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Proc.nº 185/2000
1ª Secção Consº Vitor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – JR notificado para comparecer no 1º Juízo Criminal da Comarca do Porto, para ser julgado, no dia 26 de Janeiro de 1999, em processo comum com intervenção do tribunal singular, viu a audiência ser adiada por ter faltado, pelo que foi logo condenado no pagamento de uma quantia equivalente a seis (6) Ucs.
Por despacho exarado na acta de adiamento, a audiência foi marcada para o dia 7 de Junho de 2000 e, para a hipótese de novo adiamento, designou-se logo o dia 29 de Junho de 2000 para a referida audiência, tendo-se logo determinado, para além do pagamento da mencionada quantia, a detenção do arguido faltoso para comparecer na nova data designada.
No dia 29 de Janeiro de 1999, o arguido apresentou um requerimento acompanhado de um atestado médico para justificação da sua falta à audiência de discussão e julgamento designada para o dia 26.
Tal requerimento foi indeferido por se ter entendido que nada havia a alterar ao decidido no despacho proferido na audiência de discussão adiada.
O arguido interpôs recurso do despacho de indeferimento para a Relação do Porto por entender que, tendo sido notificado para a audiência que veio a ser adiada no decurso do ano de 1998, deve ser aplicada na apreciação das consequências da sua falta, a redacção do artigo 117º do Código de Processo Penal que estava em vigor no momento da notificação e não aqueloutra, bem diferente, em vigor no momento do adiamento.
2. – O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 19 de Janeiro de 2000, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Para assim decidir, a Relação equacionou a questão suscitada pelo forma seguinte:
'(...) tendo o arguido sido notificado para comparecer em audiência de julgamento antes da revisão do CPPenal que entrou em vigor em 1 de Janeiro de
1999 (Lei nº 95/98, de 25/8) e que deu nova redacção ao Artº 117º, a apreciação do pedido de justificação da falta dada à audiência de discussão e julgamento designada para 29 de Janeiro de 1999, será aplicável a anterior ou a actual redacção do referido artigo.'
Depois de descrever os regimes em causa, a Relação concluiu: 'resulta do exposto que actualmente o pedido de justificação da falta deixou de poder ser apresentado no prazo de cinco dias, devendo a impossibilidade de comparecimento ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designado para a prática do acto, se for imprevisível, ou tratando-se de impedimento imprevisível comunicada no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao terceiro dia útil seguinte'.
E fundamentando o seu entendimento, a Relação refere que o acto processual é regido pela lei processual em vigor no momento em que o acto
é praticado, aplicando-se imediatamente a lei nova, a menos que dessa aplicação resulte um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, designadamente, uma limitação do seu direito de defesa, ou uma quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo. Ora, de acordo com a Relação, a justificação de uma falta não deve considerar-se um direito fundamental do arguido por forma a poder agravar a sua situação processual de arguido, pelo que não se justifica a prorrogação da lei antiga. Entende, por isso a Relação que a actual redacção do artigo 117º do CPP é imediatamente aplicável aos pedidos de justificação de falta em processos iniciados anteriormente à sua vigência. Acrescenta ainda 'não se entender onde é que a exigência actual na justificação das faltas pode bulir com os princípios constitucionais do acesso ao direito, direito à integridade pessoal e à saúde consagrados nos artºs 20º, 25º 2 64º da CRP, os quais em nada foram atingidos ou restringidos. O que se passa é que o arguido não apresentou tempestivamente o seu pedido de justificação da falta. E não se argumente, como o faz o arguido para ilustrar a violação daquelas normas constitucionais, que pode haver casos em que o cidadão seja acometido de doença súbita e não tenha meios para comunicar a impossibilidade de comparência
à diligência.
É evidente que tal argumento não pode de modo algum colher. Pois nesses casos, como é sabido, pode lançar-se mão do justo impedimento previsto no artº 107º nº2 CPP.'
3. - Não se conformando com o assim decidido, o arguido veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
No requerimento de interposição deste recurso, o recorrente questiona a interpretação dada ao artigo 117º do Código de Processo Penal (CPP/98), 'bem como a consequente aplicação imediata de tal nova redacção dessa disposição legal aos processos pendentes', por entender que viola os princípios constitucionais da proporcionalidade, da proibição de indefesa, do acesso ao direito e até das mais amplas garantias de defesa, consagrados nos artigos 2º, 20º e 32º da Constituição.
Produzidas as pertinentes alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1. O arguido foi notificado para a Audiência de julgamento, que estava marcada para o dia 26.o1.99, no decurso do ano de 1998, quando a redacção do art. 117º do C.P.Penal era bem diferente daquela que hoje tem.
2. A nova redacção do nº2 do art. 117º do C.P.Penal, somente entrou em vigor em Janeiro de 1999 e é substancialmente mais gravosa e objectivamente muito mais desfavorável ao exercício dos direitos fundamentais do arguido/recorrente, designadamente no que tange ao seu direito de proteger a sua saúde, de ver reconhecido judicialmente o grave impedimento que obstaculizou a sua deslocação ao Tribunal e, até, de defesa do seu património de tão elevadas, quão injustificadas, multas.
3. Devendo ser aplicada na apreciação da justificação da falta do arguido/recorrente à dita Audiência de Julgamento de 26.01.99, a anterior redacção do art. 117º do C.P.Penal, qual seja, aquela que estava em vigor aquando da respectiva notificação do arguido/recorrente, para a dita Audiência de Julgamento como decorre conjugadamente do disposto nos arts. 2º, nº4 do Cód. Penal e nos arts. 20º, 29º e 32º da Constituição.
4. Doutro modo, o arguido vê serem criadas condições muito mais difíceis para o exercício do seu direito de justificar a sua falta por doença, de que foi indubitavelmente acometido, de forma inesperada e até para ele surpreendente. Convindo atender que a não justificação da falta dada, conforme o mesmo havia peticionado, acarretou para o mesmo consequências processuais muito graves, tal como a emissão de mandado de detenção para na posterior data então designada dessa forma acintosa e desprestigiante, quando não desonrosa, conduzido ao Tribunal. Por outro lado,
5. O direito à saúde e á integridade física, são direitos fundamentais e constitucionalmente garantidos, como decorre do disposto nos arts. 25º e 64º da Constituição.
6. Por isso, o cidadão que não comparece, por estar doente e impossibilitado de se deslocar ao Tribunal, age em estado de necessidade desculpante e, portanto, sem culpa – art. 35º nº1 do Cód. Penal e art. 117º nº1 do C.P.Penal -. Neste sentido se tem pronunciado a nossa melhor jurisprudência, designadamente e entre muitos outros, o Assento do S.T.J. de 03.04.91 publicado no D.R. nº 120, de
25.05.91 e o Ac. da RP. De 18.o4.90, in Col. Jur. Tomo II, ano 1990, pág. 250.
7. Mas é de admitir e prever que casos haverá em que o cidadão que seja acometido de doença grave e súbita, não tenha condições, ou não tenha meios, para na hora dia designado para a diligência, conseguir comunicar a sua respectiva impossibilidade.
8. Daí que, salvo o devido respeito e mais douta opinião, ou é dada ao nº2 do artigo 117º do C.P.P. uma interpretação conforme às mais elementares normas constitucionais e se atende à própria dificuldade ou impossibilidade de avisar o
–Tribunal no respectivo dia e hora, ou aquele dispositivo legal é inconstitucional por violar as supra citadas normas Constitucionais.
9. Entendemos mesmo que o rigor interpretativo do nº2 do art. 117º do C.P.P., tal como foi efectuado pelo Tribunal 'a quo', viola o princípio da proporcionalidade, o próprio princípio da proibição da indefesa e ainda o princípio do acesso ao direito, os quais encontram guarida nos arts. 2º e 20º da Constituição da República.
10. Tudo para dizer que o Tribunal 'a quo' não podia Ter, sem mais, desprezado a força probatória do Atestado Médico, oferecida pelo recorrente para comprovar a sua invocada doença. Antes devendo indagar e dar oportunidade ao recorrente de, previamente à respectiva condenação, se defender, e esclarecer o Tribunal 'a quo', dos motivos pelos quais lhe era impossível comunicar a respectiva falta – Neste caso e como supra se deixou dito o recorrente nem sabia ás 10 horas do dia
10.03.99 que se encontrava convocado para nesse dia e hora se deslocar ao Tribunal-.
11. É assim manifesto que, em obediência às supra citadas normas Constitucionais, sempre deveria ser julgada justificada a falta dada pelo recorrente àquela diligência de inquirição.
12. Pelo que, o douto Acórdão recorrido ao não declarar inconstitucional o nº2 do art. 117º do C.P.P. ou, pelo menos, ao não fazer do mesmo uma interpretação conforme àqueles princípios constitucionais, violou, e, ou, interpretou erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 2º, 20º, 32º e 64º da Constituição da República.'
Também o Ministério Público alegou, concluindo tais alegações pela forma seguinte:
'1 – Não tendo o recorrente suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da norma de direito transitório – o artigo 5º, nº1, do Código de Processo Penal – em que a decisão recorrida fez expressamente assentar a solução da imediata aplicação da Lei nova, terá de se considerar circunscrito o objecto do presente recurso à apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 117º, nº2 do Código de Processo Penal, em si mesma considerada.
2 – tal norma, interpretada em termos de recair sobre os faltosos a acto judicial o dever de justificar, no próprio acto, a impossibilidade de comparência, ditada por razões 'imprevisíveis', que obstavam á sua comunicação em momento anterior – estando ressalvada a possibilidade de só ulteriormente juntar os meios probatórios necessários e a invocabilidade de possível 'justo impedimento' – não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
4. – É indubitável que o recorrente, nas alegações de recurso que apresentou perante o Tribunal da Relação do Porto não suscitou a inconstitucionalidade da norma que determina a aplicação imediata da lei processual penal mais recente.
Porém, a decisão recorrida – o acórdão da Relação de 19 de Janeiro de 2000 – tratou a questão da aplicabilidade imediata a lei processual penal nova, ainda que não na perspectiva da constitucionalidade normativa.
Assim, o recorrente, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade suscita já a questão da constitucionalidade da interpretação do artigo 117º do CPP98, feita na decisão recorrida e bem assim a questão da consequente aplicação imediata da nova redacção dessa disposição legal.
Todavia, conforme decorre claramente das alegações apresentadas e, principalmente, das conclusões aí formuladas o recorrente acaba por não questionar a aplicação imediata da nova lei processual penal, não se referindo, de todo em todo, à questão da inconstitucionalidade do artigo 5º do CPP, que determina tal aplicação, como aliás bem refere o Ministério Público nas suas alegações. Com efeito, o recorrente concentra toda a sua argumentação na interpretação feita na decisão recorrida do nº2 do artigo 117º do CPP/98, nos termos da qual não foi dada oportunidade ao recorrente de esclarecer o tribunal dos motivos pelos quais lhe era impossível comunicar a respectiva falta. E esta interpretação normativa ofende, segundo o recorrente os princípios constitucionais da proporcionalidade, da proibição de indefesa e do acesso ao direito, consagrados nos artigos 2º e 20º da Constituição.
Fica, assim, delimitado o objecto do presente recurso, tal como resulta das conclusões das alegações apresentadas pelos recorrente neste Tribunal.
5. – O artigo 117º do CPP98, sob a epígrafe
'Justificação da falta de comparência', tem a seguinte redacção:
'1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.
2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.
3. Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao 3º dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas.
4. Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade da alegação da doença.
5. [...].'
Esta norma foi efectivamente alterada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, cujo início de vigência foi fixada para 1 de Janeiro de 1999. Esta Lei teve origem na proposta de lei nº 157/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, IIª Série – A, nº 27, de 29 de Janeiro de 1998, para revisão do Código de Processo Penal. As normas dos nºs 1 a 4 do artigo 117º do CPP mantiveram na redacção final da Lei nº 59/98, a redacção que constava da proposta de lei apresentada na Assembleia da República.
As modificações introduzidas pela revisão de 1998 no Código de Processo Penal em matéria de justificação de faltas de comparência a actos processuais foram as seguintes: a noção de falta justificada foi consideravelmente simplificada; o procedimento para a justificação foi substancialmente modificado: antes da revisão, a justificação devia ser requerida até cinco dias após a falta; depois da revisão, o prazo de comunicação da impossibilidade de comparência depende da previsibilidade do motivo – se este for previsível, a justificação da falta deve ser comunicada com cinco dias de antecedência da realização do acto; se o motivo da falta for imprevisível, então, a justificação da falta tem de ser requerida no dia e hora designados para o acto. Em qualquer dos casos, deve constar da comunicação a indicação do motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.
Tal como no regime anterior á revisão, os elementos de prova da impossibilidade devem ser apresentados com a comunicação; porém, se o impedimento tiver sido comunicado no próprio dia e hora, o faltoso pode apresentar tais elementos até ao terceiro dia útil seguinte, se para tanto tiver motivo justificado. No caso de ser alegada doença como motivo da falta, o atestado médico deve especificar a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento.
6. - Nos autos, vem questionado o nº 2 do artigo 117º, enquanto determina a obrigatoriedade da comunicação e prova da impossibilidade de comparência ser fornecida no dia e hora designados para o acto, quando tal impossibilidade for imprevisível, ao contrário do estabelecido na anterior redacção do preceito.
É evidente que o regime da comunicação da impossibilidade de comparência é mais exigente no Código de Processo Penal revisto. Porém, essa maior exigência não torna a norma do nº2 do artigo 117º inconstitucional.
Com efeito, a norma não viola o princípio da proporcionalidade: a medida imposta que dela decorre não é excessiva nem demasiado gravosa. De facto, se a razão do impedimento é, de há muito previsível, compreende-se a imposição legal da sua comunicação com cinco dias de antecedência em relação à data do acto a praticar. Trata-se, não só de permitir ao tribunal a melhor ordenação dos demais actos a praticar no processo, como também uma maior eficiência do procedimento processual. Já a imposição legal de comunicar a impossibilidade de comparência no dia e hora designados para o acto poderia considerar-se excessiva caso a norma não previsse a concessão de um prazo razoável para que essa comunicação pudesse ser efectuada e a respectiva prova pudesse ser carreada para os autos, no caso de se justificar a sua não apresentação no próprio dia.
Como a norma prevê um prazo de 3 dias para a apresentação dos elementos de prova, em caso de efectivo impedimento, não só a rigidez do princípio normativo constante da norma fica atenuada como os direitos do faltoso ficam tutelados de forma adequada com a concessão de um prazo razoável.
Inexiste, portanto, qualquer violação do princípio da proporcionalidade.
Também não é violado o princípio do acesso ao direito consagrado no artigo 20º da Constituição. De facto, a inovação normativa constante do nº2 do artigo 117º destina-se claramente a melhorar a eficiência do Tribunal, evitando o protelamento das decisões através do adiamentos sucessivos das audiências, assim se retardando o andamento da Justiça. E, em nenhum aspecto, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva
é beliscado pela norma que se questiona, uma vez que as soluções previstas se destinam a acelerar a realização da justiça sem afectar os direitos das partes que tenham necessidade de faltar a actos para que foram convocados.
De igual modo, não se vê como pode a norma em causa violar o princípio da proibição de indefesa, uma vez que o faltoso que está realmente impedido de comparecer por motivo imprevisível dispõe de um prazo adicional para apresentar os elementos comprovativos de tal impossibilidade.
Por último, e no que respeita ao direito à saúde e à integridade física do faltoso não se vislumbra por que forma pode ser afectado por uma norma que apenas estabelece o prazo para a comunicação da impossibilidade de comparência e os requisitos de tal comunicação.
Assim, não sendo violados os artigos 2º, 20º 32º e 64º da Constituição, o presente recurso tem de improceder. III – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em unidades de conta.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida