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Processo n.º 295/2012
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objeto do mesmo.
Compulsados os autos, verifica-se que se não pode considerar ter sido previamente suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que integra o objeto do presente recurso, tal como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Com efeito, e ao contrário do que afirma o recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, em lugar algum das alegações do recurso interposto para o tribunal a quo vem suscitada uma questão de constitucionalidade normativa, não se podendo como tal considerar o teor das Conclusões A. a F., pois é manifesto que, em lugar de se questionar a conformidade com a Constituição de uma norma jurídica ou de determinada dimensão normativa reportada a um preceito legal (i. é a interpretação que, no caso concreto, foi dada pela decisão recorrida a determinado preceito legal), o vício de inconstitucionalidade é aí expressamente imputado ao próprio acórdão recorrido (pedindo-se inclusive, na Conclusão F., que o mesmo seja declarado inconstitucional e revogado).
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
O modo como o recorrente veio agora enunciar a questão de constitucionalidade no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional corresponde justamente ao modo como havia de ter suscitado a questão nas alegações de recurso para o tribunal a quo, só assim se podendo considerar cumprido o pressuposto de admissibilidade de recurso estabelecido no n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Tanto basta para que se não possa admitir o presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
“1. Antes de mais, aqui dá por integralmente reproduzida a fundamentação da decisão em crise por motivos de brevidade.
2. Começando antes de mais por lembrar que é na própria decisão sumária que, em “1 – Relatório - 2.” vem escrito:
“É do acórdão proferido em 19.10.2011, complementado com o acórdão de 04.01.2012... que é interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b), do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC). Através dele pretende o recorrente que o tribunal Constitucional “declare a norma do art. 374º, nº 1, ai. d) do CPP inconstitucional quando interpretada no sentido de que não fere o direito pleno de defesa e da publicidade da audiência no direito a quem lê a sentença a compreender o sentido e alcance das posições da defesa, através do incumprimento ostensivo da indicação sumária das conclusões contidas na contestação apresentada’ Entende o recorrente que tal norma, assim interpretada, viola os artigos 32°, n°1 e 206° da Constituição.”
3. Isto relembrado, cumpre agora reproduzir o que vem escrito em “II – Fundamentação
3. - 2°e 3°parágrafos”:
“…verifica-se que se não pode considerar ter sido previamente suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que integra o objeto do presente recurso, tal como é exigido pelo nº 2 do art. 72° da LTC.”
“ (...) em lugar algum das alegações do recurso interposto para o tribunal a quo vem suscitada uma questão de constitucionalidade normativa, não se podendo como tal considerar o teor das Conclusões A. a F., pois é manifesto que, em lugar de se questionar a conformidade com a Constituição de uma norma jurídica ou de determinada dimensão normativa reportada a um preceito legal (i. é a interpretação que, no caso concreto, foi dada pela decisão recorrida a determinado preceito legal), o vício de inconstitucionalidade é aí expressamente imputado ao próprio acórdão recorrido (pedindo-se inclusive, na Conclusão F., que o mesmo seja declarado inconstitucional e revogado)”.
4. Ora, do conjunto dos dois textos decorre uma certeza: o que o tribunal questiona é o modo como a questão formal da inconstitucionalidade da norma na interpretação que lhe foi emprestada foi colocada na motivação do recurso e nas respetivas conclusões.
5. Mas será isso suficiente para que, sem convidar o recorrente a clarificar a sua posição, se decida liminarmente pelo não conhecimento da substância? Não parece.
6. E pela razão mais simples. Não se trata de interpretação de uma norma do CPP que, proferida expressamente pelo tribunal a quo seja de imediato compreensível ao cidadão comum e a quem lê a sentença. Não.
7. Trata-se de uma interpretação inconstitucional da norma que decorre da omissão de cumprimento da mesma, o que dificulta sobremaneira, a explicitação da questão. Ou seja, tem que existir uma forma de impedir que a lei e os direitos e preceitos constitucionais sejam sistematicamente desrespeitados através de habilidosos e persistentes incumprimentos das normas adjetivas.
8. Mas assim mesmo e, no quadro da omissão relatada, foi exposta de forma suficientemente clara a sindicância da defesa, nas motivações do recurso e nas conclusões, bem como no requerimento de aclaração o que, aliás, a decisão sumária confirma quando, no relatório afirmou:
“…pretende o recorrente que o tribunal Constitucional
declare a norma do art. 374º, nº 1, al. d) do CPP inconstitucional quando interpretada no sentido de que não fere o direito pleno de defesa e da publicidade da audiência no direito a quem lê a sentença a compreender o sentido e alcance das posições da defesa, através do incumprimento ostensivo da indicação sumária das conclusões contidas na contestação apresentada “. Entende o recorrente que tal norma, assim interpretada, viola os artigos 32º, nº 1 e 206° da Constituição.”
7. Não é por conseguinte, correto afirmar que, no essencial e da forma possível, a questão não foi colocada. Porque o foi, na forma suficiente e adequada a ser compreendida, atento o contexto da não aplicação pelo tribunal a quo da norma processual que obriga no relatório da sentença a indicar sumariamente as conclusões aduzidas pela defesa na contestação.
8. Porque uma coisa é certa: se a norma ali consta, por alguma coisa será! E se não é cumprida, tem que ter consequências, não podendo ser encarada como inócua. Não sendo possível continuar nesta senda de impunibilidade de quem, suposto aplicar com rigor a lei, contribui, na prática, reiteradamente para a sua não aplicação efetiva.
9. Basta observar o que se passa todos os dias nos nossos tribunais em que, durante as audiências de julgamento, as portas são sistematicamente fechadas ao público, com as justificações mais ridículas e absurdas de incómodos, barulho ou de necessidades de segurança.
10. E compare-se com Países como a França, para que se verifique se tal é possível! Porque não é.
11. Mas é sobretudo injusto vir invocar a Conclusão vertida em F do modo como o fez, afirmando: ‘pedindo-se inclusive, na Conclusão F., que o mesmo seja declarado inconstitucional e revogado.” Porque não é isso que ficou escrito, mas sim outra coisa diferente:
“F. Devendo o acórdão ser declarado inconstitucional porque feriu através de uma interpretação restritiva e ilegal que efetivamente aplicou do conteúdo e finalidade do relatório da sentença o principio constitucional da publicidade do julgamento pelo que. deve ser revogado.”
12. Como é evidente, o sentido da afirmação vertida não pode ser compreendido senão como a revogação do acórdão, na parte e como resultado – o fruto direto – da declaração de inconstitucionalidade da norma na interpretação que foi feita e aplicada. Só nesse sentido.
13. Pois na verdade a inconstitucionalidade da norma na interpretação que foi aplicada pelo tribunal a quo através da omissão de cumprimento da norma processual obrigatória, só poderia ter como consequência a revogação do mesmo.
14. É por conseguinte injusto e, em todo o caso, não passando de mero pretexto, justificar o não conhecimento do recurso por esse único motivo puramente formal, no modo como a questão foi exposta. E não, porque não o tivesse sido.
15. Motivos aduzidos e pelos quais o reclamante tem interesse em que sobre a decisão de não conhecimento do recurso interposto e admitido recaia acórdão, sendo que, diga-se de passagem e uma vez mais, perante este Tribunal que, histórica e culturalmente, a afirmação persistente e auto justificadora do não conhecimento de um recurso apenas por mero motivo de modo insuficiente de exposição da questão em liça, é sempre um indício de aparente obscurantismo por contraposição à ciência jurídica e sobretudo à preocupação de fazer verdadeira... Justiça”.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio dizer o seguinte:
“1.°
Pela Decisão Sumária n.º 246/2012, não se tomou conhecimento do objeto do recurso porque durante o processo o recorrente não havia suscitado a questão de inconstitucionalidade que enunciara no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional.
2.°
Faltava, pois, um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70. ° da LTC.
3.°
Sendo a decisão recorrida o Acórdão da Relação de 19 de outubro de 2011, completado pelo Acórdão de 4 de janeiro de 2012, o momento processual próprio para suscitar a questão era a motivação do recurso interposto da decisão condenatória, proferida em 1.ª instância.
4.º
Vendo essa peça processual parece-nos evidente que ali não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como muito bem se conclui da douta Decisão Sumária.
5.º
Efetivamente, no texto da motivação desenvolve-se a matéria no ponto “a”,” Nulidade e inconstitucionalidade por incumprimento de preceito legal obrigatório”, mas não se enuncia uma questão de inconstitucionalidade normativa.
6.°
O mesmo se verifica nas conclusões, como expressamente se refere e demonstra na douta Decisão Sumária.
7.º
Quanto à necessidade e obrigatoriedade do cumprimento adequado do ónus da suscitação prévia, face ao sistema de recurso que vigora entre nós, no âmbito da fiscalização concreta de inconstitucionalidade, nada haverá a acrescentar ao afirmado na douta Decisão Sumária.
8.°
Apenas diremos que não tem sentido falar em inconstitucionalidade, como faz o recorrente na reclamação, porque, desde logo, tal requisito resulta da própria Constituição (artigo 280.º n.º 4), que também remete para a lei – que é a LTC – a regulamentação do regime de admissão do recurso.
9.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a rec1amação”.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Através da decisão sumária ora reclamada, o Tribunal Constitucional decidiu não conhecer do objeto do recurso com fundamento na falta de verificação do pressuposto processual de prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC.
Na reclamação apresentada, o reclamante contesta tal entendimento, entendendo que a questão de constitucionalidade que integra o objeto do recurso foi exposta de forma suficientemente clara nas motivações do recurso e nas conclusões das alegações do recurso para o tribunal a quo e ainda no requerimento de aclaração. Entende ainda o reclamante que, ainda que assim se não entendesse, deveria ter-se convidado o recorrente a clarificar a sua posição.
Não tem razão o reclamante.
O pressuposto processual de suscitação prévia da questão de constitucionalidade estabelecido no artigo 72.º, n.º 2 da LTC exige que a questão seja suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, o que se justifica por forma a que, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional intervenha enquanto tribunal de recurso, consistindo tal intervenção em uma reapreciação do decidido quanto à questão de constitucionalidade. Para que tal aconteça, exige-se que quem pretenda, posteriormente, aceder ao Tribunal Constitucional, tenha já suscitado a questão perante o tribunal que profere a decisão de que se recorre.
No caso dos autos, o momento processual próprio para suscitar a questão de constitucionalidade teria sido nas alegações do recurso interposto para o tribunal a quo, para o efeito não relevando o conteúdo do incidente pós-decisório.
Ora, como ficou demonstrado na decisão sumária, que, aliás, reproduziu na íntegra as conclusões das alegações do recurso para o tribunal a quo, não se encontra aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, sendo o vício de inconstitucionalidade aí imputado à própria decisão. O mesmo se verifica no que respeita à motivação das alegações.
Também não tem razão o reclamante ao sustentar que deveria ter-se convidado o recorrente a clarificar a sua posição.
Estando expressamente consagrado nos n.os 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, o convite ao aperfeiçoamento só se justifica naquelas situações em que a apreciação liminar sobre a verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso se vê impossibilitada face à escassez de elementos fornecidos pelo recorrente no seu requerimento de interposição do recurso. Já naquelas situações em que, face ao teor do requerimento apresentado, se dispõe de elementos suficientes para a apreciação liminar, tal convite ao aperfeiçoamento não tem justificação, porquanto, perante a imediata falta de verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, nada que o recorrente possa vir a dizer em resposta a um eventual convite ao aperfeiçoamento, lhe aproveita, revelando-se assim inútil a formulação desse convite. Ora, é justamente esta última situação que se verifica no presente caso. Ao fazer a apreciação liminar, o relator no Tribunal Constitucional chegou à conclusão de que não se verificava um dos pressupostos de admissibilidade do recurso – o da prévia suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC.
III – Decisão
5. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de junho de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.