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Proc. nº 625/96
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. M... (ora recorrida) interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Presidente da Comissão de Coordenação da Região do Algarve que, em consequência da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 351/93, recusou a confirmação de compatibilidade do alvará de construção que lhe havia sido concedido com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve, aprovado pelo Decreto-Regulamentar nº 11/91, de 21 de Março, fazendo caducar as licenças de construção de que dispunha a recorrente.
2. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por decisão de 11 de Abril de
1996, veio a conceder provimento ao recurso. Recusou, para o efeito, a aplicação dos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, que considerou materialmente inconstitucionais, com base em extensa argumentação que concluiu da seguinte forma:
'Portanto, concluindo-se que o «jus aedificandi» constitui parte integrante do direito de propriedade do solo e uma manifestação do direito de propriedade privada previsto no art. 62º, nº 1 da CRP, a modificação do regime jurídico dos actos de licenciamento já praticados introduzida pelos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, traduz-se numa lei restritiva do direito de propriedade com eficácia retroactiva. E, porque o direito de propriedade é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias
(cfr., nesse sentido, Vieira de Andrade, 'Os Direitos...', cit., pág. 211), o aludido Decreto-Lei é materialmente inconstitucional, por força dos artigos 17º e 18º, nº 3 da CRP, na parte em que sujeita à confirmação de compatibilidade prevista no seu art. 1º, nº 1, os actos de licenciamento de construções praticados antes da sua entrada em vigor. Deste modo, e porque este Tribunal deve recusar a aplicação da referida norma ao caso dos autos (cfr. art. 4º, nº 3 do ETAF), padece o acto de vício de violação de lei por falta de base legal, o que conduz à sua anulação'.
3. É desta decisão que vem interposto pelo Representante do Ministério Público no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na recusa de aplicação pela decisão recorrida do disposto nos artigos 1º, nº 1 e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação dos artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição.
4. Já neste Tribunal foi o Ministério Público notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1º - A tutela constitucional do direito de propriedade, consagrado no nº 1 do artigo 62º da Lei Fundamental, não incluí a protecção de um «jus aedificandi» do proprietário de quaisquer solos, que preexista às leis e regulamentos que, para tutela de relevantes interesses públicos, restringem ou limitam as condições em que tal direito pode ser, em concreto, exercitado.
2º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida'.
5. Igualmente notificada para alegar, por parte da recorrida foi dito, a concluir, que:
'1º - O jus aedificandi integra o direito de propriedade privada, constitucionalmente garantido pelo art. 62º, nº 1, da Constituição.
2º - Os artigos 1º, nº 1 e 3º do DL nº 351/93, restringem injustificadamente o direito de propriedade da recorrida sobre o prédio eliminado dele o jus aedificandi já anteriormente reconhecido.
3º - As mesmas disposições têm efeito retroactivo, na medida em que se aplicam aos actos praticados anteriormente à sua entrada em vigor.
4º - O direito de propriedade é um direito fundamental.
5º - O conteúdo dos artigos 1º, nº 1 e 3º do DL nº 351/93, viola o conteúdo dos artigos 17º e 18º, nº 3 e 62º da CRP.
6º - As referidas disposições são materialmente inconstitucionais.
7º - A matéria referente a direitos fundamentais está abrangida por reserva relativa da lei – art. 168º, nº 1, b) da CRP.
8º - As mesmas disposições são organicamente inconstitucionais'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
6. É o seguinte o teor das normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, que a decisão recorrida recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade, e que nessa medida constituem agora objecto de recurso: Artigo 1º
1. As licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção, devidamente tituladas, designadamente por alvarás, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território ficam sujeitas a confirmação da respectiva compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de plano regional de ordenamento do território.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
Artigo 3º O regime previsto no presente diploma é igualmente aplicável às aprovações de localização, às aprovações de anteprojecto ou de projecto de construção de edificações e de empreendimentos turísticos, emitidos pela Direcção-Geral de Turismo ou pelas câmaras municipais em data anterior à da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território.
No entender da decisão recorrida as normas que se extraem desses preceitos são materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto nos artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição.
7. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional não é nova. Na realidade, o Tribunal pronunciou-se já, no acórdão nº 329/99 (Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1999), tirado em Plenário, sobre a compatibilidade do disposto no artigo 1º, nºs 1, 2 e
3 do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, com os artigos 17º e 18º, nº 3 da Constituição, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade, doutrina que se reiterou, em fiscalização abstracta sucessiva, no acórdão nº 517/99, de 22 de Setembro (inédito). Especificamente sobre esta questão ponderou o Tribunal Constitucional:
'5. As questões de inconstitucionalidade material:
5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo 'a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93', e encurtando 'o prazo de caducidade daqueles actos',
'estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi'. Também neste ponto falece razão à recorrente. De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito. Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) - e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional. Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará, se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da 'sombra desqualificante da desigualdade' que sobre eles pesa (cf. FERNANDO ALVES CORREIA, in Problemas Actuais cit., página 19). As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 62º, n.º 1, da Constituição'.
Foi, porém, mais longe o Tribunal Constitucional, que não se limitou ali a tratar da questão de constitucionalidade material que agora vem colocada pelo recorrente (a compatibilidade das normas objecto do recurso com os artigos 17º e
18º, nº 3 da Constituição), mas, de forma mais ampla, tratou igualmente de outras questões de constitucionalidade material e orgânica de que alegadamente – no entender da então recorrente – padeciam as normas sub judicio. O que então se ponderou tem, contudo, igualmente importância no âmbito do presente recurso, uma vez que, como refere o artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não obstante o Tribunal Constitucional só poder julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação, pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, razão porque transcrevemos de seguida o essencial do que então disse o Tribunal Constitucional. Sobre a alegada inconstitucionalidade orgânica das normas objecto de recurso, ponderou o Tribunal (embora com um voto de vencido):
'4. As questões de inconstitucionalidade orgânica:
4.1. As normas sub iudicio e o estatuto das autarquias locais: Sustenta a recorrente que as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, na medida em que sujeitam 'a validade e eficácia de actos de licenciamento praticados por órgãos das autarquias locais a confirmação de entidades da Administração Central', alteram 'as competências decisórias daquelas' e os
'procedimentos legalmente estabelecidos', pois que vêm dispor sobre matéria incluída no âmbito do estatuto das autarquias locais. E, desse modo, os referidos normativos violam a reserva parlamentar constante do artigo 168º, n.º
1, alínea s), da Constituição (versão de 1989) - correspondente ao artigo 165º, n.º 1, alínea q), da actual redacção -, pois que 'emanaram do Governo sem prévia autorização legislativa da Assembleia da República'. A recorrente não tem razão.
É certo que as normas sub iudicio, na medida em que exigem que as licenças (de loteamento, de obras de urbanização ou de construção) concedidas anteriormente pelas câmaras municipais, ainda que tituladas por alvará, sejam submetidas a confirmação do Governo, com vista a garantir a sua compatibilidade com os planos regionais de ordenamento do território, condicionam a eficácia dessas licenças, pois que, não se requerendo a confirmação ou sendo ela denegada, tais licenças
'caducam'. Tais normas não estatuem, porém, sobre a organização ou as atribuições das câmaras municipais, nem sobre as competências dos seus órgãos, que são as matérias que, a par do regime das finanças locais, integram o estatuto, cuja modelação tem de ser feita pela Assembleia da República ou pelo Governo com autorização sua. De facto, como se viu atrás (cf. 3.3.), continua a ser às câmaras municipais que compete a concessão (ou a denegação) de licenças do tipo apontado, sendo elas que, para o efeito, devem assegurar-se de que os pedidos apresentados não violam os planos urbanísticos. Acontece apenas que o legislador, tendo constatado que
'existem situações de incompatibilidade' entre os planos regionais de ordenamento do território e 'alguns actos praticados, anteriormente à data da sua entrada em vigência, pelas câmaras municipais (...) que, nos termos da lei, autorizam, aprovam ou licenciam usos e ocupações de solos', se viu na necessidade de, para impor o respeito por aqueles planos, submeter as licenças já concedidas àquela verificação de compatibilidade e determinar a sua
'caducidade', no caso de, com eles, serem incompatíveis.
É que, só exigindo a confirmação de compatibilidade, o legislador podia fazer observar as regras gerais de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos constantes dos instrumentos de planeamento, por forma a conseguir-se um correcto zonamento, utilização e gestão dos mesmos, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais - coisa que constitui uma das tarefas fundamentais do Estado [ cf. artigo 9º, alínea e), e artigo 65º, n.º 4, da Constituição] e se inscreve no cumprimento da política de ordenamento que, com respeito pelas
'bases do ordenamento do território e do urbanismo' - que, após a Revisão de
1997, à Assembleia da República compete aprovar [ cf. artigo 165º, n.º 1, alínea z)] - ao Governo cabe definir e fazer executar [ cf. artigos 65º, n.º 4, e 199º, alínea a), da Constituição] . Por isso, legislar no sentido de condicionar a eficácia das licenças urbanísticas concedidas (e, nalguns casos mesmo, determinar a sua 'caducidade') era algo que o Governo podia fazer sem necessidade de autorização parlamentar, pois se tratou, ao cabo e ao resto, de executar um princípio rector da política de ordenamento do território definida pela Assembleia da República: o princípio da prevalência dos planos de ordenamento regional do território sobre os planos municipais. As normas relativas aos prazos de caducidade (artigos 2º e 6º) não constituem objecto do recurso. Desde logo por isso, não há que analisar a questão da alegada violação da reserva parlamentar atinente ao estatuto das autarquias locais delas decorrente. A legislação aqui em causa tem a ver com outras questões - a saber: a questão da autonomia das autarquias locais e a questão da protecção da confiança dos cidadãos. Mas essoutras questões serão analisadas adiante.
4.2. As normas sub iudicio e o direito de propriedade: A recorrente sustenta também que, tendo o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, sido editado sem autorização legislativa, as normas sub iudicio são organicamente inconstitucionais, uma vez que versam sobre o direito de propriedade - recte, sobre uma faculdade nele incluída (o ius aedificandi) -, que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, inscrevendo-se, por isso, na reserva parlamentar constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1989 [ cf., hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)] . A recorrente não tem, porém, razão. Não a tem, quando se entenda, com FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., páginas
51 e 52), que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada,
'sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos' - ou seja, 'um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas' (cf., também do mesmo autor, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, páginas 372 a 383). E isso, apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [ cf., neste sentido, acórdãos nºs 404/87 e
257/92 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e
18 de Junho de 1993);o acórdão n.º e 431/94 (publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de Junho de 1994); e ainda os acórdãos nºs 1/84 e 14/84
(publicados no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1984, o primeiro, e de 10 de Maio de 1984, o segundo)] e gozar, consequentemente - ex vi do disposto no artigo 17º da Constituição -, do respectivo regime naquilo que nele reveste essa natureza análoga. De facto, não sendo o ius aedificandi inerente ao direito de propriedade do solo, o Governo, ao editar o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro - e, assim, ao sujeitar a verificação de conformidade as licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, e ao determinar a 'caducidade' das que não forem confirmadas -, não editou normas sobre o direito de propriedade. Mas, sendo assim, é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias. Mas, mesmo quem entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada, por ser uma das faculdades em que tal direito se analisa, acontecendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração [ cf., neste sentido, entre outros, DIOGO FREITAS DO AMARAL ('Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia', in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, páginas 99 a
101)] , não tem forçosamente que concluir, como fazem alguns autores [ cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL e PAULO OTERO (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, páginas 29 e 30); e J.M. SÉRVULO CORREIA E J. BACELAR GOUVEIA (Direito do Ordenamento cit., página 151)] , que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi (e, concretamente, a que se contém no mencionado Decreto-Lei n.º 351/93) haja de ser produzida (ou autorizada) pela Assembleia da República.
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar 'as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias'. Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos. FERNANDO ALVES CORREIA fala do direito de propriedade urbana como 'um direito planificado'; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem
'o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo', sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50). A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).
4.3. As normas sub iudicio e a liberdade de iniciativa económica: Sustenta ainda a recorrente que, tendo o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, sido editado sem autorização legislativa, as normas sub iudicio são organicamente inconstitucionais, porque versam sobre o direito de iniciativa económica privada, que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e que, por isso, se inscreve na reserva parlamentar constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1989 (cf., hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)). Também neste ponto a recorrente não tem razão. De facto, ainda que a sua execução possa ter reflexos no desenvolvimento da actividade económica, é suficientemente evidente que as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, que determinaram a 'caducidade' das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas, não versam directamente sobre a liberdade de iniciativa económica privada. E, de todo o modo, a lei a que se refere o artigo 61º, nº 1, da Constituição só tem que ser uma lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada no que se refere aos quadros gerais e aos aspectos garantísticos daquela liberdade. Por isso, visto o diploma legal sob estoutra perspectiva, o Governo, ao editá-lo, não invadiu a reserva parlamentar'.
No que se refere à alegada inconstitucionalidade material das normas objecto de recurso, ponderou o Tribunal:
'5. As questões de inconstitucionalidade material:
5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo 'a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93', e encurtando 'o prazo de caducidade daqueles actos',
'estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi'. Também neste ponto falece razão à recorrente. De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito. Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) - e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional. Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará, se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da 'sombra desqualificante da desigualdade' que sobre eles pesa (cf. FERNANDO ALVES CORREIA, in Problemas Actuais cit., página 19). As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 62º, n.º 1, da Constituição'.
5.1.2. As normas relativas aos prazos de caducidade (artigos 2º e 6º) não constituem objecto do recurso. Desde logo por isso, não há que analisar a questão da alegada inconstitucionalidade delas decorrente.
5.2. As normas sub iudicio e o dever de indemnizar: A recorrente sustenta ainda que, como não prevêem 'a atribuição de qualquer indemnização aos lesados pela prática de acto ablativo de não confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos perfeitamente válidos e eficazes à data da sua prolação, nem pela caducidade resultante dos novos prazos estabelecidos para o exercício dos direitos emergentes daqueles actos' - acto de não confirmação que pode constituir 'verdadeiro acto expropriativo do direito de construir concretizado através de licenças urbanísticas válidas e eficazes' - as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, 'enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade' (artigos 13º, 18º, 62º e 266º da Constituição). Vejamos, então: Disse-se atrás que a especial situação da propriedade - seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem - importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. Por isso, a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será – sublinha FERNANDO ALVES CORREIA, Estudos de Direito do Urbanismo citado, páginas 47 e notas 10 e 11, 68, 112 e 120 - quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação, à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
É que, o Estado de Direito deve ser um Estado de Justiça. E, por isso, quando, por tal ser necessário para a realização de um interesse público urbanístico, ele 'expropria' o particular de um direito que antes lhe concedera validamente, a justiça exige que esse particular seja indemnizado, como, de resto, impõe o artigo 22º da Constituição. Pois bem: uma das situações que, por via da gravidade e da intensidade dos danos que produz na esfera jurídica dos particulares, impõe o pagamento de uma indemnização é, justamente, aquela em que as licenças ou autorizações de loteamento, urbanização ou construção já concedidas são postas em causa por um plano urbanístico posterior, designadamente, em virtude de, como é o caso, uma lei posterior vir retirar eficácia a licenças de loteamento, urbanização ou construção já concedidas, desde que se não prove que essas licenças já concedidas são compatíveis com as regras de uso, ocupação ou transformação dos solos, constantes desse plano. Esta perda de eficácia, importando a ablação de faculdades ou direitos antes reconhecidos aos particulares, não pode ter lugar senão mediante o pagamento de uma indemnização. Mas, então, como o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não prevê o pagamento de indemnização no caso de as licenças já concedidas não serem confirmadas, a conclusão que parece impor-se é a de que, tal como pretende a recorrente, as normas aqui sub iudicio são, nesse ponto, inconstitucionais, por violação da princípios da justa indemnização, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça - tudo conforme ao disposto nos artigos 62º, n.º 2, 13º e 266º, n.º
2, da Constituição. Esta é, contudo, uma conclusão apressada.
É que, não é necessário que o dever de indemnizar seja imposto pelo diploma legal em que se inscrevem as normas sub iudicio para se salvar a sua compatibilidade com a Constituição. Basta que esse dever decorra de outras normas legais. De facto - como escreve MARCELO REBELO DE SOUSA (Direito do Ordenamento do Território e Constituição cit., página 57) -, 'o juízo de inconstitucionalidade não pode recair sobre uma norma legal dissociando-se de todas as demais que vigoram no ordenamento jurídico e, designadamente, daquelas que lhe são mais próximas'. Pois bem: se, no momento em que foi editado o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não havia norma legal que expressamente previsse o dever de indemnizar, com fundamento no facto de, por 'caducarem' as licenças anteriormente concedidas, se ficar impedido de urbanizar ou construir em loteamento já autorizado; o certo é que esse direito a ser indemnizado podia fazer-se decorrer do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 27 de Novembro de 1967. Na verdade, este artigo 9º prescreve que o 'Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais'. Ora, no caso, o que conduz à perda de eficácia das licenças anteriormente concedidas é um encadeamento de actos que se iniciou com a aprovação de um novo plano de ordenamento; prosseguiu com a edição de normas que, ao exigirem a prova da compatibilidade das licenças anteriormente concedidas, afectam situações jurídicas criadas pela outorga dessas licenças – e, por isso, nessa parte, podem dizer-se 'leis medida'; continua, nalguns casos, com o indeferimento do pedido de certificação daquela compatibilidade ou com a não aprovação de projectos de obras de urbanização de loteamentos anteriormente licenciados (e, assim, com a não emissão do respectivo alvará); e culmina, a final, com a perda de eficácia das licenças que antes foram validamente atribuídas. Sendo isto assim, uma interpretação do mencionado artigo 9º à luz do artigo 22º da Constituição não pode deixar de impor ao Estado o dever de indemnizar o particular que assim se viu 'expropriado' de faculdades ou direitos que antes lhe foram validamente reconhecidos. Regista-se que, presentemente, o direito a ser indemnizado encontra-se expressamente consagrado no artigo 18º, nº 2, da citada Lei n.º 48/98, de 12 de Agosto, nos termos seguintes:
1. Os instrumentos de gestão patrimonial vinculativos dos particulares devem prever mecanismos equitativos de perequação compensatória, destinados a assegurar a redistribuição entre os interessados dos encargos e benefícios deles resultantes, nos termos a estabelecer na lei.
2. Existe o dever de indemnizar sempre que os instrumentos de gestão patrimonial vinculativos dos particulares determinem restrições significativas de efeitos equivalentes a expropriação, a direitos de uso do solo preexistentes e juridicamente consolidados que não possam ser compensados nos termos do número anterior.
3. A lei define o prazo e as condições de exercício do direito à indemnização previsto no número anterior. Este artigo 18º - para além de impor que os planos vinculativos dos particulares
(ou seja: os planos municipais e os planos especiais de ordenamento do território: cf. artigo 11º, n.º 2, da citada Lei n.º 49/98) prevejam mecanismos de perequação dos benefícios e encargos deles resultantes – prevê, pois, o dever de indemnizar naqueles casos que se poderão qualificar como expropriações do plano (cf. FERNANDO ALVES CORREIA, Problemas Actuais, cit., página 20). Elas traduzem, na verdade - diz o mesmo Autor (ob. e loc. cit.) - , 'modificações especiais e graves da utilitas do direito de propriedade que não podem deixar de ser qualificadas como ‘expropriativas’ (expropriações de sacrifício ou substanciais)'; e, consequentemente, não podem deixar de 'ser acompanhadas de indemnização, ainda que com carácter residual, ou seja, quando a compensação não puder ter lugar com base nas técnicas perequativas'. Há, assim, que concluir que, como o regime instituído pelas normas sub iudicio deve ser integrado pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 27 de Novembro de
1967, interpretado por forma a impor ao Estado o dever de indemnizar os particulares que, por aplicação daquelas normas, vejam 'caducar' as licenças que antes obtiveram validamente, o facto de não imporem, elas próprias, esse dever de indemnizar não as torna inconstitucionais.
5.3. As normas sub iudicio e a liberdade de iniciativa económica:
5.3.1. No tocante à liberdade de iniciativa económica, a recorrente faz decorrer a inconstitucionalidade do facto de, em seu entender, a exigência da confirmação da compatibilidade das licenças já concedidas com os planos regionais de ordenamento do território e o encurtamento dos prazos de caducidade de tais licenças constituírem restrições retroactivas da mesma. Tal liberdade não sofre restrição pelo facto de ser proibido construir num determinado solo ou de isso apenas se poder fazer dentro de certos limites ou com determinados condicionamentos. De todo o modo, mesmo que deva entender-se que a dita liberdade foi nalguma medida limitada pelas normas sub iudicio, uma coisa é certa: a garantia constitucional da liberdade económica privada há-de exercer-se sempre 'nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral' (cf. artigo 61º, nº 1, da Constituição). Ora, o interesse geral não pode deixar de atender às necessidades de ordenamento do território, pois que constitui tarefa fundamental do Estado 'assegurar um correcto ordenamento do território [cf. o artigo 9º, alínea e), da Constituição].
5.3.2. Quanto ao encurtamento dos prazos de caducidade, já se viu que as normas que lhe respeitam não constituem sequer objecto do recurso. As normas sub iudicio não violam, pois, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 61º, n.º 1, da Constituição.
5.4. As normas sub iudicio e o instituto da tutela: Do ponto de vista da recorrente, as normas sub iudicio são também inconstitucionais, por instituírem um regime de tutela revogatória de legalidade e mérito, assim violando artigos 6º, n.º 1, e 243º da Constituição. A recorrente não tem razão. O Estado - prescreve o artigo 6º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
- é unitário, mas, na sua organização e funcionamento, respeita os princípios da subsidariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (cf. artigo 235º, n.º 1). Embora compita ao legislador definir as atribuições das autarquias locais e as competências dos seus órgãos (cf. artigo
237º, n.º 1), ao fazê-lo, não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem, antes, que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e que reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer aqueles interesses - os interesses próprios ou privativos das respectivas comunidades. As autarquias locais constituem, assim, verdadeira administração autónoma. Uma das matérias que se inscreve na esfera autárquica é, como se viu, a relativa ao urbanismo e, em certos termos, a atinente ao ordenamento do território. De facto, cumpre-lhes elaborar e aprovar planos municipais de ordenamento do território e, bem assim, regulamentos municipais sobre urbanizações e construções; e, além disso, compete-lhes a gestão urbanística, ou seja, o licenciamento das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras de construção civil (cf. supra, 3). Acontece, porém que a matéria do ordenamento do território e do urbanismo assume também natureza nacional, pois, nalguns dos seus aspectos, diz respeito à comunidade nacional no seu todo. Mais especificamente: constitui mesmo uma das tarefas fundamentais do Estado 'defender a natureza e o ambiente [ ...] e assegurar um correcto ordenamento do território' [ cf. artigo 9º, alínea e), da Constituição] . Por isso é que o artigo 65º, n. 4, da Constituição dispõe que 'o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística'; e que o artigo 66º, n.º 2, prescreve que incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios, 'ordenar e promover o ordenamento do território' [ alínea b)] e 'em colaboração com as autarquias locais', promover 'a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas' [ alínea e)] .
É, assim, uma matéria que - nos dizeres de FERNANDO ALVES CORREIA (Problemas Actuais cit., página 14) - 'convoca, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais - cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado [ cf. os artigos 9º, alínea e), 65º, n.º 2, alínea a), e n.º 4, e 66º, n.º 2, alínea b)] -, interesses específicos das regiões autónomas [ cf. os artigos 6º, n.º 2, 225º, n.º 2, e 228º, alínea g)] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa, condensados nos artigos 6º, n.º 1, 235º e 237º da Constituição, sendo, por isso, um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autónomas) e municipal'. E o mesmo autor acrescenta: Esta ideia de que a problemática do urbanismo - e também, de certo modo, a do
‘ordenamento do território’ [ ...] - é um espaço aberto à intervenção concorrente - e também concertada - entre os entes públicos territoriais acima referidos resulta claramente, no que respeita à planificação urbanística e às expropriações urbanísticas, do n.º 4 do artigo 65º da Constituição, na redacção da Revisão Constitucional de 1997 [ ...] . Este Tribunal, no seu acórdão n.º 432/93 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Agosto de 1993), sublinhou esta mesma ideia, que, depois, repetiu no acórdão n.º 379/96 (publicado no Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1996). No primeiro dos arestos indicados, o Tribunal - depois de acentuar que 'o espaço incomprimível' da autonomia local é o dos 'assuntos próprios do círculo local', os quais se identificam com 'aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratadas de modo autónomo e com responsabilidade própria' - precisou que 'isso não significa que as autarquias locais não possam ou não devam ser chamadas a uma actuação concorrente com a do Estado na realização [ de] tarefas' relativas à matéria de urbanismo. E acrescentou: A determinação contida no artigo 6º, n.º 4, demonstra precisamente a legitimidade dessa actuação concorrente das autarquias locais na realização das tarefas constitucionais. Mas aqui já não está presente aquela ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia. Nesse aresto, acrescentou-se que as matérias de ordenamento do território e do planeamento urbanístico, 'porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em estado' (e, portanto, 'transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais'), não são privativas das autarquias locais. E precisou-se: Para mais, este domínio da promoção habitacional, urbanismo e gestão do ambiente
é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado.
[ Cf. ainda, no mesmo sentido, o acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Março de 1996) e FERNANDO ALVES CORREIA (O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, página 165)] . Nas matérias de ordenamento do território e de urbanismo existe, assim, um
'condomínio de atribuições' (a expressão é de FERNANDO ALVES CORREIA), no qual está constitucionalmente reservado ao Estado a competência para a produção das normas gerais sobre a ocupação, uso e transformação do solo, ou seja, para a aprovação das 'bases do ordenamento do território e do urbanismo' [ artigo 165º, n.º 1, alínea z), da Constituição) e, bem assim, dos respectivos decretos-leis de desenvolvimento e demais legislação complementar - maxime, a elaboração e aprovação dos planos regionais e especiais de ordenamento do território [ cf. artigos 198º, n.º 1, alínea c), 199º, alíneas a) e c)] . Mais: como as matérias do ordenamento do território e do urbanismo não são assuntos do interesse exclusivo das autarquias locais, pois que interessam também à comunidade nacional no seu conjunto, os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa não podem constituir obstáculo a que o Estado reserve para si, entre outras, a competência para ratificar os planos municipais (cf. artigos 3º, nºs 3, e 4, e 16º do Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março) e para fiscalizar, em certos termos, a observância pelas câmaras municipais e pelos particulares das disposições dos planos (assim, FERNANDO ALVES CORREIA, Problemas Actuais cit., página 15). Não pode, pois, fazer-se decorrer dos princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, na parte em que determinam a caducidade das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas.
É certo que, entre as autarquias locais e o Estado, existe apenas uma relação de supra-ordenação-infra-ordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos
(os interesses do nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um
único e mesmo interesse: o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais [ cf. J. BAPTISTA MACHADO (Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade da Constituição de 1976, Coimbra, 1976, página
17); J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 897); e JOSÉ CASALTA NABAIS ('A Autonomia Local', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1993, páginas 171)] . E, por isso, ao Estado cabe apenas exercer, relativamente às autarquias locais, uma função de controlo da legalidade das respectivas decisões administrativas - ou seja, uma pura função de tutela da legalidade: 'a tutela administrativa sobre as autarquias locais - prescreve o artigo 242º, n.º 1, da Constituição - consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'. O objecto dessa tutela (uma tutela de legalidade, que não de mérito) não é o valor da decisão administrativa, a sua utilidade, o seu merecimento, avaliados em vista do fim que a Administração se propôs atingir [ cf. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, página 207 e seguintes)] . A sua finalidade é verificar o cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos; não controlar a conveniência ou inconveniência da decisão administrativa, a sua oportunidade ou inoportunidade, a sua correcção ou incorrecção [ cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1986, páginas 692 e 695)] . É uma tutela que - nos dizeres de JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 17) - há-de ser 'apenas uma faculté d’empecher, un frein, admissível para obstar a que as decisões das autarquias extravasem das suas atribuições e invadam as atribuições de outras autarquias ou administrações autónomas'. A autoridade tutelar tem, por isso, de 'cingir-se a reconhecer ou não, dentro de certos limites estabelecidos na lei, as decisões dos entes dotados de autonomia'(ibidem). Esta tutela de legalidade é, além disso, 'de tipo meramente verificativo', diz DIOGO FREITAS DO AMARAL (Direito do Urbanismo. Sumários, Lisboa, 1993, página 61). Não comporta, por consequência, qualquer forma de tutela substitutiva, correctiva, homologatória ou orientadora [ cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Anotada cit., página 897. Cf. ainda ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA ('Poderes de intervenção do Estado em matéria de urbanismo. Autonomia local. Tutela', in Scientia Iuridica, tomo XLI, 1992, página 171 e seguintes)] . Simplesmente, contrariamente ao que sustenta a recorrente, as normas sub iudicio não instituem uma tutela revogatória de legalidade e mérito ou outra qualquer modalidade de tutela proibida pelo artigo 242º, n.º 1, da Constituição. Tal como se concluiu no citado acórdão n.º 379/96, a propósito da norma constante do n.º 6 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 219/72, de 27 de Junho, que atribui à Junta Autónoma de Estradas (JAE) o poder de embargar obras proibidas nas zonas non aedificandi das estradas nacionais, também agora se conclui que aquelas normas se limitam a regular o exercício de uma competência do próprio Estado. De facto, os poderes do Estado neste domínio (o domínio do ordenamento do território e do urbanismo) não podem ficar-se por poderes de simples controlo da legalidade das decisões administrativas das autarquias locais, como é próprio dos poderes de tutela. Como, a par de interesses próprios das comunidades locais, confluem aí interesses que são de toda a comunidade nacional, é indispensável 'proceder a uma justa ponderação de todos eles, a fim de conseguir a sua harmonização - o que reclama que o poder de decisão, em vez de se entregar por inteiro às autarquias locais, atribuindo-se ao Estado um mero poder de controlo da legalidade, seja compartilhado' por ele próprio (apud acórdão n.º
379/96).
5.5. As normas sub iudicio e o princípio do Estado de Direito: A recorrente sustenta ainda que as normas sub iudicio, como se aplicam retroactivamente, violam os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsitos no princípio do Estado de Direito - e, assim, os artigos 2º, 9º, alínea b), 18º, n.º 2, e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição. Também neste ponto a recorrente não tem razão. Pode, desde logo, questionar-se se as normas sub iudicio, ao determinarem (para o que aqui importa) a 'caducidade' das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas, são verdadeiramente retroactivas [cf. o acórdão nº 339/90
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 333 e seguintes)]. De todo o modo, acontece que, fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29º, nºs 1,3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103º, n.º 3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional [ cf. acordão n.º 95/92
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, página 341 e seguintes)] . Fora dos domínios apontados - e isto é o que acontece no presente caso, como decorre do que se disse atrás -, uma lei retroactiva só será inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede, quando a lei afecta, de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' [ cf. acórdão n.º
330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Cf. também os acórdãos nºs 574/98 (por publicar) e 575/98
(publicado no Diário da República, II série, de 26 de Fevereiro de 1999)] . Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [ cf., entre outros, o acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1º, páginas 11 e seguintes), o citado acórdão n.º 287/90, o acórdão n.º486/96 (publicado no Diário da República, II série, de
17 de Outubro de 1997) e os acórdãos nºs 574/98 e 575/98, citados por último ] . Pois bem: in casu, não pode dizer-se que a ablação do direito à licença de loteamento concedida (e, com ela, a afectação das expectativas da recorrente) - as expectativas de ver deferido o pedido, que apresentou em 13 de Outubro de
1993, de que fosse aprovado o projecto de execução de obras de urbanização do loteamento que lhe tinha sido licenciado em 25 de Setembro de 1992 - tenha sido arbitrária ou deva considerar-se demasiado onerosa. Por isso, não é ela intolerável. E, não o sendo, não é constitucionalmente inadmissível. A ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação daquelas expectativas da recorrente seriam constitucionalmente inadmissíveis, porque arbitrárias, se não houvesse fundamento material (um interesse público) capaz de justificar a mutação operada na ordem jurídica - uma mutação que, então, se apresentaria como imprevisível e injustificada, não podendo os cidadãos contar com ela. No presente caso, porém, existe um interesse público – o interesse público num correcto ordenamento do território - com relevo suficiente para justificar que se condicione a aprovação do projecto de execução das obras de urbanização, requeridas pela recorrente, à confirmação da compatibilidade do loteamento 'com as regras de uso, ocupação e transformação do solo' constantes de plano regional de ordenamento do território posterior: no caso, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto.
É que, como se viu atrás, os planos municipais de ordenamento do território têm como quadro de referência os planos regionais de ordenamento do território. Estes, com efeito, visam 'o concreto ordenamento do território através do desenvolvimento harmonioso das suas diferentes parcelas pela optimização das implantações humanas e do uso do espaço e pelo aproveitamento racional dos seus recursos' (cf. artigo 1º do Decreto-Lei nº 176-A/88, de 18 de Maio) e têm os seguintes objectivos: 'concretizar para a área por eles abrangida a política de ordenamento'; 'definir as opções e estabelecer os critérios de organização e uso do espaço, tendo em conta, de forma integrada, as aptidões e potencialidades da
área abrangida'; 'estabelecer normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território abrangido, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais'; e
'estabelecer directrizes, mecanismos ou medidas complementares de âmbito sectorial que forem consideradas necessárias à implementação do PROT' (cf. artigo 3º do citado Decreto-Lei nº 176-A/88, na redacção do Decreto-Lei nº
367/90, de 26 de Novembro). E, por isso, prescrevia o artigo 12º, nº 1, do mesmo diploma legal que 'as normas e princípios dos PROT são vinculativos para todas as entidades públicas e privadas, devendo com eles ser compatibilizados quaisquer outros planos, programas ou projectos de carácter nacional, regional ou local', acrescentando o nº 2 que 'a desconformidade de quaisquer planos, programas ou projectos enunciados no número anterior relativamente ao PROT acarreta a nulidade'. Com a publicação da Lei nº 48/98, de 11 de Agosto (Lei de
'Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo'), os PROT deixaram, é certo, de ser vinculativos para os particulares, mas continuaram a sê-lo para as entidades públicas (cf. artigo 11º, nº 1). Ou seja: os municípios acham-se vinculados pelos PROT na elaboração e aprovação dos planos municipais. Estes – os planos municipais – é que, tal como os planos especiais, vinculam os particulares (cf. o nº 2 do citado artigo 11º). Por isso, está vedado aos municípios incluir nos planos municipais disposições que contrariem as directivas dos planos regionais de ordenamento do território ou ponham em causa as opções fundamentais neles condensadas ou o destino geral dos solos neles traçado. Daqui decorre, naturalmente, que os planos municipais de ordenamento do território do município de Grândola têm que compatibilizar-se com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto. Ora, tendo os planos municipais de ordenamento do território - que são vinculativos para os particulares - que ser elaborados com observância das regras constantes do respectivo plano regional, mal se compreenderia que, depois, as câmaras municipais pudessem conceder licenças para a execução de obras de urbanização que fossem incompatíveis com esse plano regional. Tanto mais que o actos praticados em violação das disposições dos planos urbanísticos, mesmo que se trate de actos tácitos de deferimento, são sempre nulos (cf. FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., página 132). Se as câmaras municipais pudessem passar licenças que fossem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, frustrar-se-ia um dos objectivos desses planos, que é – repete-se – o de definir opções e critérios de organização e uso do espaço por eles abrangido, estabelecendo 'normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais' (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro). Frustrar-se-ia, em suma, o desiderato de conseguir que aos cidadãos seja assegurado um 'ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado', o que passa pela 'valorização da paisagem', por um correcto 'ordenamento do território' e pela promoção da 'qualidade ambiental das povoações e da vida humana, designadamente no plano arquitectónico' [ cf. artigo 66º, nºs 1 e 2, alíneas b) e e)] . Pois bem: foi, justamente, o facto de saber que existem situações de incompatibilidade entre as soluções propostas pelos planos regionais de ordenamento do território e 'alguns actos praticados, anteriormente à data da sua entrada em vigência, pelas câmaras municipais e outras entidades que, nos termos da lei, autorizam, aprovam ou licenciam usos e ocupações de solos' - situações que 'ocorrem não só em relação aos planos regionais de ordenamento do território que já estão em vigor, como podem também vir a verificar-se no que respeita a planos ainda não aprovados e publicados' - que levou o legislador a determinar 'a caducidade dos direitos conferidos' por esses 'actos praticados anteriormente' em desconformidade com os planos. Mas, ciente também de que existem situações em que 'não é clara a incompatibilidade entre o conteúdo dos actos praticados e o regime decorrente de cada plano regional de ordenamento do território', o mesmo legislador decidiu 'facultar aos particulares um meio expedito de verificação da compatibilidade do conteúdo dos actos com regras de uso e ocupação do solo decorrentes de plano regional de ordenamento do território', a fim de 'permitir uma avaliação casuística da compatibilidade com os planos referidos, possibilitando a definição clara de todas as situações em causa' (cf. citado preâmbulo). Foi a confirmação da compatibilidade do licenciamento do loteamento com o PROTALI que a Câmara Municipal de Grândola pediu que a recorrente solicitasse à entidade competente. A dita ablação do direito à licença de loteamento, com a consequente afectação das mencionadas expectativas da recorrente, seria também constitucionalmente inadmissível, se fosse demasiado onerosa, pois, em tal caso, ela seria intolerável. Sucede, no entanto, que, quando as licenças anteriormente concedidas, por serem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, houverem de
'caducar', a perda do direito à licença é, como se disse acima, compensada com o pagamento de uma indemnização. E, por isso, não pode a referida ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação das mencionadas expectativas ser havida como demasiado onerosa. As normas sub iudicio não violam, assim, o princípio da protecção da confiança, que vai implicado na ideia de Estado de Direito, entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica - da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas. De facto - repete-se -, a mutação introduzida na ordem jurídica por essas normas tem a justificá-la um relevante interesse público: o interesse público de um correcto ordenamento do território. Ao que acresce que os efeitos da sua aplicação retroactiva, quando impliquem a 'caducidade' de licenças anteriormente concedidas, são minorados pelo pagamento de uma indemnização ao particular prejudicado. E mais: as licenças só 'caducam', se forem incompatíveis com o respectivo plano de ordenamento do território, salvo, ainda assim, se, em casos do tipo do destes autos, as obras de urbanização se iniciaram (e não se suspenderam) antes de entrar em vigor o plano ou começaram dentro do prazo de validade fixado na respectiva licença, pois, tal sucedendo, presume-se que a licença é compatível com as regras constantes do plano. É neste sentido que o artigo 1º, nºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 351/93 deve ser interpretado, como sustenta SÉRVULO CORREIA (cf. Parecer citado). Ora, o princípio de justiça que, enquanto decorrência da ideia de Estado de Direito, deve servir de guia à actividade legislativa e, bem assim, comandar a actuação dos órgãos e agentes da Administração (cf. artigo 266º, n.º 2, da Constituição), não exige mais do que isto'.
É esta jurisprudência que agora há que aplicar ao caso dos autos.
III. Decisão: Pelo exposto, decide-se: a) em aplicação da jurisprudência firmada nos acórdãos nºs 329/99 e 517/99, não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1º, nº 1, e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, no entendimento de que elas se hão-de ter por integradas pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 27 de Novembro de
1967, por forma a impor-se ao Estado o dever de indemnizar, nos termos deste
último diploma legal, os particulares que, por aplicação daquelas normas, vejam
'caducar' as licenças que antes obtiveram validamente; a. em consequência, conceder provimento ao recurso; Lisboa, 9 de Novembro de 1999- José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida