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Processo n.º 378/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Por decisão do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho tomada em 6 de Maio de 1998, A. Q. foi condenado ao pagamento de uma coima de 500.000$00 (quinhentos mil escudos), por infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, que sanciona com coima a falta de notificação ao mencionado Instituto, por parte da entidade patronal, num prazo de 24 horas, de mortes ocorridas em acidentes de trabalho. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal de Trabalho de Penafiel que, por sentença com data do dia 1 de Fevereiro de 1999, concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão impugnada. Para tal considerou que há inconstitucionalidade orgânica dos artigos 43º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 491/85, de 14 de Novembro e artigo 13º do Decreto-Lei n.º
155/95, de 1 de Julho, pois
'[...] da leitura do artigo 168º n.º 1 al. d) da Constituição da República referente à revisão do ano de 1982 é da competência relativa da Assembleia da República legislar sobre Regime Geral da punição das Infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo. E, o mesmo se passa quanto à revisão da Constituição da República referente ao ano de 1989, mantendo a mesma competência legislativa da Assembleia da República nesta matéria. Por outro lado, para que o Governo possa legislar nesta matéria, terá que ter autorização expressa da Assembleia da República e tal facto deverá ser mencionado no próprio diploma legislativo (conferir artigo 201º, n.º 1 al. b) e n.º 2 da Constituição da República revisão de 1982 e 1984). Da análise dos diplomas acima mencionados, não consta a autorização legislativa e afirmam que a matéria é da competência exclusiva do governo.' Por outro lado, ponderou o Tribunal de Trabalho de Penafiel que:
'[...] mesmo que não se entenda que não existe a inconstitucionalidade orgânica dos normativos referidos, é de concluir que o recorrente agiu sem consciência da ilicitude. E isto porque, perante o acidente, comunicou o facto ao seu agente de seguros que lhe garantiu que realizaria todos os actos necessários para sanar a situação. E ficou convencido e tranquilo que tinha cumprido a sua parte. E, de facto, o agente de seguros comunicou o facto à seguradora e convenceu-se também que a situação estava resolvida. Em face disto, julgamos que não se pode exigir mais a um pequeno empresário, sem organização administrativa, não lhe sendo exigível, face à sua atitude, um comportamento diferente. E isto porque há uma grande proliferação de normas no domínio laboral, que escapam a este tipo de organização económica. Daí que pensamos que não lhe é censurável esta omissão.'
2. Interposto pelo Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), foi pelo relator proferido o seguinte despacho:
'Em face dos termos da decisão recorrida, poderá suscitar-se a dúvida quanto a ter o julgamento de inconstitucionalidade sido ratio decidendi e a dever, por conseguinte, não se tomar conhecimento do recurso. A questão não se afigura, todavia, para já, clara. Para alegações (questão prévia referida e questão de fundo).' O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu assim as suas alegações de recurso:
'1 - Não sendo absolutamente líquido, perante o teor da decisão recorrida, qual a razão ou fundamento autónomo e decisivo para a revogação da decisão administrativa proferida – se o julgamento de inconstitucionalidade de certa norma, se o juízo acerca da falta de consciência da ilicitude do arguido – importa cautelarmente conhecer do objecto do recurso, de modo a facultar ao tribunal ‘a quo’ a reapreciação da questão, face ao juízo de constitucionalidade a proferir definitivamente por este Tribunal.
2 – Apenas se situa no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República o estabelecimento do regime geral de ilícito de mera ordenação social, nada impedindo que o Governo, no exercício das suas competências próprias, possa tipificar comportamentos como constituindo contra-ordenações e sancioná-los com coimas, desde que se contenha nos limites traçados pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.' Por parte do recorrido não foram apresentadas quaisquer alegações dentro do prazo legal. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. É pressuposto do recurso previsto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, que a decisão recorrida tenha recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade. Tal recusa de aplicação há-de, todavia, constituir mais do que mero obiter dictum, autêntica ratio decidendi da decisão impugnada, sob pena de o julgamento da questão de constitucionalidade a proferir por este Tribunal não se revestir de qualquer utilidade. Ora, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade só existe interesse jurídico em conhecer da questão de constitucionalidade que constitui objecto do recurso se a decisão de tal questão puder influir na decisão do processo de onde aquele emerge. Tal apenas sucede quando e se a decisão recorrida tiver assentado no julgamento de inconstitucionalidade nela feito. Designadamente, se na decisão recorrida se encontrar outro fundamento, para além da recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade, só por si suficiente para chegar à tal decisão, não existe interesse processual que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional. Neste caso, seja qual for o sentido da decisão que recaia sobre a questão, manter-se-á inalterado o decidido pelo tribunal recorrido (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 454/91, 337/94, 608/95, 577/95,
1015/96, 196/97 e 508/98, publicados os três primeiros no Diário da República, II série, respectivamente de 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de 1994, e 19 de Março de 1996).
4. O Tribunal do Trabalho de Penafiel afirmou que 'há inconstitucionalidade orgânica dos artigos 43º, n.º 2, do Dec-Lei n.º 491/85, de 14/11 e artigo 13º do Dec-Lei n.º 155/95, de 1/7', fundamentando a sua decisão do modo supra transcrito. Considerando que 'da análise dos diplomas acima mencionados, não consta a autorização legislativa e afirmam que a matéria é da competência exclusiva do Governo', a sentença recusou a respectiva aplicação. Todavia, a solução dada por esse Tribunal ao problema da constitucionalidade das normas dos artigos 43º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 491/85, de 14 de Novembro e 13º do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, não constitui a única ratio decidendi da decisão a que se chegou. Tal decorre de forma clara do entendimento, aí expresso, segundo o qual 'mesmo que não se entenda que não existe a inconstitucionalidade orgânica dos normativos referidos, é de concluir que o recorrente agiu sem consciência da ilicitude'. Ora, não se vê como pode esta questão ter algo que ver com a alegada inconstitucionalidade, que, ademais, não é sequer uma desconformidade do conteúdo da norma com a Lei Fundamental (uma inconstitucionalidade material), mas sim uma suposta inconstitucionalidade orgânica, por violação das regras de competência legislativa definidas pela Constituição. Se, já quanto à constitucionalidade material, é difícil compreender como pode a sua convicção alterar a ponderação do julgador na apreciação da consciência da ilicitude, menos ainda se compreenderá tal influência quando a alegada inconstitucionalidade é apenas orgânica.
5. Da fundamentação transcrita da decisão recorrida resulta, pois, que esta se baseou, como razão ou fundamento autónomo, no entendimento segundo o qual não era exigível ao recorrente, 'face à sua atitude, um comportamento diferente', pelo que, independentemente do julgamento de inconstitucionalidade, sempre se chegaria à decisão de provimento do recurso. Tudo ponderado, conclui-se, na verdade, que o julgamento de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida aparece nela, não como mero obiter dictum, mas como mais um fundamento, complementar, da decisão final de provimento do recurso. A recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, das normas dos artigos 43º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 491/85, de 14 de Novembro e 13º do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, foi, realmente, acompanhada de outro fundamento que, só por si e independentemente da bondade ou do acerto do primeiro, acarretaria a concessão de provimento ao recurso – ou seja, o entendimento, perante os factos provados, de que se verificou falta de consciência da ilicitude. Ora, se para se alcançar a decisão recorrida de provimento do recurso não foi necessária a formulação de um juízo sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas objecto do presente recurso, fosse qual fosse o sentido da decisão que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre a referida questão de constitucionalidade, em nada se alteraria a decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho de Penafiel. Tanto basta para impor o não conhecimento do recurso. III. Decisão Com os fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida