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Proc. nº 627/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A..., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão do Tribunal Militar Territorial de Elvas, de 28 de Maio de 1997, como autor material de um crime de insubordinação, previsto e punido pelo artigo 79º, nº 1, alínea b), do Código de Justiça Militar (CJM), na pena de oito meses de presídio militar.
Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar - suscitando, do mesmo passo, a questão de inconstitucionalidade daquela norma, na medida em que 'briga frontalmente' com o artigo 32º da Constituição da República (CR) - o qual, por acórdão de 13 de Novembro de 1997, negou provimento ao recurso, alterando, no entanto, a medida da pena, que fixou em seis meses de presídio militar.
2. - É deste aresto que recorre, agora, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Em seu entender, a interpretação dada àquela norma da alínea b) do nº 1 do artigo 79º do CJM, que considera crime essencialmente militar a conduta do réu que ofende verbalmente um seu superior hierárquico, quando ambos se encontravam, ocasionalmente e fora de qualquer função militar, num restaurante, 'briga' com o artigo 32º da CR e 'fere os grandes princípios da política criminal: princípio da culpa, princípio da necessidade da pena, princípio da legalidade e da jurisdicionalidade de aplicação do direito penal e princípio da igualdade'.
Recebido o recurso, alegaram oportunamente o recorrente e o Ministério Público, como recorrido.
O primeiro, reiterada a inconstitucionalidade da interpretação acolhida na decisão recorrida, conclui pela necessidade de ser
'alterada' essa interpretação, que viola o disposto nos artigos 13º e 32º da CR.
O segundo, inversamente, conclui pela não inconstitucionalidade da interpretação em causa.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - O artigo 79º está integrado, na sistemática do Código, no livro I – 'Dos crimes e das penas', título II – 'Disposições especiais', capítulo único – 'Crimes essencialmente militares', onde se incluem os crimes de insubordinação, definindo nos seguintes termos a insubordinação 'por meio de outras ofensas ou ameaças':
'1.-A ofensa por meio de palavras, escritas ou desenhos, publicados ou não publicados, ameaças ou gestos, cometida por qualquer militar contra superior será punida: a) Com presídio militar de 4 a 6 anos, se for cometida em acto de serviço, em razão de serviço ou em presença de tropa reunida; b) Com presídio militar de 6 meses a 2 anos, em todos os demais casos.
2.------------------------------------------------------------.'
Assim, de acordo com a norma da alínea b) do nº 1 deste artigo 79º - única que está em causa - a estrutura essencial punível do crime de insubordinação, não ocorrendo as circunstâncias qualificativas agravantes descritas na alínea a), é representada por ofensas ou ameaças cometidas por qualquer militar contra superior, correspondendo-lhes a pena de presídio militar de 6 meses a 2 anos.
Esta norma constitui o objecto do presente recurso.
2. - O STM, no seu acórdão, concordou com a qualificação jurídica anteriormente feita quanto aos factos dados como provados, integrativos do crime de insubordinação previsto e punido na alínea b) do nº 1 do citado artigo 79º, como tal constituindo crime essencialmente militar: o réu, ao dirigir-se, no recinto de um restaurante, a um capitão do Exército, que bem conhecia, depois de este se haver identificado, dizendo que 'os oficiais julgavam ser os maiores por andarem armados, mas que fora da unidade não valiam nada, que cá fora eram todos iguais e que os graduados eram todos uma merda', integrou uma conduta subsumível à previsão daquele preceito, como crime essencialmente militar.
O que seja um crime essencialmente militar, ou então, de acordo com os termos da IV Revisão Constitucional, um crime de natureza estritamente militar, é tarefa que o texto constitucional deixou ao cuidado do legislador ordinário, que obviamente, não pode concretizá-la arbitrariamente, devendo adoptar, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, um critério definido que seja concordante com a função do instituto ou seja, que se traduza na protecção por meios próprios (a justiça e os tribunais) da organização militar (cfr., Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 816).
O conceito de crime essencialmente militar - reportando-nos ao texto constitucional à data vigente - é um conceito aberto ou indeterminado, a preencher pela lei ordinária que, no entanto, há-de respeitar o sentido da indiciação e da função constitucional, sendo certo, consoante a orientação jurisprudencial seguida por este Tribunal - cfr., acórdãos nºs.
347/86 e 680/94, publicados no Diário da República, II Série, de 6 de Março de
1987 e 25 de Fevereiro de 1995, respectivamente - que a ideia fundamental a reter neste domínio é a de que a Constituição exige que o legislador se mantenha no plano estritamente castrense, só podendo sujeitar à jurisdição militar aquelas infracções que 'afectem inequivocamente interesses de carácter militar', infracções que, por isso mesmo, hão-de ter uma conexão relevante com a instituição castrense, quer pela existência de um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque se estabeleça um nexo com os interesses militares da defesa militar.
Ou seja, e para seguir de perto o acórdão nº 967/96, publicado no Diário citado, II Série, de 24 de Dezembro de 1996, 'a caracterização típica do conceito de crimes essencialmente militares resultará, acima de tudo, da natureza dos bens jurídicos violados, sendo certo que, quando se verifique ofensa dos interesses específicos elencados no artigo 1º, nº 2, do CJM - violação de algum dever militar ou ofensa da segurança e da disciplina das Forças Armadas ou dos interesses militares da defesa nacional e que como tal sejam qualificados pela lei militar -, existirá, em princípio, um crime daquela natureza',
3. - Decorre do exposto que uma abstracta dosimetria da punição prevista no direito penal militar pode justificar-se, quando confrontada com a modelação prevista no direito penal comum, pela axiologia subjacente aos valores decorrentes da segurança e da disciplina exigíveis nas Forças Armadas e aos interesses militares próprios da defesa nacional - de modo a afirmar-se que um mesmo tipo de crime na comunidade militar documentará um maior grau de ilicitude do facto ou da culpa do agente (cfr. acórdãos nºs. 370/94 e 334/98, publicados no mesmo jornal oficial, II Série, de 7 de Setembro de 1994 e de 27 de Novembro de 1998, respectivamente) sem que tal signifique violação do princípio da igualdade. Até porque, como se ponderou no acórdão nº 958/96 (no mesmo Diário, II Série, de 13 de Dezembro de 1996), a relevância do princípio da igualdade, como critério da constitucionalidade das medidas legais das penas, é
'filtrada por uma complexa teia de condicionamentos que impedem nivelações com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos'.
Assim, compreende-se que, no aresto recorrido, se tenha dito que a ofensa por meio de palavras, cometida por militar contra superior, encontrando-se o seu autor, enquanto integrado nas Forças Armadas, permanentemente sujeito à disciplina militar, viole o dever jurídico de lealdade e atinja frontalmente os valores da hierarquia e da coesão inerentes a essa disciplina, 'pilar essencial da instituição castrense'. A esta luz, a circunstância de a ofensa ser praticada em acto de serviço ou em razão de serviço, pode agravar a responsabilidade, mas não caracteriza o acto como insubordinação, que 'sempre existe seja qual for o circunstancialismo que ocorra na altura'.
Tem, deste modo, inteiro cabimento no tocante à norma da alínea b) do nº 1 do artigo 79º do CJM, o que, em recente acórdão deste Tribunal Constitucional , se ponderou para o crime previsto na alínea a) do mesmo preceito: sendo diferentes, no âmbito do direito penal comum e no do direito penal militar, os valores jurídicos violados com a conduta do arguido, não faz sentido apelar para o princípio da igualdade, na medida em que, na norma sindicanda, se prevê uma punição mais severa do que o Código Penal prevê, no
âmbito do direito penal comum, dado os valores em presença e o facto de aquele princípio, como reiteradamente se tem afirmado, apenas recusar o arbítrio, as diferenças de tratamento materialmente infundadas e que, por isso mesmo, se mostram irrazoáveis e arbitrárias (cfr. o acórdão nº 108/99, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999).
Como se escreveu neste aresto, na sequência de uma invocada desproporcionalidade (que, implicitamente, está presente na argumentação deduzida pelo ora recorrente):
'[...] regista-se, antes de mais, que, para concluir pela existência de excesso na punição do crime de insubordinação, não é legítimo invocar, como faz o recorrente, o facto de tal punição ser bastante mais severa do que aquela que o Código Penal prevê para o crime de ameaças e para o crime de injúrias. E não o
é, porque, como já atrás se fez notar, estes ilícitos são substantivamente diferentes do crime de insubordinação, que é um crime de natureza estritamente militar; nele tutelam-se, com efeito, a hierarquia e a disciplina, que, por serem essenciais à existência e coesão da instituição militar, são bens jurídicos militares, pois - nos dizeres de Jorge Figueiredo Dias - merece este qualificativo aquele ‘conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão’ (cf.
‘Justiça Militar’, in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, páginas 25 e 26). Ora, como se fez notar no acórdão nº 271/97 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 15 de Maio de 1997), seja qual for o exacto sentido e alcance da expressão constitucional atinente a este tipo de ilicitude, ‘é consensual a ideia de que o punctum saliens dos crimes essencialmente militares (hoje, o artigo 213º da Constituição fala em crimes de natureza estritamente militar) se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares’ (Sobre as divergências acerca do conceito de crime essencialmente militar, vide o acórdão nº 347/86 e a declaração de voto, a ele aposta, do Conselheiro Luís Nunes de Almeida; e ainda a declaração de voto da Conselheira Maria Fernanda Palma, no acórdão nº 679/94 - arestos publicados, ambos, no Diário da República, II Série, de 20 de Março de
1987 e de 25 de Fevereiro de 1995).
É que - sublinha Jorge Figueiredo Dias (loc.cit) - ‘tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico’. Acresce que, atenta a natureza dos bens jurídicos violados, cujo respeito é essencial, como se disse, à subsistência mesma da instituição militar, não pode dizer-se que seja manifesto que a pena prevista no artigo 79º, nº 1, alínea a), para o crime de insubordinação cometido por ameaças, em acto de serviço
(presídio militar de quatro a seis anos) seja desproporcionada ou excessiva. Ora, já se disse que só quando a punição se apresentar como manifestamente excessiva ou desproporcionada, é que este Tribunal deve julgar constitucionalmente ilegítima a norma que a previr. De contrário, há que respeitar a liberdade do legislador, pois é a ele que a Constituição confia a tarefa da ‘definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos’ (cf. artigo 165º, nº 1, alínea c)).'
As considerações expostas aproveitam inteiramente ao caso dos autos.
4. - Não se descortinando, por conseguinte, ofensa ao princípio da igualdade plasmado no artigo 13º, nº 1, da CR, nem se mostrando tocado o princípio da proporcionalidade com expressão no artigo 18º, nº 2, segunda parte, da CR, o mesmo se diga no tocante às demais vertentes de alegada inconstitucionalidade convocadas pelo recorrente, consubstanciadas, de um modo genérico, nas garantias de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Não se vislumbra, na verdade, em que medida estas garantias são afectadas.
Afastada a lesão dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, poderá, quando muito - atendendo à tese defendida - questionar-se a respeito da necessidade da pena, sabido que por ela se deve pautar a intervenção do legislador, o que, no entanto, também se mostra injustificadamente invocável, atingida a conclusão a que se chegou.
Ainda aqui seguindo de perto o citado acórdão nº 108/99, se observará que o juízo sobre a 'necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade'. A limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, como então se acrescentou, só pode ocorrer quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva (cfr. acórdãos nºs. 634/93, 83/95 e 480/98, publicados respectivamente, no Diário da República, de 31 de Março de 1994 – Suplemento – e 16 de Junho de 1995, mantendo-se o último inédito).
Situação de excesso essa que não se verifica no concreto caso.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 9 de Novembro de 1999 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa