pisar e repisar a legítima defesa escreve que o Acórdão recorrido nada disso teve em conta para lhe atenuar ou isentar da pena...ao mesmo tempo que cita naquela, a violação entre outros do artigo 20/21 da Constituição, conforme se trata de motivação ou das alegações. Por seu lado, escreve-se no requerimento de interposição do recurso...
‘F...vem recorrer para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão do STJ fazendo-o de harmonia com a alínea b) do nº 1 do artigo 70 da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro em virtude de ter violado os artigos 21 e 32, nºs. 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada quer tanto na motivação constante do requerimento de interposição do recurso da Vara Mista do Funchal para este Supremo Tribunal quer nas respectivas Alegações conforme conta da 16ª Conclusão destas últimas’. Aliás num purismo excessivo de linguagem, bem poderia o Exmo Relator ter afastado o recurso dizendo que o Recorrente uma vez cita como violado o artigo
20 e outras vezes o 21 da Constituição. Como não o fez, aproveita-se a omissão precisamente para reafirmar que essa dualidade de artigos 20/21 foi devida a lapso manifesto precisamente por serem a primitiva e actual disposição da Constituição onde se previa e prevê o direito da legítima defesa ou resistência, como é sabido. Os Tribunais existem para fazer justiça e os Superiores para conhecerem das questões de fundo decididas e apreciadas pelos inferiores e o Tribunal Constitucional para apreciar a inconstitucionalidade suscitada e não para impedir ou obstar à respectiva decisão por razões meramente formais e menos ainda por hipotéticos motivos linguísticos ou gramaticais como seria o caso dos autos.'
3. - O magistrado do Ministério Público neste Tribunal, ouvido, respondeu nos seguintes termos:
'1- A presente reclamação é manifestamente infundada.
2- Parecendo o ora reclamante ignorar, de forma indesculpável, aspectos estruturantes do sistema da fiscalização concreta da constitucionalidade que nos rege.
3- Nomeadamente, que esta reveste necessariamente natureza ‘normativa’, não sendo possível ao Tribunal Constitucional sindicar directamente, em molde de verdadeiro ‘recurso de amparo’, pretensas inconstitucionalidades imputadas directamente a decisões judiciais.
4- Aliás, só tal desconhecimento dos princípios estruturantes que regem os recursos de fiscalização concreta, revelada pelo reclamante, permitirá compreender a perplexidade manifestada perante o decidido sumariamente, pelo Exmo. Conselheiro Relator face ao não cumprimento dos ónus processuais que justificadamente recaem sobre o recorrente – ‘maxime’ o de suscitar durante o processo, em termos idóneos, uma questão de inconstitucionalidade de ‘normas’ a delimitar adequadamente o seu objecto no requerimento de interposição de recurso.'
Cumpre decidir.
4. - A decisão reclamada foi proferida na sequência do entendimento jurisprudencial, constante e impressivo, nos termos do qual a fiscalização concreta de constitucionalidade assenta, entre nós, no controlo normativo, que não o reportado a decisões judiciais, em si mesmas e como tal consideradas.
É a orientação que se mantém – ilustrada, na ocasião, pela citação de diversos arestos.
Não se diga, a este propósito, que razões puramente gramaticais ou linguísticas foram sobrevalorizadas, em termos tais que irradicaram a problemática de constitucionalidade, tocante a direitos fundamentais.
É que, como, aliás, transparece claramente da reclamação ora apresentada, o interessado questiona verdadeiramente o modo como se decidiu, como se de um recurso de amparo se tratasse. E se é certo nem sempre ser fácil distinguir as situações em que se está perante uma questão de inconstitucionalidade, mormente se perspectivada esta numa dada interpretação, e as situações em que já se está a controlar a decisão judicial em si mesma – o que funcionaria como amparo ou queixa constitucional (Verfassungsbeschwerde) -, não menos exacto é que no caso vertente, essa tarefa apresenta-se facilitada: como expressivamente se escreveu nas conclusões das alegações para o Supremo Tribunal Justiça, porque a decisão recorrida 'não teve em conta nada do que se diz em qualquer das conclusões antecedentes quer para isentar da pena o arguido quer para atenuar a sua medida [...], daí ter violado entre outros os artigos
32º, 33º, 16º, nº 2, 72º, 133º, 137º, 148º e 23º todos do Código Penal, 21º e
32º, nºs. 1 e 2, da Constituição'.
Este discurso foi 'transportado' para o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
Ou seja, não se está em face de um excesso de rigor formal, ou de mera motivação linguística ou gramatical: trata-se, sim, de obedecer à estrutura legal do sistema de sindicabilidade constitucional entre nós em vigor. A esta luz, nunca a inequívoca imputação de eventual inconstitucionalidade à decisão em si seria susceptível de se converter em questão de constitucionalidade.
5. - Assim sendo, nada havendo a censurar à decisão reclamada que, deste modo, se confirma, decide-se:
a) indeferir a presente reclamação;
b) confirmar, consequentemente, a decisão sumária impugnada;
c) condenar o reclamante nas custas, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 5 de Julho de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida