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Proc. nº 1112/98
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 9 de Fevereiro de 1994, R. F. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, acção declarativa, com processo ordinário, contra L. S., A. R. e F....,Lda., pedindo a condenação dos réus: a reconhecerem que existe erro na escritura de constituição da sociedade F...,Lda., no tocante à participação dos sócios, que deverá ser de 50% para o autor e de 25% para cada um dos outros dois réus; a verem rectificada a referida escritura nos termos acima descritos; ou, em alternativa, a verem anulado o contrato social vertido na escritura.
Alegou que, na escritura celebrada em 14 de Maio de 1993, através da qual se constituiu a sociedade F...,Lda., na qual intervieram como outorgantes o autor e os dois primeiros réus, foi cometido um erro na indicação da divisão do capital social e da consequente posição social de cada um dos sócios – erro esse que fora provocado por pressa na celebração da escritura e no depósito efectuado na Caixa Geral de Depósitos –, de que o autor se não apercebeu no momento da leitura da escritura. Só no dia seguinte ao da celebração da escritura o autor se apercebeu do erro ocorrido, tendo dado conhecimento ao advogado que o assistiu na escritura, bem como aos réus, que desde logo se comprometeram a proceder à rectificação da escritura – facto que confirmaram a diversas pessoas, incluindo o advogado que assistira aos actos de constituição da sociedade.
Contestaram os réus, alegando que não houve lapso de escrita na escritura nem no depósito efectuado na Caixa Geral de Depósitos e que as declarações do autor e dos réus ficaram expressas de modo claro e inequívoco no contrato celebrado por escritura pública.
Tendo sido arrolados como testemunhas do autor, os advogados J. I. e A. S. solicitaram ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados dispensa de sigilo profissional, nos termos do artigo 81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados. O pedido foi deferido.
Na audiência de julgamento, que teve início em 22 de Novembro de
1995 (e se prolongou por diversas sessões posteriores, até 14 de Novembro de
1996), o mandatário dos réus requereu que não fosse tido em consideração o depoimento da testemunha Dr. J. I., quanto à matéria de certos quesitos não abrangidos pela dispensa do segredo profissional, e que fosse admitida a acareação entre as declarações da testemunha Dr. J. I. e as do depoimento de parte do réu A. R. e ainda a contradita do depoimento do Dr. J. I.. Por despacho proferido na sessão de julgamento, foi indeferido o pedido de contradita, tendo os réus interposto recurso de agravo.
Em sentença de 26 de Março de 1996 (fls. 255 e seguintes), o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda julgou a acção procedente, condenando os réus a reconhecerem que existiu erro na escritura da sociedade, quanto à participação dos sócios, que deverá ser de 50% para o autor e de 25% para cada um dos réus L. S. e A. R., e anulando o contrato social constante da escritura.
2. L. S., A. R. e F....,Lda., interpuseram recurso de apelação. Nas suas alegações invocaram a inconstitucionalidade da norma do artigo 81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, por não permitir a audição da parte contrária, assim violando o princípio do contraditório.
O Tribunal da Relação de Coimbra, entendendo que o Tribunal da Guarda tomou em consideração o depoimento da testemunha Dr. J. I. quanto a factos não abrangidos pela dispensa do segredo profissional e verificando que o mesmo tribunal não apreciou o requerimento dos réus, apresentado na audiência de julgamento, na parte em que pediam que não fosse tido em consideração o depoimento da testemunha Dr. J. I., concedeu provimento ao recurso, anulando o julgamento e determinando a realização de novo julgamento, com repetição de toda a prova (acórdão de 25 de Fevereiro de 1997, fls. 353 e seguintes).
3. Deste acórdão foi interposto recurso, tanto por R. F. como por L. S. e A. R..
Nas alegações que produziu, R. F. sustentou que a dispensa de sigilo profissional concedida ao advogado J. I. abrange toda a matéria do questionário, já que a dispensa foi concedida para depor sobre toda a matéria da acção, e concluiu pedindo que o acórdão da Relação fosse revogado.
Por sua vez, L. S. e A. R. sustentaram que o processo fornece já todos os elementos necessários a uma decisão de mérito e que a acção não deve proceder; de novo suscitaram a inconstitucionalidade da norma do artigo 81º, nº
4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, invocando a violação dos artigos 20º e
32º, nº 5, da Constituição.
O Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista do autor e negou a dos réus, ordenando a baixa do processo à Relação de Coimbra para que esta conheça das questões que não chegou a conhecer por ter anulado o julgamento da
1ª instância, designadamente da questão de inconstitucionalidade e das questões que devem conduzir à procedência ou improcedência da acção.
4. Por acórdão de 24 de Março de 1998 (fls. 432 e seguintes), o Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade invocada e negou provimento aos recursos (de agravo e de apelação) interpostos pelos réus, confirmando a sentença da 1ª instância.
L. S. e A. R. interpuseram recurso de agravo e de revista, reiterando, nas alegações, a invocação da inconstitucionalidade da norma do artigo 81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento a estes recursos
(acórdão de 29 de Outubro de 1998, fls. 472 e seguintes). Pronunciando-se sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada, disse o Supremo:
'Como se disse no Parecer de Comissão Constitucional nº 18/81, o conteúdo essencial do princípio de contraditório «está, de uma forma geral, em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo Juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar». Ora não foi impedido aos ora recorrentes discutirem o depoimento do Senhor Advogado. Face à decisão do Senhor Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados podiam os ora recorrentes tê-la impugnado para o Tribunal Administrativo de Círculo, nos termos do art. 51º, d1), do ETAF (DL. 129/84, de
27.4, com o aditamento da Lei 4/86, de 21.3). Competindo a jurisdição administrativa a tribunais administrativos, nos termos do art. 1º do mesmo ETAF, vedado está aqui apreciar a decisão do Senhor Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.'
5. Inconformados com a decisão, L. S. e A. R. interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo
81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados 'quando interpretada no sentido – que fez vencimento no acórdão recorrido – de que o incidente de escusa do segredo profissional de advogado, a julgar pelos órgãos competentes da Ordem dos Advogados, não deve ser acompanhado de contraditório exercido nesta instância ou instituição', por violação dos artigos 20º, nº 4, 32º, nº 1, e 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa (requerimento apresentado em 6 de Novembro de 1998, fls. 491).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 494.
6. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações.
Os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'[...]
4.1. No âmbito do segredo profissional dos advogados, e, em especial, no do regime da respectiva escusa, vale o disposto no artigo 81º, nº 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março. Com efeito,
4.2. de acordo com o preceituado em diversas normas do referido Estatuto, é certo que as decisões dos órgãos da Ordem aos quais está legalmente confiado o poder de decisão sobre a referida problemática – Presidentes dos Conselhos Distritais e bastonários – são recorríveis para os Tribunais do contencioso administrativo. Porém,
4.3. como os recorrentes têm por definitivamente adquirido, a possibilidade de recorrer de determinadas decisões, provenham elas de quem provierem, mais não constitui do que um «remédio» para repor a legalidade de uma decisão anterior, alegadamente violadora da lei – lato sensu.
4.4. não é a mera possibilidade de impugnação de decisões, por via de recurso – e suposto que nesta sede se respeitam as injunções constitucionais – que confere adequação à Constituição a determinada norma do direito legislado. Ora,
4.5. nos termos da chamada Constituição Processual Civil – corporizados nas normas dos artigos 20º e 32º do diploma fundamental – todos os actos processuais referentes à audiência de julgamento devem produzir-se de forma contraditória. Por isso,
4.6. destinando-se os depoimentos a prestar com violação do segredo profissional, mas justificada esta pela competente escusa deste dever, a ser valorados em sede de julgamento, o incidente no qual se corporiza o requerimento e eventual concessão da escusa só recobra amizade constitucional, face ao disposto no artigo 32º, nº 5, parte final, da Constituição da República, se a respectiva decisão for precedida da atribuição à contraparte do legal contraditório. Ou seja:
4.7. o Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar pela forma que o fez, interpretando o disposto no nº 4 do artigo 81º do Estatuto da Ordem dos Advogados da forma constante do acórdão recorrido
4.8. tornou este normativo materialmente inconstitucional, por violação do disposto na parte final do nº 5 do artigo 32º da Constituição da República. Logo,
4.9. deverão V.as Ex.as declarar a referida inconstitucionalidade, repete-se, resultante da interpretação e aplicação de tal norma nos preditos termos
4.10. e, em consequência, determinar que o Supremo Tribunal de Justiça refaça o acórdão recorrido, em conformidade com o prenunciado juízo de inconstitucionalidade.'
Por sua vez, o recorrido concluiu do seguinte modo:
'[...] C) Tal como é bem referido no Douto Acórdão recorrido, '[...] Face à decisão do Senhor Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados podiam os ora recorrentes tê-la impugnado para o Tribunal Administrativo de Círculo, nos termos do art. 51º, d1), do ETAF (DL 129/84, de 27.4, com o aditamento da Lei 4/86, de 21.3)' mas não o fizeram, bem como não interpuseram qualquer recurso hierárquico do mesmo, pelo que o Despacho do Senhor Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados transitou em julgado e é vinculativo para o juiz.
[...] F) Inconstitucionalidade alguma é assacável ao nº 4 do artigo 81º do E.O.A. já que, no foro administrativo, existem, legalmente previstos, formas de assegurar o princípio do contraditório, no que a ela se refere.'
7. Nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi notificado aos recorrentes o parecer em que a relatora propunha que o Tribunal Constitucional não tomasse conhecimento do recurso, pelas seguintes razões:
'Os recorrentes pedem ao Tribunal Constitucional que aprecie a inconstitucionalidade da norma do artigo 81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março).
É o seguinte o teor da norma impugnada:
«Artigo 81º
(Do segredo profissional)
[...]
4. Cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o presidente da Ordem dos Advogados». Entendem os recorrentes que a norma transcrita, «quando interpretada no sentido de que o incidente de escusa do segredo profissional de advogado, a julgar pelos
órgãos competentes da Ordem dos Advogados, não deve ser acompanhado de contraditório exercido nesta instância ou instituição», viola o princípio do contraditório, contrariando o disposto nos artigos 20º, nº 4, 32º, nº 1, e 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria necessário que os recorrentes tivessem suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretendem que o Tribunal aprecie e que essa norma tivesse sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi feita. Ora, a norma que se pretende submeter à apreciação deste Tribunal (a norma do artigo 81º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados), não constituiu o fundamento – ou, pelo menos, não constituiu o fundamento único e decisivo – do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido
(acórdão de 29 de Outubro de 1998). Na verdade, depois de historiar as diversas fases do processo, o Supremo Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão relacionada com o pedido de escusa do sigilo profissional por parte dos advogados José Martins Igreja e Ângelo Saraiva, invocou o sentido do princípio do contraditório na jurisprudência constitucional, citando o Parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional e sublinhando o aspecto de que «nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo Juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar». E afastou a alegação de inconstitucionalidade, por considerar que não foi impedido aos recorrentes discutirem, no âmbito do processo judicial, o depoimento do advogado que obteve a escusa do sigilo profissional. Todavia, com o objectivo de demonstrar que não lhe competia apreciar, quanto ao fundo, a decisão do Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados sobre a dispensa do dever de segredo profissional, o Supremo acrescentou: «Face
à decisão do Senhor Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados podiam os ora recorrentes tê-la impugnado para o Tribunal Administrativo de Círculo, nos termos do art. 51º, d1), do ETAF (DL. 129/84, de
27.4, com o aditamento da Lei 4/86, de 21.3). Competindo a jurisdição administrativa a tribunais administrativos, nos termos do art. 1º do mesmo ETAF, vedado está aqui apreciar a decisão do Senhor Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.». A passagem ultimamente transcrita destina-se portanto, no contexto do acórdão recorrido, a justificar que o Supremo não se pronuncie quanto ao mérito da decisão de dispensa do dever de segredo, por incompetência em razão da matéria, dada a competência dos tribunais administrativos. Ou seja, embora tenha apreciado a questão de inconstitucionalidade suscitada no processo, não dando razão aos recorrentes, o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou quanto ao mérito da decisão de dispensa do dever de segredo, por entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos. Daqui resulta que, qualquer que fosse a posição que o Tribunal Constitucional viesse a adoptar sobre a constitucionalidade da norma impugnada no presente recurso, sempre se manteria o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, já que o seu fundamento decisivo residiu na verificação da incompetência daquele tribunal, em razão da matéria, para conhecer quanto ao mérito sobre a dispensa do dever de segredo profissional concedida pelo Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados. Ora, esta decisão do Supremo assentou nos artigos 51º, d1), e 1º do ETAF. Atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de constitucionalidade normativa que lhe são submetidas quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal, nº 257/92, Diário da República, II, nº 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e nº 440/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326). Nestes termos, não tendo sido aplicada como fundamento único e decisivo do acórdão recorrido a norma questionada no presente processo, e considerando o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, conclui-se que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso. '
8. Responderam os recorrentes, através de requerimento em que sustentaram que o Tribunal Constitucional deve tomar conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso.
O recorrido R. F. não respondeu.
II
9. A resposta dos recorrentes não abalou a exposição-parecer da relatora.
O recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto a apreciação da norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes durante o processo e que tenha sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, fundamentou-se nos artigos 51º, d1), e 1º do ETAF e não na norma que os recorrentes pretendem submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional.
Não podem por isso dar-se como verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recuso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida