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Processo n.º 300/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. foi condenado pela 2.ª Vara Mista de Loures, em concurso efetivo, pela prática do crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º do Código Penal e 86º nºs. 3 e 4 do novo regime jurídico das armas e suas munições (NRJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na redação da Lei n.º 17/2009 de 6 de maio, com a atenuação especial resultante da aplicação do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23 de setembro, na pena de 6 anos e 9 meses de prisão e pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º n.º 1 alínea c) do NRJAM, também na redação da Lei n.º 17/2009, com a atenuação especial resultante da aplicação do Decreto-Lei n.º 401/82, na pena de 7 meses de prisão; em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de sete anos de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu para a Relação de Lisboa, argumentando, nomeadamente, que os artigos 131º do Código Penal e 86º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 17/2009, quando aplicados, como o foram, numa relação de concurso efetivo dos crimes nelas previstos e não de concurso aparente das normas respetivas, enfermam de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 29º, n.º 5 da Constituição, por infringirem a proibição de ne bis in idem. Por acórdão de 28 de junho de 2011, a Relação de Lisboa reduziu a pena aplicada ao arguido para seis anos de prisão, e quanto à questão de inconstitucionalidade disse:
“Apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio agravado pelo uso de arma nos termos do art.º 131º CP e 86º, n.ºs 3 e 4 do NRJAM aprovado pela Lei 17/2009 de 6.5 e detenção de arma proibida do art.º 86º n.º1 al. c) da citada Lei – deverá concluir-se por um concurso efetivo de crimes, como entendeu a decisão ou por um concurso aparente, como sugere o recorrente?
Vejam-se os ensinamentos de Figueiredo Dias, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes», considera:
«A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou subjetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015).
No Ac.STJ – 5ª secção, de 31.3.2011 no processo n.º 61/10.3 GBLLE da 5ª Secção decidiu-se que :
A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o ofendido, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.
O autor citado aponta mesmo como exemplo de concurso aparente um caso como este: «Circunstâncias como, p. ex., a de se utilizar arma proibida (…) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma de concurso aparente» (ob. cit., página 1017).
Não é, pois, correta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte.
A utilização de arma proibida relevará apenas na determinação da pena concreta do homicídio.”
Pretende o recorrente que existe concurso aparente por a detenção ilegal de arma ter sido crime meio relativamente ao crime-fim, o homicídio e nele se ter esgotado.
Refere o MºPº que como se depreende do doutamente decidido no último acórdão citado, o arguido recorrente cometeu efetivamente o crime de detenção de arma proibida na medida em que, para além do crime de homicídio praticado não ter sido qualificado pela arma, não se tratou de um ato instantâneo como o do citado acórdão, antes ponderado, pois o arguido foi comprar a arma, o que por si só autonomiza o crime de detenção de arma proibida e, nessa medida, crime autónomo do homicídio praticado com essa mesma arma.
Também o Ac. STJ de 31.3.2011 no processo n.º 361/10.3 GBLLE [5] refere que :
I - No presente recurso questiona-se a agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º da Lei 5/2006, de 23-02, em relação à pena do crime de homicídio, sendo certo que a agravação ali estabelecida só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
II - O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP; pode ser um fator de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não.
III - O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.
IV - Outra questão é a de saber se o arguido cometeu efetivamente o crime de detenção de arma proibida: por morte do pai do arguido e da vítima não se procedeu à partilha dos bens existentes, sendo um desses bens uma casa de habitação, com anexos, num dos quais residia o recorrente. A espingarda caçadeira em causa pertencera ao pai do arguido, estava registada em nome da mãe e na altura encontrava-se nesse anexo. Não se sabe a que título ali se encontrava, quem a colocara ali e desde quando ali se encontrava. Sabe-se apenas que a foi buscar para disparar sobre o irmão. Não se pode assim ter como assente que a arma era detida pelo arguido. Este ato, único conhecido do recorrente em relação à arma, configura simples uso: o arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio.
V - Essa conduta do recorrente, não possuindo ele a necessária licença de uso e porte, preenche o tipo objetivo do crime do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006: a espingarda em causa é uma «arma de fogo longa» (als. p), q) e s) do n.º 1 do art. 2.º); é uma arma de «tiro a tiro» [al. aj)]; é uma arma de cano de «alma lisa», sendo pois, uma arma da classe D: «São armas da classe D: As armas de fogo longas de tiro a tiro de cano de alma lisa» [art. 3.º, n.º 6, al. c)].
VI - E, não obstante o homicídio ser agravado em função da utilização da espingarda, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o recorrente se encontrava em relação à arma, por falta da licença de uso e porte. Isso porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.
O circunstancialismo em que decorreram os factos, entre os quais se salienta o decurso de tempo em que o arguido formulou a intenção de tirar a vida ao ofendido e os atos através dos quais preparou a execução de tal objetivo, como seja o de comprar a arma, não permitem dizer que um ato se esgotou no outro, não tendo um acontecido de forma fortuita ou inerente intrinsecamente ao outro, diversamente do ocorrido no acórdão do STJ referido, em que o ato de detenção de arma é fortuito perante o de matar, tendo-se esgotado nele mesmo. No citado acórdão o arguido utilizara arma que se encontrava na casa onde morava para tirar a vida ao irmão.
Os tipos legais de crimes em causa são autónomos e tutelam diversos bens jurídicos.
As circunstâncias referidas no art. 132º são elementos da culpa, e não do tipo, face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade.
O bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime de homicídio é a vida humana.
Por sua vez, em matéria de armas, e atento o alarme social que as mesmas causam, o legislador optou por uma tutela antecipada dos bens jurídicos que estes objetos, com o seu enorme poder destrutivo, conseguem pôr em risco.
Desta forma, construiu os tipos legais – referimo-nos ao crime de detenção de arma proibida e à detenção ilegal de arma – como crimes de perigo abstrato, não fazendo depender o preenchimento do tipo da verificação concreta do perigo, pois entende-se que a mera detenção da arma (fora de determinadas condições legais) põe já em risco a segurança da comunidade (v. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 891, em anotação ao art. 275º do CP ).[6]
Assim, entendemos que não se verifica a dupla incriminação ou violação do princípio “ ne bis in idem “, pois que o crime de detenção de arma proibida consuma-se logo que o agente detém a arma, sendo que o seu uso, em momento posterior, como aqui sucedeu, constitui, instrumentalmente, um elemento do tipo de culpa do crime de homicídio”.
É este aresto que o recorrente impugna perante o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), visando ver apreciada a conformidade constitucional da norma dos artigos 131º do Código Penal e 86º n.ºs 1 alínea c), 3 e 4 da Lei n.º 17/2009 'quando interpretados e aplicados, como o foram no caso, numa relação de concurso real dos crimes neles previstos e não de concurso aparente das normas respetivas'. No entender do recorrente, tal norma viola o artigo 29º n.º 5 da Constituição, por infringir a proibição de ne bis in idem, além de significar uma 'desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal' previstas nos artigos 1º n.º 1, 18º e 29º n.º 1 da Constituição.
3. Recebido o recurso, o recorrente alegou e concluiu:
“1) O presente recurso para o Tribunal Constitucional tem como objeto o douto Acórdão da Relação de Lisboa que conheceu a questão suscitada do erro de direito quando da aplicação cumulativa dos artigos 131º do Cód. Penal e 86º nº 1 c), 3 e 4 da Lei 17/2009 de 06/05 ao mesmo núcleo essencial de factos, seja homicídio com uso de arma e detenção de arma e a questão da inconstitucionalidade desse concurso material de agravações que aquele douto aresto igualmente conheceu;
2) O douto aresto recorrido enferma de erro de direito ao considerar existir uma relação de concurso real ante os crimes previstos no art. 131º do Cód. Penal (homicídio simples no caso cometido com arma) e no art. 86º nº 1 e), 3 e 4 do NRJAM (Lei 17/2009 de 06/05) – incriminação da detenção de arma e agravação de crimes cometidos com arma – porquanto ante o art. 30º do Cód. Penal não ocorre acumulação material mas antes concurso aparente de normas, pelo que não há lugar ao cúmulo jurídico das duas penas, sendo certo que;
3) Os artigos 131º do Cód. Penal e 86º nº 1 c), 3 e 4 da Lei 17/2009 de 06/05, quando aplicados como o foram no caso, isto é numa relação de concurso real dos crimes neles previstos e não de concurso aparente das normas respetivas enfermam de inconstitucionalidade material, por violação do art. 29º nº 5 da Constituição, ao infringirem a proibição do ne bis in idem, além de significarem a uma desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal previstas nos artigos 1.º nº 1, 18º nº 2, e 29º nº 1 da Lei Fundamental, normas estas violadas pelo douto Acórdão recorrido.
4) Nestes termos deverá ser conhecido e concedido provimento ao presente recurso e, em conformidade, deverá ser declarada a inconstitucionalidade material das normas jurídicas dos artigos 131.º do Cód. Penal e 86º nº 1 alínea c), 3 e 4 da Lei 17/2009 de 06/05 quando interpretados e aplicados, como o foram no caso, numa relação de concurso real dos crimes neles previstos e não de concurso aparente das normas respetivas, por violação do art. 29º nº 5 da Constituição, ao infringirem a proibição do ne bis in idem, além de significarem uma desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal previstas nos artigos 1º, 18º e 29º n.º 1 da mesma Constituição.
5) Após a declaração de inconstitucionalidade deverão os autos baixar ao Tribunal da Relação de Lisboa a fim de por este ser reformulada a medida da pena aplicada em concreto ao recorrente”.
4. O Ministério Público também alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. Constituem objeto do presente recurso as normas dos artigos 131º do Código Penal e 86º n.º 1 alínea c), 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009 de 6 de maio (NRJAM), quando interpretadas numa relação de concurso efetivo dos crimes neles previstos e não de concurso aparente das normas respetivas. É a seguinte a redação das normas em análise:
Artigo 131.º
Homicídio
Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
Artigo 86.º
Detenção de arma proibida e crime cometido com arma
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
a)…
b)…
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
(…)
3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.
6. Importa começar por sublinhar que não incumbe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se acerca do juízo que o aresto recorrido adotou quanto à ocorrência de uma relação de concurso efetivo entre os crimes previstos no artigo 131º do Código Penal (homicídio simples no caso cometido com arma) e no artigo 86º n.ºs 1 c), 3 e 4 do NRJAM. Não pode esquecer-se que não compete ao Tribunal Constitucional decidir como devem ser interpretadas e aplicadas as normas infraconstitucionais, designadamente as que respeitam ao concurso de crimes e de normas penais; ao Tribunal compete apenas analisar se, tendo o tribunal recorrido extraído daquele bloco normativo um critério que leva a punir tais condutas em concurso efetivo, ficam, por isso, violados os princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
7. O recorrente invoca que tal interpretação normativa viola o artigo 29º n.º 5 da Constituição, por infringir a proibição de ne bis in idem.
A referida norma constitucional –“ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” – dá dignidade constitucional expressa ao clássico princípio de ne bis in idem. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, 2007, p. 497), fazem notar que o referido princípio comporta duas dimensões: a dimensão de direito subjetivo, que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, e a dimensão de princípio objetivo, que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Está aqui em causa a dimensão subjetiva do princípio, na vertente que proíbe a imposição plural de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração. O Tribunal Constitucional tem afirmado que o referido princípio impede que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação da sanção mais do que uma vez. A esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.
É já vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a violação dessa vertente substantiva do princípio de ne bis in idem nos casos de concurso de crimes. Para aferir da violação do referido princípio, o Tribunal tem partido do princípio de que o apuramento de tal violação pressupõe que as normas em concurso sancionem – de modo duplo ou múltiplo – substancialmente a mesma infração. Para aferir da identidade substancial das infrações, o Tribunal Constitucional tem adotado o critério enunciado no Acórdão n.º 102/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de abril de 1999), seguido em posteriores arestos, consistente no seguinte:
«Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do mesmo crime” ou perante um concurso efetivo de infrações, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infrações, Coimbra).
É que, sendo o concurso de crimes efetivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem.»
Em suma, o facto que lese ou afete uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado duas vezes.
O Tribunal já aplicou o referido critério em casos em que estava em causa a violação do princípio de ne bis in idem pela punição de crimes em concurso.
Desde logo, o já referido Acórdão n.º 102/99, em que estava em causa a apreciação do concurso de crimes de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, considerou que estavam em causa dois bens jurídicos diferentes:
“Este Tribunal, no seu acórdão n.º 426/91 (publicado no Diário da República, II série, de 2 de abril de 1992), a propósito do crime de tráfico de estupefacientes, disse que “o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afeta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos”. E, mais adiante, acrescentou que se “protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de caráter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública”.
Quanto ao crime de associação criminosa, é manifesto que nele não está em causa a saúde pública. Em causa estará, isso sim, como se sustenta no acórdão recorrido, a paz pública.
Concluindo o acórdão recorrido, com o apoio da doutrina, que os artigos 21º, 24º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro – que preveem o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e o de associação criminosa – se encontram, entre si, numa relação de concurso real, pois são diferentes os bens jurídicos tutelados por cada um desses normativos, tais normas, nessa interpretação, não violam o princípio ne bis in idem – e, assim, o n.º 5 do artigo 29º da Constituição”.
Por seu turno, o Acórdão n.º 303/2005 (publicado no Diário da República, IIª Série, de 05-08-2005), apreciou a inconstitucionalidade da interpretação conjugada das normas dos artigos 30º n.º 1, 217º n.º 1, e 256º n.º 1 do Código Penal, no sentido em que permite a punição em concurso efetivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado. Afirmou-se, então:
“Não estando em causa a vertente processual do princípio, que poderia exigir outro critério ou indagações complementares para determinação do que é “o mesmo crime” (designadamente, com recurso aos institutos relativos ao objeto do processo), nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infrações em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao “mesmo pedaço da vida” corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à proteção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que preveem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a proteção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in idem material, a punição em concurso efetivo (concurso ideal heterogéneo), mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente”.
Esta jurisprudência foi seguida no Acórdão n.º 375/2005 (publicado no Diário da República, IIª Série, de 21-09-2005).
Por fim, no já citado Acórdão n.º 356/2006 apreciou-se a inconstitucionalidade do artigo 136º do Código da Estrada na medida em que permitia a condenação em concurso pela prática das duas infrações (no caso, na contra-ordenação prevista no artigo 44º do Código da Estrada e na prática do crime do artigo 292º do Código Penal – condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas), onde se referiu:
“No caso dos autos, a conduta do agente, ora recorrente, traduziu-se na condução sob o efeito de bebida alcoólica (a taxa detetada foi de 1,58g/l). Tal atuação constitui o crime previsto no artigo 292º, nº 1, do Código Penal. Trata-se de um crime de perigo abstrato que é suscetível de pôr em perigo vários bens jurídicos relacionados com a circulação rodoviária, presumindo-se o elevado grau de perigosidade da ação. O perigo relativamente a esses bens é o motivo da incriminação, mas o facto incriminado é a conduta tipicamente perigosa e elevadamente perigosa.
No entanto o recorrente incumpriu ainda as regras do artigo 44º do Código da Estrada, relativas à mudança de direção, incorrendo, por essa razão, na inerente responsabilidade contra-ordenacional. Trata-se da realização de uma concreta infração pela mesma conduta de condução no sentido naturalístico, mas que corresponde a uma realização de factos com diversa relevância jurídica.
Verifica-se, pois, autonomia entre a conduta relativa à manobra perigosa que originou responsabilidade contra-ordenacional e a conduta que originou responsabilidade penal.
É verdade que ocorrem ambas no mesmo contexto. Porém, tal circunstância não impede um desvalor plúrimo. Na verdade, a condução sob o efeito do álcool põe em causa uma multiplicidade de bens, em si mesmo, independentemente da realização de manobras perigosas. Não se tem de concretizar nelas para que possa ser incriminada. Por outro lado, a realização de manobras perigosas pode, evidentemente, não estar associada a uma condução sob o efeito do álcool.
Não há, portanto, qualquer relação de instrumentalidade ou funcionalidade típica entre as duas condutas, nem em abstrato, nem sequer em concreto, que impusesse como obrigatória do ponto de vista constitucional uma consunção. Assim, os bens jurídicos afetados não são em concreto postos em perigo de maneira coincidente. No caso da condução perigosa, estamos perante uma multiplicidade de bens como é característico dos crimes de perigo comum, cuja afetação se verifica em todo o tempo de condução sob o efeito do álcool. No caso da manobra perigosa de mudança de direção, dá-se uma colocação em perigo de bens em certo momento específico de condução, prevenindo-se apenas o perigo para os bens que seriam afetados com a manobra.
Na perspetiva do grau de desvalor é, assim, sustentável que o legislador entenda que há um acréscimo de desvalor pela realização da manobra perigosa de mudança de direção relativamente à condução sob o efeito do álcool. É, deste modo, esse acréscimo de desvalor que torna justificável o ponto de vista legal de um concurso efetivo, sendo, naturalmente, possíveis, outras opções segundo uma lógica de concurso ideal. Todavia, a Constituição não impõe uma única solução jurídica nesta matéria”.
8. No caso presente, a Relação decidiu punir o recorrente em concurso efetivo pela prática do crime de homicídio previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigo 131º do Código Penal e 86º, n.ºs 3 e 4 do NRJAM e pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º n.º 1 alínea c) do NRJAM.
Esse entendimento radicou, por um lado, no “circunstancialismo em que decorreram os factos, entre os quais se salienta o decurso de tempo em que o arguido formulou a intenção de tirar a vida ao ofendido e os atos através dos quais preparou a execução de tal objetivo, como seja o de comprar a arma”. Este circunstancialismo levou o acórdão recorrido a considerar que não se podia concluir que “um ato se esgotou no outro, não tendo um acontecido de forma fortuita ou inerente intrinsecamente ao outro”.
Sublinha o acórdão recorrido que os tipos legais de crimes em causa são autónomos e tutelam diversos bens jurídicos: o bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime de homicídio é a vida humana; por sua vez, o crime de detenção de arma proibida visa tutelar o bem jurídico “segurança da comunidade”; em face do crime de homicídio, o crime de detenção de arma proibida apresenta uma diferente natureza, constituindo um crime de perigo abstrato, pois a mera detenção da arma (fora de determinadas condições legais) põe imediatamente em risco a segurança da comunidade. Não se verificaria, em suma, a dupla incriminação constitucionalmente proibida: “o crime de detenção de arma proibida consuma-se logo que o agente detém a arma, sendo que o seu uso, em momento posterior, como aqui sucedeu, constitui, instrumentalmente, um elemento do tipo de culpa do crime de homicídio”. O acórdão recorrido entendeu, portanto, estar perante um concurso efetivo de crimes.
É, assim, oportuno citar o seguinte trecho do Acórdão n.º 375/2005, cuja doutrina é totalmente transponível para o presente caso:
“por um lado, não compete ao Tribunal Constitucional determinar, com independência da questão de conformidade constitucional que tem para decidir, quais são exatamente os bens jurídicos tutelados pelo vários tipos legais de crime, ou se existe uma situação de concurso de crimes; por outro lado, tendo-se entendido na decisão recorrida – e não se vendo que tal conclusão viole preceitos constitucionais – que são inteiramente diversos, também na sua função e na sua relevância valorativa, os bens jurídicos protegidos pela incriminação da burla (o património em geral, ou a liberdade de disposição deste) e da falsificação de documentos (“a verdade intrínseca do documento enquanto tal”), não se vê como pode a existência de um concurso de crimes não meramente aparente violar normas ou princípios constitucionais. Isto, designadamente, quando a factualidade que os integra não é inteiramente coincidente e esses crimes assumem relevância autónoma. Este concurso de crimes não viola a proibição de julgamento, mais do que uma vez, pela prática do mesmo crime (ne bis in idem), constante do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, e isto mesmo entendendo-se que esta proibição é igualmente aplicável aos casos de concurso meramente “aparente”.
Com efeito, o acórdão recorrido assentou a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem diferentes nos crimes em presença, afastando, nessa base, a tese do concurso aparente e afirmando a existência de concurso efetivo entre o crime de homicídio e de detenção ilegal de arma.
Tratando-se de um concurso efetivo de crimes – que, tal como a Relação qualificou, violam bens jurídicos distintos, – está afastada a possibilidade de as normas em causa sancionarem – de modo duplo ou múltiplo – substancialmente a mesma infração.
A isso acresce o facto de, no caso concreto, à semelhança do que se passava no aresto citado, a factualidade que integra os crimes em presença não é coincidente, assumindo os crimes em causa relevância autónoma. Na verdade, o acórdão recorrido, a propósito do crime detenção ilegal de arma, faz notar que “não se tratou de um ato instantâneo (…) antes ponderado, pois o arguido foi comprar a arma, o que por si só autonomiza o crime de detenção de arma proibida e, nessa medida, crime autónomo do homicídio praticado com essa mesma arma”.
Não ocorre, em suma, a violação da proibição de julgamento plúrimo pela prática do mesmo crime, constante do artigo 29º n.º 5 da Constituição.
9. Invoca ainda o recorrente que os artigos 131º do Código Penal e 86º nº 1 c), 3 e 4 da Lei 17/2009, quando aplicados numa relação de concurso efetivo dos crimes neles previstos e não de concurso aparente das normas respetivas significam ainda uma desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal previstas nos artigos 1º n.º 1, 18º n.º 2, e 29º n.º 1 da Constituição.
O Tribunal Constitucional tem reconhecido que a Constituição acolhe, designadamente no seu artigo 18.º, n.º 2, os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, afirmando repetidamente que, por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade, como se recordou, em particular, nos Acórdãos n.ºs 99/2002 (publicado in Diário da República, IIª Série, de 04-04-2002) e 494/2003 (publicado in Diário da República, IIª Série, 27-11-2003), com larga referência à doutrina e à jurisprudência anterior sobre o tema. No entanto, não deixou de se sublinhar nesses Acórdãos que, sendo certo que “também em matéria de criminalização o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição”, é, por outro lado, igualmente certo que, “no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas”.
O citado princípio da proporcionalidade, em particular na sua vertente de necessidade de pena, em nada é violado pela punição de crimes em concurso efetivo. De facto, como se referiu no já citado Acórdão n.º 303/2005, um concurso efetivo de crimes, “não ficando a proteção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas”.
Ora, este entendimento é também inteiramente transponível para o presente caso. O acórdão recorrido entendeu que o recorrente cometeu efetivamente quer o crime de detenção de arma proibida, quer o de homicídio; a proteção do bem jurídico segurança da comunidade não fica esgotada pela proteção do bem jurídico vida, razão pela qual o legislador pode entender que a conduta que se traduziu na lesão ou perigo de lesão de cada um destes bens carece de tutela penal autónoma.
Em suma, há que concluir que o princípio da proporcionalidade não é violado pelas normas objeto do presente recurso.
III – Decisão
10. Em consequência, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 () vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 20 de junho de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.