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Proc. nº 357/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. A ora recorrente AG... foi presente ao Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela para que se procedesse ao respectivo interrogatório judicial, uma vez que havia sido detida em flagrante delito, tendo sido na altura sujeita às seguintes medidas de coacção: a. termo de identidade e residência; b. prestação de caução no montante de Esc. 750.000$00, no prazo de 10 dias; c. obrigação de se apresentar semanalmente no posto da PSP de Mirandela ao Sábado; d. não se ausentar para o estrangeiro nem se ausentar da cidade de Mirandela. O referido interrogatório judicial foi presidido pelo Dr. José Alberto Vaz Carreto, Juiz daquele Tribunal, que proferiu então o despacho de fls. 111 e seguintes.
1. Posteriormente, já após a designação da data para o julgamento, veio a arguida requerer a declaração de impedimento daquele Juiz para intervir no julgamento por, enquanto juiz de instrução criminal, ter procedido ao seu primeiro interrogatório judicial e lhe ter aplicado as medidas de coacção referidas supra, estando por isso impedido de participar na fase de julgamento por lhe serem aplicáveis as razões que levaram ao decretamento da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, duma dada interpretação do art. 40º do CPP.
3. O requerido veio contudo a ser indeferido com base nas seguintes razões:
'Fomos nós, como Juiz da Comarca de Mirandela e como tal investidos de funções de juiz de instrução, que procedemos ao primeiro interrogatório da arguida, e lhe aplicámos as medidas de coacção, mas nenhuma delas foi a prisão preventiva, por havermos considerado, como da decisão consta, que havia razões que a tal obstavam. Como impedimentos elenca a lei os do art. 39º do CPP, que a arguida não invoca, e o art. 40º do CPP nos termos do qual, está impedido de proceder ao julgamento o Juiz que tiver presidido ao debate instrutório. Face á decisão do tribunal Constitucional – Ac. 186/98 (DR 20/3/98), - como força obrigatória geral, está também impedido de proceder ao julgamento o Juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido.
É apenas este o alcance da decisão do tribunal Constitucional. Haverá razões para impedir a intervenção no julgamento de um Juiz que tendo ouvido o arguido em primeiro interrogatório todavia não decretou a prisão preventiva, nem a manteve posteriormente ? Ou seja, deverá o art. 4º do CPP interpretado à luz do art. 32º, nº 5 da Constituição, impedir qualquer que intervenha na fase de inquérito, de intervir no julgamento ? Face ao nosso sistema legal, cremos que não. E no caso em apreço, cremos que mais se justifica a ausência do impedimento. Na verdade a apresentação do arguido detido ao Juiz para 1º interrogatório visa a defesa do arguido – dar-lhe face aos elementos do processo ocasião para se defender e assegurar a sua liberdade. Apresentada detida a arguida foi ouvida e solta. Creio, face aos termos legais e à decisão do tribunal Constitucional, inexistir o impedimento suscitado. Pelo exposto, indefiro a declaração de impedimento e, consequentemente, não me declaro impedido para proceder ao julgamento da arguida nestes autos'.
4. Inconformada com o assim decidido a arguida recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo concluído as alegações que apresentou nesse Tribunal nos seguintes termos:
'1ª) O Sr. Dr. José Alberto Vaz Carreto, actualmente a desempenhar funções como Juiz de Círculo de Mirandela e ao qual cabe a presidência do julgamento a realizar oportunamente, procedeu ao primeiro interrogatório da ora recorrente, quando a mesma lhe foi apresentada sob detenção;
2ª) Conforme resulta do despacho exarado a fls. 111 e ss. dos autos, esse Sr. Magistrado Judicial, concluíu por ser adequada e proporcional a aplicação, a ambos os arguidos (um dos quais já faleceu), da medida de prisão preventiva, só não tendo chegado a fazê-lo pelas razões que depois referiu no mesmo despacho;
3ª) Todavia, para além de se ter determinado a suspensão da execução da prisão preventiva imposta ao arguido Júlio (entretanto falecido), sujeitou a ora recorrente, cumulativamente, a quatro medidas de coacção, entre as quais avultam uma pesada caução, a obrigação de apresentação semanal (ao Sábado) no posto da PSP de Mirandela e a obrigação de não se ausentar dessa cidade, nem para o estrangeiro;
4ª) O que bem demonstra, afinal, ter esse Sr. Magistrado Judicial ficado desde logo com uma fortíssima convicção quanto à culpabilidade dos arguidos e à gravidade das respectivas condutas, convicção essa que não deixou de se reflectir nas medidas de coacção por ele impostas à ora recorrente;
5ª) Acresce que foi esse mesmo Sr. Magistrado Judicial que, através do despacho exarado a fls. 273 dos autos, recebeu a acusação e, além do mais, manteve o estatuto coactivo da ora recorrente, reiterando expressamente o juízo que (já) tem quanto à gravidade da conduta imputada a esta última e, implicitamente, quanto à culpabilidade da mesma pela respectiva prática, porquanto determinou que ela fosse especialmente advertida das consequências da violação dos deveres impostos;
6ª) A nossa Lei Fundamental – e bem assim o art. 6º, nº 1, da C.E.D.H., aprovada pela Lei nº 65&78, de 13-10 – garante a todos os arguidos que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, que o tribunal que vai conhecer do pleito se moverá na estrita observância das regras da independência e da imparcialidade (cfr. arts. 20º, nº 1 e 32º, nºs 1 e 5 da CRP);
7ª) E quando a imparcialidade do Juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade seja justificadamente posta em causa, como sucede no caso em apreço, então esse Sr. Magistrado não estará em condições de «administrar justiça», podendo e devendo declarar-se ou ser declarado iudex inhabilis e, consequentemente, estar-lhe ou ser-lhe vedada toda e qualquer intervenção na fase de julgamento;
8ª) Na verdade, também aqui pode dizer-se que o Sr. Magistrado Judicial em questão está já com uma convicção de tal forma arreigada quanto ao peso dos elementos que constam dos autos que, «objectivamente – e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento», pelo que deveria ter sido declarado o seu impedimento para nele intervir;
9ª) Decidindo de forma diversa, o douto despacho recorrido violou, entre outros, os artigos 20º, nº 1 e 32º, nºs 1 e 5 da CRP, o art. 6º, nº 1, da C.E.D.H., aprovada pela Lei nº 65/78, de 13-10, e bem assim o art. 40º do CPP, quando interpretado em conformidade com a nossa Lei Fundamental.
5. Ouvido o Ministério Público, que se pronunciou no sentido do indeferimento do recurso, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, por aresto de 10 de Fevereiro de 1999, negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o despacho recorrido. Escudou-se, para tanto, em síntese, na seguinte argumentação:
'(...) Dos autos resulta que o senhor juiz do tribunal recorrido, enquanto juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela, exercendo por inerência as funções de juiz de instrução, procedeu ao primeiro interrogatório da recorrente, que lhe havia sido apresentada detida, tendo-lhe aplicado as já referidas medidas de coacção. Posteriormente, já como juiz do Tribunal de Círculo daquela Comarca, recebeu a acusação deduzida contra a recorrente e manteve as medidas de coacção que lhe havia anteriormente aplicado ordenando ainda que a mesma fosse advertida das consequências da violação dos deveres impostos. Esta situação não se enquadra, assim, quer na previsão do art. 40º do CPP, com a actual redacção, quer na decisão do Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, uma vez que o senhor juiz do tribunal recorrido não aplicou à recorrente a medida de coacção de prisão preventiva e, relativamente a esta
última decisão, ainda, a manutenção da medida de coacção anteriormente aplicada já não ocorreu na fase de inquérito, mas depois de deduzida acusação pelo Ministério Público. O facto de o senhor juiz do tribunal recorrido ter ordenado que a recorrente fosse advertida das consequências do incumprimento das obrigações impostas não tem, para o caso, qualquer relevância, uma vez que tal ocorreu no cumprimento do preceituado no art. 194º, nº 3, do CPP, nada mais significando do que isso, não se podendo tirar do mesmo as ilações que a recorrente pretende, nomeadamente quanto à formação de um juízo sobre a sua culpa pela prática dos crimes que lhe são imputados. Acresce que o senhor juiz do tribunal recorrido, ao ouvir a recorrente em primeiro interrogatório e ao fixar-lhe as medidas de coacção, mais não fez do que proceder ao controlo jurisdicional da sua detenção, uma vez que podiam estar em causa os seus direitos, liberdades e garantias, como refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto no seu parecer. Assim, mal se compreende que, tendo a intervenção do senhor juiz sido esporádica e com as finalidades referidas, pelo menos no que diz respeito à sua intervenção no processo, se venha arguir a sua suspeição. A atender-se a pretensão da recorrente, então toda e qualquer medida de coacção aplicada por um juiz, nomeadamente no despacho de recebimento da acusação, constituiria impedimento para intervir no julgamento, o que acarretaria sempre a necessidade da intervenção de dois juizes no processo: um para receber a acusação e se pronunciar sobre as medidas de coacção; outro para proceder ao julgamento. Isto porque, quando um juiz profere um despacho de recebimento da acusação, não pode deixar de examinar as provas existentes no inquérito, uma vez que a pode rejeitar se a considerar manifestamente infundada, nos termos do art.
311º, nº 2, al. a) do CPP. De igual modo teria de haver um juiz que não o do julgamento para se pronunciar sobre as medidas de coacção, nomeadamente para cumprimento do disposto no art. 213º do CPP, já depois de recebida a acusação. Maia Gonçalves, em anotação ao art. 40º do CPP, já com a s alterações introduzidas pela Lei nº 59/98, in Código de Processo penal Anotado, 9ª edição revista e actualizada, 1998, depois de manifestar a sua discordância quanto à alteração deste artigo, refere não descortinar porque é que o juiz de instrução fica necessariamente preso a um pré-juízo só porque aplicou a um arguido uma qualquer medida de coacção, ainda que seja a prisão preventiva. Acrescenta ainda que, relativamente à aplicação ao arguido de qualquer outra medida de coacção, o juiz de instrução não fica automaticamente impedido, podendo isso, em casos pontuais, fundamentar um eventual pedido de suspeição. Dos autos não resulta que, para além das razões invocadas na motivação do recurso, tenha havido outras que levaram a recorrente a requerer a suspeição do senhor juiz do tribunal recorrido, pelo que, mesmo perfilhando-se este último entendimento, sempre o requerimento teria de ser indeferido'.
6. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso. Pretende a recorrente ver apreciada a constitucionalidade da norma que, na interpretação da decisão recorrida, se extrai do artigo 40º do C.P.P., 'segundo a qual não está impedido de participar no julgamento o juiz que, na fase de inquérito e aquando do primeiro interrogatório do arguido detido, aplicou ao mesmo quatro medidas de coacção, que não a prisão preventiva, medidas essas que posteriormente manteve, no despacho que recebeu a acusação e designou o dia para o julgamento'.
7. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1ª) – O Sr. Dr. José Alberto Vaz Carreto, então Juiz de Direito no Tribunal da Comarca de Mirandela e a exercer, por inerência, as funções de Juiz de Instrução, foi quem procedeu ao primeiro interrogatório da ora recorrente, quando a mesma lhe foi apresentada sob detenção, sendo certo que foi também ele que, agora, já na veste de Juiz de Círculo da mesma Comarca, proferiu despacho de recebimento da acusação e de designação de dia para julgamento, a realizar sob a sua presidência;
2ª) – Conforme resulta do douto despacho que então exarou nos autos, esse mesmo Sr. Magistrado Judicial concluiu que era adequada e proporcional a aplicação da medida da prisão preventiva a ambos os arguidos (um dos quais já faleceu), que só não chegou a decretar pelas razões que depois referiu no mesmo despacho;
3ª) – Todavia, para além de ter determinado a suspensão da execução da prisão preventiva imposta ao arguido Júlio (entretanto falecido), sujeitou a ora recorrente, cumulativamente, a quatro medidas de coacção, entre as quais avultam uma pesada caução, a obrigação de apresentação semanal (ao Sábado) no posto da PSP de Mirandela e a obrigação de não se ausentar dessa cidade, nem para o estrangeiro;
4ª) – O que bem demonstra, afinal, ter esse Sr. Magistrado Judicial ficado desde logo com uma fortíssima convicção quanto à culpabilidade dos arguidos e à gravidade das respectivas condutas, convicção essa que não deixou de se reflectir nas medidas de coacção por ele impostas à ora recorrente;
5ª) – Foi esse mesmo Sr. Magistrado Judicial que, no despacho de recebimento da acusação manteve o estatuto coactivo da ora recorrente, reiterando expressamente o juízo que já tinha quanto à gravidade da conduta imputada a esta última e, implicitamente, quanto à culpabilidade da mesma pela respectiva prática;
6ª) – Os art.s 2º, 3º, nº 3, 20º, nº 1, 32º, nºs 1 e 5, e 205º, todos da Constituição, e ainda o art. 6º, nº 1 da CEDH, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, garantem a todos os arguidos que hajam de ser submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal, que o Tribunal que vai conhecer do pleito se moverá na estrita observância das regras da independência e da imparcialidade;
7ª) E quando a imparcialidade do Juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade sejam justificadamente postas em causa, como sucede no caso em apreço, então o Sr. Magistrado não estará em condições de «administrar justiça», podendo e devendo declarar-se ou ser declarado iudex inhabilis e, consequentemente, estar-lhe ou ser-lhe vedada toda e qualquer intervenção na fase do julgamento;
8ª) Na verdade, também aqui pode dizer-se que o Sr. Magistrado Judicial em questão está já com uma convicção de tal forma arreigada quanto ao peso dos elementos que constam dos autos que, «objectivamente – e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento», pelo que devia ter sido declarado o seu impedimento para nele intervir;
9ª) Decidindo de forma diversa, o douto acórdão recorrido sufragou uma interpretação da citada redacção do art. 40º do CPP que é desconforme com a nossa Lei Fundamental, tendo violado, entre outros, os art.s 2º, 3º, nº 3, 20º, nº 1, 32º, nºs 1 e 5, e 205º, todos da Constituição, bem como o art. 6º, nº 1 da CEDH, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro'.
8. Igualmente notificado para alegar disse o Ministério Público, recorrido, a concluir:
'1º - Não implica interpretação violadora de qualquer preceito ou princípio constitucional a que se traduz em considerar não incluída nos impedimentos previstos no art. 40º do Código de Processo penal a situação que resulta de ter o juiz que intervém no julgamento de certo arguido procedido ao seu primeiro interrogatório, determinando a respectiva libertação, mediante adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, que reiterou e manteve no momento em que recebeu a acusação.
2º - termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação.
9. É o seguinte o teor do preceito em que se insere a norma cuja constitucionalidade vem questionada pela recorrente: Artigo 40º
(Impedimento por participação em processo)
1. Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido. A decisão recorrida interpretou o preceito supra referido no sentido de 'não considerar impedido de participar no julgamento o juiz que procedeu ao primeiro interrogatório judicial da arguida, determinando a respectiva libertação, mediante adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, medidas de coacção que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e marcou o dia para o julgamento'.
É esta dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que a recorrente pretende ver confrontada com a Constituição e que, nessa exacta medida, constitui o objecto do recurso.
10. O artigo 40º do Código de Processo Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, foi já declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 186/98 (Diário da República, I Série A, nº
67, de 20 de Março de 1998), por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido. Importa, por isso, começar por averiguar se a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que vem questionada não coincide com a já declarada inconstitucional pelo citado Acórdão nº 186/98, caso em que, apenas haveria agora que fazer aplicação daquela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Cremos, porém, que tal identidade não se verifica. Com efeito, no acórdão nº 186/98 - como nos acórdãos em que este se fundamentou; os acórdãos nºs 935/96, de 10 de Julho (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., pp.347 e ss.), 284/97, de 9 de Abril, e 481/97, de 2 de Julho (estes ainda inéditos) - estava em causa o artigo 40º do Código de Processo Penal quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, durante a fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido. Nos presentes autos está em causa o artigo 40º do Código de Processo Penal quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório judicial da arguida, decretou a respectiva libertação, mediante adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, medidas de coacção que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e marcou o dia para o julgamento. Esta diferença ao nível da matéria de facto que esteve na base do citado Acórdão nº 186/98 e a que agora está na base do presente processo, torna inaplicável, à situação que agora constitui objecto dos autos, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral ali formulada.
12. Resta, contudo, averiguar se do confronto directo entre a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que agora vem questionada e os preceitos constitucionais invocados pela recorrente não resulta qualquer situação de inconstitucionalidade. Confrontemos, em primeiro lugar, aquela dimensão normativa com o disposto no artigo 32º da Constituição, designadamente com o seu número 5. Da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional (expressa não apenas no já citado acórdão nº 186/98, bem como naqueles que estiveram na sua base, mas ainda nos acórdãos nº 114/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pp. 661 e ss.,; 75/99, Diário da República, II Série, de 6 de Abril de 1999 e 338/99, este ainda inédito) resulta claramente que não é qualquer intervenção anterior no processo por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º, nº 5 da Constituição. Como se afirmou repetidamente naqueles acórdãos 'um juízo de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento do juiz que participou numa fase anterior, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição, pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência, intensidade ou relevância - sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência'. Assente precisamente nessa jurisprudência considerou já o Tribunal que, designadamente, não era idónea a, justificadamente, pôr em causa a independência e imparcialidade do juiz que há-de participar no julgamento, uma sua participação pontual, isolada, na fase de inquérito, traduzida em, por exemplo, ordenar uma busca domiciliária (acórdão nº 114/95), proferir despacho de manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213º do mesmo Código (acórdão nº 29/99), ou simplesmente decretar a prisão preventiva findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido (acórdão nº 338/99). Pois bem, cremos que também na situação que agora é objecto dos autos as intervenções anteriores do juiz - que se limitou a, findo o primeiro interrogatório judicial, ter aplicado à arguida medidas de coacção não detentivas da liberdade e a pronunciar-se, no momento em que recebeu a acusação, pela sua manutenção nos precisos termos - não são aptas a justificadamente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de isenção e imparcialidade ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência. No que se refere à intervenção traduzida em, findo o primeiro interrogatório judicial da arguida detida, determinar a sua libertação e ordenar um leque de medidas de coacção diferentes da prisão preventiva, trata-se de um intervenção numa fase bastante embrionária do processo, no início do inquérito, em que, portanto - como, bem refere o Representante do Ministério Público neste Tribunal
- 'carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz formulou logo ai uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida' em termos de permitir que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência. E essa situação não é alterada pelo simples facto de o juiz, no momento em que recebe a acusação e por imperativo legal, se ter pronunciado pela manutenção do quadro existente em termos de medidas de coacção a que a arguida estava sujeita.
Uma intervenção processual como a que agora está em causa implica um envolvimento com o processo - e também com o arguido - substancialmente menos intenso do que na hipótese - em causa no acórdão nº 186/98, bem como naqueles em que este se fundamentou - em que o juiz é confrontado com um requerimento autónomo do arguido solicitando a revogação da(s) medida(s) de coacção em vigor e em que, consequentemente, o juiz tem que proceder a uma apreciação especificada dos fundamentos invocados bem como das razões porque entende ser de manter a medida de coacção. Em suma: julgamos que a simples decisão pela manutenção do quadro existente em termos de medidas de coacção, no momento do recebimento da acusação, não é suficiente para, por si só ou em conjugação com a intervenção anterior, conduzir
à formulação de uma dúvida séria, razoável, objectiva sobre as condições de isenção e imparcialidade do juiz ou a gerar uma desconfiança geral da comunidade sobre essa mesma isenção e imparcialidade, termos em que não se verifica a alegada violação inconstitucionalidade.
13. Finalmente, cremos que o vai dito responde não apenas à alegada inconstitucionalidade por violação do disposto no art. 32º, nº 5 da Constituição, mas ainda à alegada violação das outras normas constitucionais invocados pela recorrente, designadamente as que resultam dos art.s 2º, 3º, nº
3, 20º, nº 1, 32º, nºs 1, e 205º, todos da Constituição. A ser verdade, como procurámos demonstrar, que intervenções anteriores no processo como as que agora estão em causa não são aptas a, justificadamente, permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade do juiz, deixa de se poder afirmar que ao permitir-se-lhe que participe no julgamento se estão a postergar garantias de defesa, em violação do disposto no art. 32º, nº 1, da Constituição, ou a violar a sua dignidade enquanto pessoa humana garantida, designadamente, pelo art. 2º da Constituição. III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 58/98, de 25 de Agosto, quando interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, determinou a respectiva libertação, mediante adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, medidas de coacção que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e marcou o dia para o julgamento; a. negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade; Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze U.C. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida