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Proc. nº 127/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. M. G. interpôs, em Junho de 1995, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação do despacho do Coordenador Sub-Regional de Évora da Administração de Saúde do Alentejo, proferido em 16 de Março do mesmo ano, que revogou outro despacho da mesma entidade através do qual fora concedida à recorrente a bonificação de vencimento como enfermeira especialista, nos termos do artigo 66º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº
437/91, de 8 de Novembro.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 26 de Janeiro de 1996 (fls. 28 e seguintes), julgou o recurso ilegal, 'por ter sido dirigido contra acto administrativo não recorrível contenciosamente, isto é, proveniente de órgão subordinado da hierarquia da administração', e rejeitou-o, nos termos do artigo 25º da LPTA.
2. Não se conformando com a decisão, M. G. interpôs recurso jurisdicional para a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo.
Nas suas alegações, a recorrente defendeu a definitividade vertical do acto impugnado e concluiu assim:
'1ª O órgão de administração coordenador sub-regional não depende hierarquicamente dos outros órgãos de administração das ARS’S e tem, consequentemente, competência para a prática de actos administrativos definitivos e executórios, ao contrário do que defende o ilustre juiz «a quo»:
2ª A mui douta sentença recorrida violou, por consequência, o disposto no artigo
51º, nº 1, alínea b) do Estatutos dos Tribunais Administrativos e Fiscais e interpretou erradamente o disposto no artigo 4º, nº 2, do regulamento das Administrações Regionais de Saúde, pelo que deve ser anulada.'
Por acórdão de 6 de Fevereiro de 1998 (fls. 67 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo declarou a incompetência da Secção do Contencioso Administrativo daquele tribunal para conhecer do objecto do recurso e ordenou a remessa do processo ao Tribunal Central Administrativo.
3. No Tribunal Central Administrativo, o relator proferiu o seguinte despacho:
'1. Encontram-se os presentes autos prontos para julgamento, havendo agora que conhecer da conformidade constitucional do art. 15º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho.
[...]
2. No Tribunal Central Administrativo, como em todos os tribunais superiores, há dois órgãos jurisdicionais, a conferência e o relator. A conferência é um tribunal colegial em que o julgamento do objecto do recurso obedece aos trâmites de «discussão» e «formação da decisão do tribunal» consignados no art. 709º do CPC.
3. Temos assim que, apesar do carácter reservado do órgão jurisdicional «conferência», o Ministério Público assiste à reunião da respectiva secção e intervém na discussão, embora não dê o seu voto. Contudo, à reunião da conferência não assistem as partes, nem os seus representantes.
4. [...].
5. Inserindo o Ministério Público no procedimento colegial, verificamos que a lei impõe a sua intervenção e participação na elaboração do texto da deliberação, até à abertura do sub-procedimento «votação». Apesar de tal intervenção se encontrar circunscrita à sub-fase «discussão», não pode deixar de se afirmar o seu carácter co-constitutivo.
6. É manifesto que o Ministério Público não é juiz, por isso não tem virtualidade para integrar um tribunal colegial.
Pela Constituição, ao Ministério Público compete representar o estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (art.
219º, nº 1).
De acordo com o art. 69º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, as funções do Ministério Público, nos tribunais administrativos e fiscais, são as
(nº 1) de defender a legalidade e promover a realização do interesse público,
(nº 2) de representação judiciária do Estado no contencioso de acções, e (nº 3) de representação ou defesa de interesses de outras pessoas indicadas por lei.
Para tal, o Ministério Público «actua oficiosamente e goza dos poderes e faculdades estabelecidos nas leis de processo» – art. 71º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril.
Caso o Ministério Público intervenha em defesa da legalidade tem os poderes que cabem às partes, nomeadamente, aos recorrentes. Nos restantes casos de intervenção, mediante vista ou requerimento, o art. 27º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho, confere ao Ministério Público diversos direitos processuais.
Procurando sintetizar as atribuições do Ministério Público, temos funções de representação judiciária do Estado Administração Central, e de defesa judiciária de interesses alheios, aqui incluído o interesse público.
É de reter a expressão «o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade», constante do art. 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.
Assim, avança-se a ideia segundo a qual a audição do Ministério Público nas sessões do Tribunal Central Administrativo se desenrola em sede de defesa judiciária do interesse público, ou seja, o interesse público concretizado pela actuação das entidades públicas e questionado jurisdicionalmente.
7. Pode agora ajuizar-se da validade da audição do Ministério Público nas sessões do Tribunal Central Administrativo.
Porque a sessão não é pública, é impossível tal audição contextualizada pela possibilidade do contraditório, emanação do acesso ao tribunal e à justiça, mediante um processo equitativo (art. 20º, nº 4, da Constituição).
Como se refere em recente jurisprudência do Tribunal Constitucional – Acórdão nº 345/99, de 15.6.99 – o art. 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, «uma vez que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão», viola o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição. Estão aqui em causa «exigências de transparência ligadas ao correcto entendimento do princípio do contraditório», no sentido daquelas exigências serem «consequência do papel das aparências na apreciação do respeito pelo princípio do contraditório e, mais geralmente, do carácter equitativo do processo».
8. Assim sendo, e por violação do disposto nos arts. 20º, nºs 1 e 4, da Constituição, recuso a aplicação do disposto no art. 15º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho, na redacção do Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro.'
Notificada desta decisão, a representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo reclamou para a conferência, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1º, 9º, nº 2, e 111º, nº 2, da LPTA e
700º, nº 3, do Código de Processo Civil, invocando incompetência do relator para proferir a decisão, face ao disposto nos artigos 9º e 111º da LPTA, e sustentando a não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 15º da LPTA.
4. Por acórdão de 13 de Janeiro de 2000 (fls. 89 e seguintes), o Tribunal Central Administrativo indeferiu a reclamação do Ministério Público, mantendo o despacho reclamado, e considerou procedente a 1ª conclusão das alegações da recorrente.
Nestes termos, concedeu provimento ao recurso jurisdicional, revogando a sentença recorrida, e determinou o prosseguimento dos termos do processo.
5. Deste acórdão foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pela representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº
28/82, 'circunscrito à parte em que foi mantida a recusa de aplicação do artº
15º do DL nº 267/85, de 16 de Julho – decidida anteriormente no despacho de que o Ministério Público reclamou –, com fundamento em que esse normativo viola o disposto no artº 20º, nº 4, da CRP'. O recurso foi admitido por despacho de fls. 110.
6. Nas alegações que produziu no Tribunal Constitucional, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º - A intervenção do Ministério Público no julgamento dos recursos contenciosos, prevista no artigo 15º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, traduz o exercício de uma estrita tarefa de defesa objectiva da legalidade, actuando com[o] órgão de justiça na prossecução e tutela do ordenamento jurídico objectivo, pelo que é insusceptível de afrontar o princípio da igualdade de armas entre os litigantes.
2º - Tal intervenção não cria qualquer aparência fundada e razoável de quebra do carácter equitativo do processo, a qual só poderia assentar na errónea suposição de que tal intervenção processual se destinaria a facultar ao Ministério Público o prosseguimento do interesse público administrativo de que é titular [a] autoridade recorrida – em vez de se mostrar coligada à exclusiva tutela do interesse público na realização da justiça.
3º - Por força da regra do contraditório e da proibição da prolação de decisões-surpresa, resultante do estatuído no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil (subsidiariamente aplicável no domínio do processo administrativo contencioso), qualquer pronúncia ou opinião, de conteúdo inovatório, apresentada pelo Ministério Público e que o Tribunal entenda ser relevante para a decisão a proferir, deve ser necessariamente notificada às partes, sob pena de nulidade.
4º - Deste modo – e por força do citado nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil – a circunstância de as partes não assistirem à conferência não lhes preclude a oportunidade de se pronunciarem sobre quaisquer questões ou enquadramentos jurídicos inovatoriamente deduzidos pelo Ministério Público, aquando da intervenção processual prevista naquele artigo 15º.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Por sua vez, M. G. afirmou apenas que:
'1º A recorrente também considera que a norma do artº 15º do Decreto-Lei nº 265/85, de 16 de Julho (na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro), está ferida de inconstitucionalidade. Mas,
2º Salvo o merecido respeito, pelas razões e nos termos do douto acórdão nº 345/99 do Venerando Tribunal Constitucional [...].
3º Douto aresto em que, com a merecida vénia, se louva.'
II
7. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 15º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção decorrente do Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro), que o Tribunal Central Administrativo julgou inconstitucional e que, nos termos do artigo 204º da Constituição, se recusou a aplicar.
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão da conformidade constitucional dessa norma.
No acórdão nº 412/00, tirado em Plenário (publicado no Diário da República, II Série, nº 269, de 21 de Novembro de 2000, p. 18871 ss), o Tribunal Constitucional decidiu, por maioria, julgar inconstitucional a norma constante do artigo 15º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção decorrente do Decreto-Lei nº
229/96, de 29 de Novembro), por violação do direito a um processo equitativo, consignado no artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
III
8. Nestes termos, e em aplicação da jurisprudência firmada no acórdão nº
412/00, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida