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Processo n.º 89/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
1. No presente processo o relator no Tribunal Constitucional elaborou em 15 de Junho de 1999 a seguinte decisão sumária:
'I. Relatório
1. Por despacho saneador de 5 de Maio de 1997, o M.mº Juiz do 1º Juízo Cível da Comarca de Matosinhos conheceu de várias excepções aduzidas pela Ré W..., Ldª na acção ordinária que lhe foi movida por N... Ldª, tendo, designadamente, concluído que o tribunal era competente em razão da matéria, da hierarquia e do território, e que as referidas partes eram legítimas. Para tanto, considerou estar-se perante um litígio relativo ao cumprimento defeituoso de um contrato de transporte por via marítima (e de um contrato de mandato), cuja apreciação, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro), caberia aos tribunais marítimos. Porém, uma vez que, apesar de criado pela Lei n.º 35/86, de 4 de Setembro, o Tribunal Marítimo de Leixões ainda não estava instalado, considerou-se competente o Tribunal de Matosinhos. De tal despacho recorreu a Ré para o Tribunal da Relação do Porto, na parte em que julgou o Tribunal de Comarca de Matosinhos competente em razão da matéria e em razão do território e na parte em que a considerou parte legítima na acção. Por Acórdão de 2 de Abril de 1998, aquele Tribunal de 2ª instância veio a decidir pela incompetência material do Tribunal recorrido, determinando a substituição do despacho saneador por outro que absolvesse a Ré da instância, já que, uma vez concluído que o tribunal em que correm os autos é incompetente em razão da matéria, 'apenas tem que proferir aquela absolvição da instância não lhe competindo indicar qual o Tribunal competente para aí ser remetido o processo'.
2. Discordando de tal decisão de incompetência em razão da matéria, a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nas suas alegações que:
'O douto Acórdão recorrido que revogou a decisão da 1ª Instância que julgou o Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos competente para a presente Acção, violou o disposto nos Artigos 2º, 66º do C.P.C., 14º e 53º da L.O.T.J. e Artigos
20º 202º e 211º da Constituição da República Portuguesa.'
3. Por Acórdão de 10 de Dezembro de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, considerando que a norma de competência fixada na alínea c) do artigo 4º da Lei n.º 35/86 era uma norma 'de interesse e ordem pública', que não podia ser 'postergada pela simples consideração de ainda se não encontrar, aquando da instauração do pleito, instalado o tribunal marítimo territorialmente previsto como o competente', tanto mais que se encontrava já instalado um tribunal marítimo em Lisboa (Portaria n.º 606/87, de 15 de Julho), e que o 'acesso ao direito e aos tribunais com a correlativa protecção ou guarida judiciária continua a ser garantido se se considerar competente o tribunal marítimo já instalado, com exercício cumulativo transitório da jurisdição respectiva pelo juiz titular desse tribunal, enquanto não declarado como instalado o outro novo tribunal ou juízo'. Invocou, no mesmo sentido, a jurisprudência já estabelecida no Supremo Tribunal de Justiça.
4. Inconformada, a Autora N... Ldª procurou interpor recurso para uniformização de jurisprudência, bem como, na mesma data, recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), para apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 2º e 66º do Código de Processo Civil e 14º e 53º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro). O julgamento ampliado de revista (artigo 732º-A do Código de Processo Civil) foi liminarmente rejeitado, mas foi admitido o recurso de constitucionalidade. II. Fundamentos
5. Recorda-se, antes do mais, que, nos termos do n.º 3 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional, a decisão de admissão do recurso de constitucionalidade não vincula o Tribunal Constitucional, e que, se se entender não poder conhecer-se do objecto do recurso, será caso de proferir decisão sumária ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da mesma lei. Ora, como ainda recentemente se escreveu no Acórdão n.º 529/98, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 1999, e é pacificamente entendido, o conhecimento dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º (como é o caso) 'exige a presença, cumulativa, dos três requisitos de tal tipo de recurso, a saber: suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa; aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como ratio decidendi do caso; esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente.' Vejamos se, no caso sub iudicio, estão preenchidos tais requisitos.
6. A consulta dos autos revela que a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo foi efectuada, não em relação a normas, mas sim em relação à própria decisão recorrida, como se pode comprovar da transcrição feita supra (ponto 2), tendo as normas indicadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade sido aí invocadas como parâmetros violados pela decisão constitucionalmente (e legalmente) desconforme, e não como normas desconformes, ao menos na sua interpretação, com o parâmetro constitucional. A inconstitucionalidade é, pois, imputada, não a normas, mas à própria decisão – e, como salientam Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 1016, anotação V ao artigo
280º), 'as decisões dos tribunais podem evidentemente ser em si mesmas inconstitucionais (...) mas uma tal decisão não é recorrível para o Tribunal Constitucional. O nosso sistema de fiscalização não conhece o recurso para o Tribunal Constitucional de actos concretos de violação dos direitos fundamentais que existe noutros sistemas (Verfassungsbeschwerde, recurso de amparo)'. Ora, sendo o requisito 'suscitação da inconstitucionalidade durante o processo' dirigido à obtenção de uma decisão sobre uma questão de constitucionalidade normativa logo por parte do tribunal recorrido – de forma a que no subsequente recurso de constitucionalidade se possa proceder a uma reapreciação ou reexame de tal questão pelo Tribunal Constitucional –, temos que concluir que a forma como foi suscitada a alegada desconformidade constitucional perante o tribunal recorrido não foi adequada a provocar, por parte deste tribunal a quo, um juízo de constitucionalidade sobre as normas indicadas no requerimento de interposição do recurso, ora em apreciação.
7. Acresce, aliás, que as normas indicadas em tal recurso – excepção eventualmente feita à do artigo 2º do Código de Processo Civil – não foram aplicadas na decisão recorrida. Na lógica da Autora, tais normas seriam as adequadas à obtenção da decisão pretendida – a confirmação da competência do Tribunal da Comarca de Matosinhos para decidir a causa. Justamente por isso, tais normas foram indicadas, nas alegações de recurso dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça, como normas violadas. Porém, o que esse Tribunal fez – tal como, anteriormente o fizera o Tribunal da Relação do Porto – foi aplicar o artigo 70º n.º 1, alínea c) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, tendo desse modo considerado prejudicada a aplicação das normas dos artigos 14º (segundo o qual 'as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais') e 53º
(que reza: 'as causas não atribuídas a outro tribunal são da competência do tribunal de competência genérica') da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e do artigo 66º do Código de Processo Civil (nos termos do qual 'são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional'). Ora, verificando-se que as normas indicadas no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade – a mais de não terem sido impugnadas, elas próprias, durante o processo, por desconformidade constitucional – não foram, sequer, aplicadas na decisão recorrida, também por isso não se pode conhecer do recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
É certo que pode discutir-se se as normas contidas no artigo 2º do Código de Processo Civil ('1. A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força obrigatória de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar. 2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção, destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção') terão sido, ou não, aplicadas na decisão recorrida. A lógica da sua invocação no decurso do processo foi a de que não o teriam sido
– e daí terem sido indicadas como normas violadas. Porém, a mais de se ter entendido, nas decisões das instâncias de recurso, que a pretensão da Autora não foi 'regularmente deduzida em juízo', por o ter sido junto de tribunal incompetente em razão da matéria, resta que também em relação a tais normas não se suscitou a inconstitucionalidade durante o processo, muito menos tendo tal suscitação ocorrido de forma clara e perceptível, como seria de exigir (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 367/94 e 418/98, publicados no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994 e de 20 de Julho de 1998, respectivamente). De uma forma ou de outra, portanto, também em relação a elas se não preenchem os requisitos do recurso de constitucionalidade interposto.
8. Em conclusão – e independentemente da questão de saber se a solução defendida pelas instâncias de recurso corresponde ao melhor direito, questão que a este Tribunal não cumpre apreciar –, não pode tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de verificação dos requisitos consistentes na suscitação da inconstitucionalidade normativa em questão, durante o processo, e na aplicação das normas, cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, como critério da decisão recorrida. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC.'
2. N... Ldª veio reclamar para a conferência dessa decisão sumária, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com os fundamentos seguintes:
'O Mmo. Juiz Relator fundamentou a decisão de rejeição do presente recurso de constitucionalidade na: A. - Falta de suscitação da questão da inconstitucionalidade normativa durante o processo, e B. - Falta de aplicação das normas, cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, como critério da decisão recorrida. Entende a aqui Reclamante que no caso concreto estão verificados os requisitos de admissibilidade do recurso no Tribunal Constitucional. Quanto ao ponto da alínea A): Tanto o Tribunal da Relação do Porto como o Supremo Tribunal de Justiça consideraram o Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos incompetente para julgar a presente Acção e competente os Tribunais Marítimos. Fundamentaram as respectivas decisões no DL 35/86 de 4 de Setembro que criou os Tribunais Marítimos e na alínea c) do n.º 1 do Artigo 70º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais. Inconformada com essas decisões a ora Reclamante levantou nas alegações para a Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça o problema da constitucionalidade da interpretação dada ao Artigo 67º do C.P.C. e alínea c) do n.º 1 do Artigo 70º da Lei Orgânica (nomeadamente a sua contradição com os 2º,
66º do C.P.C., 14º e 53º da L.O.T.J. e Artigos 20º, 202º e 211º da Constituição da República Portuguesa). Verifica-se assim que não tem qualquer fundamento o primeiro argumento do Exmo. Relator já que o problema da inconstitucionalidade foi levantado nas instâncias. Quanto ao ponto da alínea B): A Reclamante foi bem clara ao alegar que a decisão dos Tribunais de Recurso ao considerar o Tribunal de Matosinhos como incompetente em razão da matéria violou especificadamente vários artigos da Constituição da República Portuguesa. Argumentou ainda ter havido uma interpretação errada dos Artigo 2º e 66º do C.P.C. e 14º e 53º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987. A situação de facto é a seguinte: O Tribunal Marítimo de Leixões embora criado pelo DL 35/86 de 4 de Setembro não foi instalado. Em termos práticos para o cidadão comum não existe. Não tem Juiz nem funcionários nem instalações próprias. Daí que não pode o cidadão comum ficar desprotegido por não ter Tribunal que lhe julgue o caso. Pelo que deveria ter funcionado a regra geral do Artigo 2º e 66º do C.P.C. devendo o caso ser julgado pelo Tribunal Civil da Comarca de Matosinhos como o foi. Porém, contrariando uma prática de longos anos, os Tribunais de Recurso resolveram aplicar o DL 35/86 de 4 de Setembro e daí partir para considerarem incompetente o Tribunal Judicial de Matosinhos. Remeteram, pois, o processo para um Tribunal que não existe fisicamente, embora tenha sido criado no papel, pelo já referido Decreto Lei 35/86. As regras que definem a competência em razão da matéria integram-se na denominada competência absoluta. A situação de inexistência do Tribunal Marítimo de Leixões de competência especializada, por falta de instalação da responsabilidade do Estado, poderia ser levantada a todo tempo no processo – Artigo 102º do C.P.C. Houve assim uma errada aplicação ao caso do DL 35/86 de 4 de Setembro, interpretação e aplicação essa que violam concretamente as disposições invocadas no Requerimento de interposição de Recurso para este douto Tribunal Constitucional. Pode pois concluir-se contra o decidido pelo Mmo. Relator, que a interpretação efectuada produziu um resultado inconstitucional, por retirar à parte a possibilidade de recorrer a um Tribunal que possa proferir decisão em tempo
útil. Está a Requerente convicta que V.Exas., atentos como estão à protecção que é dada aos cidadãos pela Constituição da República, encontrarão meios para anular a arbitrariedade cometida pelos Tribunais de Recurso. Parece ser esta mais uma guerrilha desta vez entre os Tribunais e o Ministério da Justiça com objectivo primário de retirar competências para aliviar serviços. Com desprezo absoluto pelos direitos do cidadão que pagam pela Justiça sem a encontrarem.'
W..., Ldª, em resposta à reclamação deste modo deduzida, defendeu a sua improcedência. Já em Setembro de 1999, veio novamente a reclamante ao processo, aduzindo que
'Ao ler o Decreto-Lei n.º 186-A/99 de 31 de Maio que aprova o Regulamento da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) a Requerente não pôde deixar de se congratular com o facto do legislador no Artigo 70º daquele diploma ter colmatado finalmente a lacuna existente na lei. Assim, dispõe o Artigo 70º: ‘Enquanto não forem instalados os Tribunais Marítimos de Faro e de Matosinhos, a área de competência do Tribunal Marítimo de Lisboa compreende também a dos Departamentos Marítimos do Sul e do Norte.’ Verifica-se que, constatando a realidade – inexistência física do Tribunal Marítimo de Matosinhos criado pelo DL n.º 35/86 de 04 de Setembro – o legislador veio agora estender a área de competência do Tribunal Marítimo de Lisboa ao Departamento Marítimo do Norte, enquanto não fôr instalado o Tribunal Marítimo de Matosinhos. Essa extensão de competência não estava prevista quando foi proposta a Acção no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos. Pelo que, nos termos dos Artigos 2º e 66º do C.P.C. o Tribunal da Comarca de Matosinhos era competente para julgar o caso. A não ser assim, estaríamos perante uma situação de autêntica DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA, vendo-se o cidadão comum sem Tribunal que lhe julgue o caso.' Limitando-se tal requerimento a remeter, pretendendo daí extrair argumentos, para normas jurídicas já publicadas e, portanto, susceptíveis de ser conhecidas,
à data da prolação da decisão sumária sob reclamação, podendo pois ser considerado não inovatório, o relator dispensou a audição da recorrida sobre o seu conteúdo. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. Na presente reclamação nada de substancial adianta a reclamante susceptível de infirmar a decisão sumária em apreço. Afirma a reclamante que:
'levantou nas alegações para a Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça o problema da constitucionalidade da interpretação dada ao Artigo 67º do C.P.C. e alínea c) do n.º 1 do Artigo 70º da Lei Orgânica (nomeadamente a sua contradição com os 2º, 66º do C.P.C., 14º e 53º da L.O.T.J. e Artigos 20º, 202º e 211º da Constituição da República Portuguesa).' Pelo que:
'não tem qualquer fundamento o primeiro argumento do Exmo. Relator já que o problema da inconstitucionalidade foi levantado nas instâncias.' Todavia, como se explicou na decisão reclamada, o que a reclamante não suscitou de modo processualmente adequado, durante o processo, foi uma questão de constitucionalidade normativa, que pudesse constituir objecto do recurso de constitucionalidade interposto. Nas conclusões das alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, limita-se a referir que
'[...]
5 - A manter-se o douto Acórdão recorrido à aqui Agravante é negado, não se sabe por quantos anos, um direito fundamental – o acesso ao direito e aos Tribunais;
6 - O douto Acórdão recorrido que revogou a decisão da 1ª Instância que julgou o Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos competente para a presente Acção, violou o disposto nos Artigos 2º, 66º do C.P.C., 14º e 53º da L.O.T.J. e Artigos
20º 202º e 211º da Constituição da República Portuguesa.' Ao defender 'que a decisão dos Tribunais de Recurso ao considerar o Tribunal de Matosinhos como incompetente em razão da matéria violou especificadamente vários artigos da Constituição da República Portuguesa', a reclamante deixou claro uma vez mais que pretende impugnar a constitucionalidade da própria decisão recorrida. Ora, como se sabe,
'[...] suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.' (Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994). Tal exigência significa que a recorrente tem de invocar a inconstitucionalidade normativa de forma que o tribunal recorrido a possa conhecer – a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada atempadamente e de forma clara e perceptível. Dizer que 'o douto Acórdão recorrido que revogou a decisão da 1ª Instância que julgou o Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos competente para a presente Acção, violou o disposto nos Artigos 2º, 66º do C.P.C., 14º e 53º da L.O.T.J. e Artigos 20º 202º e 211º da Constituição da República Portuguesa', sem tão-pouco se indicar qualquer norma jurídica (cujo conceito constitucionalmente adequado é também conhecido) que se reputa desconforme, ao menos numa sua interpretação, com o parâmetro constitucional, não é patentemente suscitar, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade durante o processo.
4. No seu arrazoado, a reclamante acrescenta ainda que houve
'uma errada aplicação ao caso do DL 35/86 de 4 de Setembro, interpretação e aplicação essa que violam concretamente as disposições invocadas no Requerimento de interposição de Recurso para este douto Tribunal Constitucional. Pode pois concluir-se contra o decidido pelo Mmo. Relator, que a interpretação efectuada produziu um resultado inconstitucional, por retirar à parte a possibilidade de recorrer a um Tribunal que possa proferir decisão em tempo
útil.' Todavia, como se mostra na decisão reclamada, as normas indicadas no requerimento de recurso – designadamente, os artigos 66º do Código de Processo Civil e 14º e 53º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), e excepção eventualmente feita ao artigo 2º do Código de Processo Civil – não foram aplicadas na decisão recorrida. A simples leitura da decisão do Supremo Tribunal de Justiça mostra que a sua ratio decidendi foi o artigo 70º n.º 1, alínea c), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, tendo desse modo sido considerada prejudicada – e recusada, mas por não verificação da sua hipótese – a aplicação das normas dos artigos 14º (segundo o qual 'as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais') e 53º (que reza: 'as causas não atribuídas a outro tribunal são da competência do tribunal de competência genérica') da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e do artigo 66º do Código de Processo Civil
(nos termos do qual 'são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional'). As normas indicadas no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade não só não foram, pois, impugnadas, elas próprias, durante o processo, por desconformidade constitucional, como não foram sequer aplicadas na decisão recorrida. Tudo o que foi, aliás, explicado na decisão reclamada. Nesta, o relator limitou-se justamente a verificar o preenchimento dos requisitos para conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Patenteando-se que esses requisitos se não encontravam satisfeitos, decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
É bom de ver, portanto, que não se tomou qualquer decisão de fundo, tendo-se o relator limitado a decidir pela não tomada de conhecimento do recurso como decorrência necessária da ausência do preenchimento dos respectivos requisitos. Aliás, só se tivesse a decisão reclamada consubstanciado uma decisão de fundo poderia ter tido em consideração o disposto no artigo 70º do Decreto-Lei n.º
186-A/99, de 31 de Maio, agora despropositadamente invocado pela reclamante. Na verdade, estando neste momento em causa reclamação de decisão sumária que apenas se pronunciou sobre a questão prévia da verificação dos pressupostos processuais do recurso em causa, não compete a este Tribunal apreciar o conjunto argumentativo aduzido pela ora reclamante no citado requerimento de 29 de Setembro do corrente – argumentação, essa, cuja irrelevância para a presente decisão não é, pois, menos patente do que a falta de pressupostos do presente recurso que logo foi posta em evidência na decisão reclamada. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada de recusa de tomada de conhecimento do recurso, e condenar a reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 10 de Novembro de 1999. Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida