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Processo nº 39/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional,
'ao abrigo do disposto nos artºs 70º, nº 1, al. a), 72º, nºs 1, al. a) e 3, 75º, nº 1 e 75º/A, nº 1 da Lei nº 28/82, de 19/11', do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (4ª Secção), de 4 de Novembro de 1998, 'porquanto foi declarado inconstitucional o parágrafo 1º do artº. 65º do CIC'. Na verdade, nesse aresto, acolhendo-se a pretensão do recorrente e ora recorrido J..., com os sinais identificadores dos autos, acordou-se:
'a) em julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição, o § 1º do art. 65º do CIC, na medida em que restringe os juros indemnizatórios a favor do contribuinte apenas às situações em que haja, na liquidação, erro de facto imputável aos serviços; b) em reconhecer, no caso, serem devidos juros indemnizatórios ao recorrente; c) em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente, revogando-se a sentença, na parte em que não considerou a sua pretensão quanto a juros indemnizatórios'. O acórdão recorrido, depois de definir que a 'questão a decidir é se o recorrente tem direito a juros indemnizatórios', tratou a matéria em causa com o seguinte discurso:
'Está hoje em vigor o art. 24º do CPT, que dispõe haver lugar a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial se determine que houve erro imputável aos serviços (n. 1), ou quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos impostos, também por motivo imputável aos serviços (n. 2). Quer dizer, hoje há lugar a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando se determine que houve erro imputável aos serviços, quer se trate de um erro de facto, quer se trate de um erro de direito. Porém, esta norma não tem aplicação à hipótese dos autos, pois a questão sob apreciação ocorreu em momento anterior à vigência do CPT.
É certo que o art. 2º, n. 1, do Dec.-Lei n. 154/91, de 23/4 (que aprovou o CPT), estatuiu que tal Código entraria em vigor em 1/7/89, aplicando-se aos processos pendentes, em tudo que não fosse contrariado por tal Dec.-Lei. Porém, e como é orientação reiterada deste Tribunal, tal preceito deve considerar-se reportado às normas de natureza adjectiva e nunca às normas de natureza substantiva. Daqui decorre que a norma a atender é a do art. 65º, § 1º, do CIC, que dispõe:
'Contar-se-ão juros de 18% ao ano a favor do contribuinte sempre que, estando pago o imposto, a Fazenda seja convencida, em processo gracioso ou judicial, de que na liquidação houve erro de facto imputável aos serviços. Deverá esta disposição ser interpretada no sentido de se restringir ao erro de facto imputável aos serviços (como decorre expressamente da letra da lei) o direito ao ressarcimento, por parte deste, através dos competentes juros indemnizatórios? Diga-se desde já que não se aceita a construção jurídica engendrada pelo recorrente à volta do art. 65º, § 1º do CIC. Como vimos, defende o recorrente que a expressão erro de facto deve ser entendida como erro efectivamente imputável aos serviços, abrangendo pois qualquer tipo de erro, seja de facto, seja de direito. Mas tal interpretação não colhe, como anota o EPGA, ao reportar-se ao art. 44º do CIC, no qual se faz referência expressa a erros de facto ou de direito. De cotejo de ambas as disposições se pode depreender que o legislador quis realmente restringir, no art. 65º, § 1º, do CIC, o direito, por parte do contribuinte, a juros indemnizatórios, no caso de estar em causa um erro de facto imputável à Fazenda Pública. Mas será que este preceito (interpretado, como vimos, no sentido de consagrar o direito, por parte do contribuinte, a juros indemnizatórios, apenas no caso de erro de facto - na interpretação acima descrita - imputável à administração) viola qualquer norma constitucional? O recorrente sustenta que sim, adiantando que uma tal interpretação (a seu ver restritiva) viola os artºs 1º, 2º, 266º, n. 2, lO6º e 22º, todos da CRP. Vejamos então. Como é bom de ver, não se entende qual a razão por que o legislador consagra o direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte se o erro for de facto, mas já não assim se se estiver perante um erro de direito. Como bem refere o EPGA, 'perante uma norma que tem por objectivo compensar um particular dos prejuízos que provavelmente suportou devido a uma actuação lesiva imputável à administração o que releva para averiguar se há ofensa do princípio da igualdade é verificar se há identidade de lesão'. Ora, como é óbvio, há identidade de lesão quando o contribuinte sofre prejuízos, quer seja por um erro de facto, quer seja por um erro de direito. Assim, a norma que atribui juros indemnizatórios ao contribuinte apenas quando há erro de direito da administração e já não quando há erro de facto da administração, é uma norma puramente arbitrária. Logo inconstitucional, por violação do princípio de igualdade, previsto no art. 13º da Constituição. Por outro lado, o próprio Código trata de uma forma diversa a administração e o contribuinte. Na verdade, dispunha o art. 38º do citado CIC:
'Sempre que, por facto imputável ao contribuinte, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, a este acrescerá o juro de 24% ao ano...' A lei não distingue aqui entre erro de facto e erro de direito, devendo interpretar-se esta disposição como abrangendo qualquer espécie de erro, quer de facto, quer de direito. Ora, daqui decorre, como imanência do princípio de igualdade, que sendo, como são, devidos juros indemnizatórios ao Estado por erro de direito imputável ao contribuinte, devem ser igualmente devidos juros indemnizatórios ao contribuinte quando, estando pago o imposto, ocorrer erro de direito imputável aos serviços. Assim sendo, o § único do art. 65º do CIC, na medida em que restringe os juros indemnizatórios devidos ao contribuinte apenas em caso de haver erro de facto na liquidação imputável aos serviços, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
É assim de desaplicar tal preceito'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público recorrente:
'1º - A norma que constava do artigo 65º, § 1º do Código do Imposto de Capitais, na interpretação que restringe o direito do contribuinte a haver juros moratórios apenas às situações em que o acto tributário tenha na sua base um erro de facto imputável aos serviços – excluindo-o quando tal se deva a manifesto erro de direito imputável à Administração Fiscal – traduz consagração de solução legislativa arbitrária e desrazoável, como tal violadora do princípio constitucional da igualdade.2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'..
3. O ora recorrido não apresentou alegações.
4. Tudo visto cumpre decidir. A norma já transcrita e desaplicada no acórdão recorrido, do § 1º do artigo 65º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 197/82, de 21 de Maio, restringia o crédito de juros indemnizatórios à situação de verificação de 'erro de facto imputável aos serviços' (o direito a tais juros está reconhecido no artigo 30º, nº 1, e), do Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, que aprovou a lei geral tributária). Decorre do seu teor literal que a interpretação a seguir deve reportar-se exclusivamente ao erro sobre elementos de facto e não ao erro de direito
(interpretação e aplicação perfilhadas pelas instâncias). O que, aliás, bem se compreende. Na verdade, constata-se que o artigo 44º do mesmo Código faz referência expressa a 'erros de facto ou de direito' e que o artigo 38º do mesmo, no que concerne a juros a favor da Fazenda, por erro imputável ao contribuinte, não faz qualquer restrição ao erro de facto O mesmo sucede em vários outros Códigos, que contêm normas paralelas, em que há uniformidade na referência ao 'erro de facto' como suporte da contagem de juros a favor do contribuinte e omissão de qualquer referência desse tipo quanto à contagem de juros a favor da Fazenda, para além da indicação cumulativa do 'erro de facto ou de direito' no que concerne à efectivação de liquidação adicional; por exemplo, tal sucede com artigos 36º, 38º, § 1º e 57º, § 1º do Código do Imposto Profissional, artigos 42º, 44º e 62º, § 2º do Código do Imposto Complementar, artigos 90º, 93º e 140º, § 1º do Código da Contribuição Industrial, artigos 239º, 241º e 293º, § 1º do Código da Contribuição Predial, e artigos 26º, 29º, 45º, § 1º do Código do Imposto de Mais-Valias. Estas normas levam a concluir, desde logo, que, quando o legislador pretende referir-se a erros de facto e de direito, refere-o expressamente, pelo que, perante uma referência apenas a erro de facto, não será viável, em termos de razoabilidade, concluir que se pretende abranger também os erros de direito. Sendo isto assim, e perante tal interpretação, a norma questionada patenteia um vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição. E, talqualmente fez o Ministério Público nas suas alegações, é de aderir ' inteiramente à argumentação expendida no douto acórdão recorrido, já que efectivamente a norma que constitui objecto do presente recurso – quando interpretada restritivamente, em termos puramente literais, de modo a excluir qualquer direito do contribuinte a juros moratórios quando haja ocorrido manifesto erro de direito da Administração Fiscal na liquidação do imposto de capitais, demonstrado em processo gracioso ou judicial – viola, de forma gravosa e desproporcionada, o princípio da igualdade, constituindo solução legislativa arbitrária e, portanto, viciada de evidente inconstitucionalidade'.
'Na verdade, tal interpretação - acrescenta ainda o Ministério Público - traduz-se em privar o contribuinte de qualquer ressarcimento, relativamente ao atraso na restituição de quantias ilegalmente arrecadadas pelo Estado, com base no tipo de erro que esteve subjacente à indevida liquidação do imposto: sendo inquestionável que ocorreu erro manifesto, exclusivamente imputável à Administração Fiscal, não se vê efectivamente qualquer razão ou fundamento material que leve a desconsiderar, para tal efeito, o erro manifesto de direito, relativamente ao erro sobre a matéria de facto imputável aos serviços'. Assinale-se, aliás, que o erro de direito tanto pode ser praticado pela Administração Fiscal, como pelo próprio contribuinte, nomeadamente nos casos em que proceda a auto-liquidação, sendo certo que só ao contribuinte é imposta a obrigação de pagar juros indemnizatórios, nos termos legais. Está tudo dito no acórdão recorrido, não se impondo mais considerações (diga-se apenas que a solução do questionado § 1º do artigo 65º está hoje ultrapassada pelas regra do artigo 24º do Código de Processo Tributário, como também se regista no acórdão).
5. Termos em que, DECIDINDO: a) julga-se inconstitucional o artigo 65º § 1º, do Código do Imposto de Capitais, na parte em que exclui o direito do contribuinte a juros indemnizatórios quando haja ocorrido manifesto erro de direito da Administração Fiscal. b) e, em consequência, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 24 de Novembro de 1999 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida