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Proc. nº. 350/99 TC - 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A. T. e J. T. foram julgados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia, na forma de processo sumário, por terem sido surpreendidos, por uma patrulha da Guarda Florestal, a pescar bogas em época de defeso e com uso de material explosivo, tipo de ilícito p. e p. pelos artigos 29º, alínea b) e 64º, 44º, alínea b) e 61º do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962, tendo a primeira das normas referidas sofrido nova redacção por força do Decreto-Lei nº.
312/70, de 6 de Julho de 1970 [cfr. artigo 29º, alínea f)].
O arguido A. T. veio a ser condenado pela prática, como autor material, do ilícito consumado p. e p. pelos artigos 29º, alínea f) e 64º do Decreto-Lei nº.
312/70, de 6 de Julho de 1970, na pena de 15 dias de prisão e 6000$00 de multa, em concurso efectivo e ideal com o ilícito p. e p. pelo artigo 44º, alínea b) e
61º do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962, na pena de 4 meses e 15 dias de prisão e 12 000$00 de multa, penas estas em cúmulo material, suspensa a respectiva execução pelo período de um ano (cfr. fls. 28 a 32).
Relativamente ao arguido J. T., o Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia considerou '(...) inconstitucional, recusando assim a sua aplicação, a norma constante do artigo 61º, parágrafo único do Decreto nº. 44 623, de 10/10/1962, por violação do princípio constitucional da presunção de inocência por tal norma considerar, em termos objectivos, como autor moral de um facto ilícito quem acompanhe – nos casos ali referidos – o agente de tal facto, fazendo-o sem ser necessária a prova dos factos integrantes do conceito de co-autoria (art. 26 C.P., acordo expresso ou tácito e execução global ou parcial desse acordo ou plano), nos termos dos arts. 32º 2, 205º e 207º C.R.P.', fundamento pelo qual absolveu o arguido.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea a) da Lei nº. 28/82, de
15 de Novembro, desta sentença por recusa de aplicação da norma constante do artigo 61º, § único do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962, com fundamento em violação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal apresentou alegações em que concluiu:
'A norma constante do artigo 61º, parágrafo único, do Decreto nº. 44
623, de 10 de Outubro de 1962, ao considerar autores morais dos crimes previstos e punidos no corpo daquele artigo todos os que acompanharem os seus autores materiais, sem ser necessária a prova dos factos integrantes do conceito de co-autoria, é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência.'
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Dispõe o artigo 61º (e respectivo parágrafo único) do Decreto 44 623, de 10 de Outubro de 1962:
'A utilização na pesca de materiais explosivos, químicos ou vegetais, correntes eléctricas, substâncias venenosas ou tóxicas e, de uma maneira geral, susceptíveis de causar a morte ou o atordoamento dos peixes constitui crime punível com a pena de prisão nunca inferior a quatro meses e multa de 100$ a 10
000$.
§ único. São considerados autores morais dos crimes previstos e punidos por este artigo todos os que acompanharem os seus autores materiais ou que tirarem proveito da sua prática, conhecendo a intenção dos seus agentes ou as circunstâncias do acto.'
Esta norma incriminatória aparece inserida num diploma percursor da tutela penal de defesa do ambiente e da ecologia, na específica matéria da pesca e conservação de espécies piscícolas, introduzido na ordem jurídica nacional em
1962, fruto do entendimento do legislador ordinário, no vasto campo de discricionaridade que lhe está assinalado em termos de incriminação, de que as sanções penais eram necessárias, nas suas existência e medida, para tutela da conservação de algumas espécies piscícolas, consagrando assim, pelo menos, uma
'tutela indirecta de 'ambiente' ( ainda mesmo quando este se tome só no enquadramento circunscrito do ambiente em que nascem e se conservam os seres vivos)' (cfr. Figueiredo Dias, Sobre o papel do direito penal na protecção do ambiente, in Revista de Direito e Economia, IV, 1978, pág. 4).
Trata-se, como se disse, de um diploma legal de 1962, anterior, pois, à Constituição de 1976, pelo que, por força do disposto no artigo 290º nº. 2 da CRP, se impõe averiguar em que medida as soluções do legislador ordinário são ou não contrárias, materialmente, às normas ou aos princípios constitucionais.
No caso, tal averiguação tem como parâmetros de constitucionalidade as opções axiológicas constitucionais reveladas pelas normas da Constituição que se configuram como princípios fundamentais em matéria de direito penal e de direito processual penal, em especial, quanto à primeira, o princípio da culpa e quanto
à segunda, o princípio da presunção de inocência do arguido.
3 – A recusa de aplicação da norma, por violação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contido no artigo 32º nº. 1 da Lei Fundamental, surge, na sentença impugnada, em consequência de se ter provado que o arguido J. T. acompanhara o seu irmão e co-arguido A., autor material do crime previsto no corpo do artigo 61º do Decreto nº. 44623, apesar de saber que ia pescar – como pescou – bogas com a utilização de uma bomba.
Significa esta recusa que, sem ela, a norma do citado artigo 61º § único imporia, e apenas com aquela prova, a condenação do arguido J. T..
4 – Não é absolutamente claro o sentido da norma do § único do artigo 61º do Decreto nº. 44623.
Na verdade, sendo nítido que se pretende punir o agente que não é o autor material do crime, a configuração expressa da forma de participação como de autoria moral não se mostra conforme ao que prescrevia o artigo 20º do Código Penal que vigorava à data da publicação do diploma.
Com efeito, muito embora o Código Penal de 1886 não individualizasse, dentro do conceito de autoria, o conceito de autoria mediata, moral ou intelectual, era entendimento corrente, na doutrina e na jurisprudência, que ele se encontrava plasmado nos nºs. 2, 3 e 4 do artigo 20º.
Ora, não parece possível integrar nos pertinentes normativos a conduta de alguém que 'acompanha' o autor material conhecendo as intenções deste – na autoria prevista nos nºs. 2 a 4 do artigo 20º do CP há sempre uma acção dirigida à vontade do autor material em termos de o determinar (tomando a expressão num sentido lato) à pratica do crime.
A situação estaria mais próxima de uma forma de comparticipação (cumplicidade) nos termos do artigo 22º nº. 2 do Código Penal, conquanto sempre houvesse que
'presumir' a facilitação ou preparação da execução do crime.
De todo o modo, o que a norma visa é a punição do 'acompanhante' (não autor material) com a mesma moldura penal do autor material – e a 'autoria moral', suposto que o acompanhante não executava ou tomava parte directa na execução do crime era a que, no quadro do Código Penal, melhor se adequava a esse desiderato.
Ora, ao afirmar que 'são considerados autores morais (...)' a norma prescinde ou alheia-se da averiguação dos fundamentos em que assenta a culpa em concreto do agente, presumindo-a nos casos em que se dão como provados os dois citados elementos: o acompanhamento do autor material e o conhecimento das intenções deste ou das circunstâncias do acto.
A censura penal é desde logo imposta por tal prova, sem que seja necessário provar o nexo de imputação do facto delituoso ao agente.
Não se trata – note-se – da criação de um outro tipo legal de crime pois, como se viu, o acompanhante é considerado 'autor moral' do crime previsto no corpo do artigo.
Vejamos, então, se a norma assim interpretada é conforme aos cânones constitucionais.
5 – Escreveu-se no Acórdão nº. 426/91 deste Tribunal (in ATC, 20º vol., pp. 423 e segs.):
'O princípio de culpa está consagrado, conjugadamente, nos artigos 1º e 25º, nº.
1, da Constituição: deriva da essencial dignidade da pessoa humana, que não pode ser tomada como simples meio para a prossecução de fins preventivos, e articula-se com o direito à integridade moral e física. Este princípio exprime-se, em direito penal, a diversos níveis: a) veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética; b) impede a responsabilização objectiva, obrigando ao estabele-cimento de um nexo subjectivo – a título de dolo ou de negligência – entre o agente e o seu facto (cfr. os artigos 13º e 18º do Código Penal); c) obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a medida da culpa (sobre o sentido do nº. 1 do artigo 72º do Código Penal, cfr. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, op. Cit., II, Penas e Medidas de Segurança, 1989, pp.
100 e segs.; Sousa e Brito, 'A medida da pena no novo Código Penal', Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial de Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Eduardo Correia, III, 1984, pp. 580-1; Figueiredo Dias, Direito Penal 2, Parte Geral, As consequências jurídicas do crime, 1988, pp. 311 e segs., maxime p. 314).'
Ora, no caso vertente, poderia dizer-se, numa primeira leitura, que estavam em causa as aludidas segunda e terceira manifestações do princípio da culpa, no ponto em que a norma em causa permitisse a punição sem culpa.
Crê-se, contudo, e como se deixou entrever, que esta não é a melhor interpretação da norma.
Na verdade, se basta a prova de que o arguido acompanhou o autor material do crime e que conhecia as intenções deste, para a punição como 'autor moral', isto não significa que se torne irrelevante a prova feita pelo mesmo arguido no sentido da inexistência de um nexo subjectivo efectivo entre ele e o facto – relevará, seguramente, essa prova (p. ex. no sentido de que o acompanhamento visou demover o autor material da prática do crime), obstando à punição apesar da verificação daqueles dois elementos de facto.
Mas, sendo assim, não pode afirmar-se que a norma estabeleça uma punição sem culpa; sucede é que se pode verificar uma punição sem prova efectiva da culpa do agente, o que é coisa diferente.
Com efeito, a conjugação dos dois factos (acompanhamento do autor material e conhecimento das intenções delituosas deste) leva – como se disse – o legislador a presumir aquele nexo subjectivo entre o agente e o facto.
E tal presunção, sendo – como parece ser – ilidível, leva a deslocar o juízo de constitucionalidade para o confronto com outro parâmetro: o do princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32º nº. 2 da CRP.
6 - O princípio da presunção de inocência – todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação – cuja violação constituiu motivo da recusa de aplicação da norma pelo Tribunal a quo, aparece identificado, em matéria de prova, com o princípio in dubio pro reo
(cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 2º. vol., pág. 47; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, págs. 40 a 42), impõe que o julgador valore sempre em benefício do arguido um non liquet (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º. Vol., pág. 211 a 219; Rui Pinheiro e Artur Maurício, A Constituição e o Processo Penal, 2ª ed., pág. 133).
Assinala-se como conteúdo adequado do princípio da presunção de inocência: a. proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; b. preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; c. exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; d. não incidência de custas sobre arguido não condenado; e. proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; f. proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 203). Ora, a norma em questão, ao qualificar como autor moral quem acompanhar o autor material sabendo das intenções deste, estabelece uma cláusula geral de equiparação aos autores materiais, com base numa presunção de culpabilidade, pelo que acaba por estar verdadeiramente em causa o princípio da presunção de inocência do arguido que opera, segundo a melhor doutrina nacional e estrangeira e a jurisprudência mais autorizada, exclusivamente sobre o regime do ónus da prova.
De acordo com este princípio, a dúvida sobre a existência de factos incriminatórios, cuja prova caiba ao Ministério Público, resolve-se a favor do réu, encontrando-se vedada ao legislador ordinário a possibilidade de legislar no sentido de inverter o ónus da prova em desfavor do réu; em última instância, este princípio identifica-se com (ou engloba) aqueloutro do in dubio pro reo que impõe ao juiz a valoração sempre a favor do arguido de um non liquet em matéria da prova.
A verdade é que a norma em apreço se, directamente, não estabelece qualquer inversão do ónus da prova em desfavor do réu, visto que cabe ao Ministério Público, enquanto promotor e impulsionador da acção penal, provar que o réu acompanhou o autor material, sabendo da sua intenção para poder ser considerado como autor moral, indirectamente acaba por fazer recair sobre o arguido a prova da inexistência da culpa – a omissão de qualquer prova sobre este pressuposto essencial do juízo de censura penal volve-se contra o arguido.
E, assim sendo, como é, estabelece a norma em causa uma presunção de culpa que contraria o princípio da presunção de inocência do arguido, estabelecido no artigo 32º nº. 1 da CRP.
7 - Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se: a. julgar inconstitucional a norma constante do parágrafo único do artigo
61º do Decreto nº. 44 623 de 10 de Outubro de 1962 por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigos 32º, nº. 2 da Constituição; b. negar, assim, provimento ao recurso. Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida