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Proc. nº 53/98
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - C... foi condenado, em processo comum, no Tribunal de Círculo de Vila do Conde, por acórdão de 4 de Dezembro de 1996, como autor de um crime previsto e punido pelo artigo 37º, nºs. 1 e 3, do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de Janeiro, na pena de 3 anos de prisão e 100 dias de multa, à taxa diária de
10.000$00, ou, em alternativa, em 66 dias de prisão, e, bem assim, condenado na restituição ao Estado da importância de 71.893.296$00, ao abrigo do artigo 39º do mesmo diploma legal.
Foi, no entanto, suspensa a execução da pena, pelo período de dois anos e meio, sob condição de proceder à efectiva reposição integral da referida importância em dinheiro, no prazo de doze meses.
O arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, nas respectivas alegações, suscitado a questão de inconstitucionalidade daquele artigo 37º, na interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, implicando uma interpretação extensiva do preceito, 'violadora dos princípios da tipicidade, proporcionalidade, danosidade social, subsidariedade e fragmentaridade do direito penal, isto é, uma interpretação inconstitucional do preceito, por ofensiva do disposto nos artigos 29º, nº1, e 18º, nº 2, CRP'
(Constituição da República Portuguesa).
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 6 de Novembro de 1997, negou provimento ao recurso, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
2. - Inconformado, o arguido interpôs deste aresto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade (da norma) do artigo 37º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na interpretação adoptada no acórdão impugnado, 'de considerar abrangidas pela norma as hipóteses em que não ocorre a frustração da concretização dos programas que, relativamente às acções promovidas no âmbito do Fundo Social Europeu, determinaram a outorga do subsídio' - interpretação essa
'de natureza extensiva e violadora dos princípios da tipicidade, danosidade social, subsidariedade e fragmentaridade do direito penal, e, por essa via, dos artigos 29º, nº 1, e 18º, nº 2, CRP'.
Admitido o recurso, alegaram o recorrente e o Ministério Público, como recorrido.
O primeiro concluiu assim:
'1.- O tipo legal de crime previsto no artº 37º, nº 1 do DL 28/84, de 20 de Janeiro, só é preenchido se e quando se frustra a concretização dos programas que determinaram a outorga do subsídio. Ora,
2.- no caso vertente a formação profissional que justificou a atribuição do subsídio supostamente desviado foi executada, com qualidade, nos moldes acordados com o FSE.
3.- apenas se imputando ao Recorrido o comportamento ilícito de ter atribuído à acção despesas e montantes arbitrariamente pré-ordenados ao limite do orçamento aprovado, sem qualquer correspondência com os reais custos suportados.
4.- A inclusão deste comportamento no âmbito do citado artº 37º, nº 1, implica uma interpretação extensiva do preceito, violadora dos princípios da tipicidade, proporcionalidade, danosidade social, subsidaridade e fragmentaridade do direito penal e ainda do princípio non bis in idem.
5.- Assim interpretada, com tão lata extensão, essa norma é inconstitucional, por ofensiva do disposto, entre outros, nos artºs. 29º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa,
6.- nomeadamente porque quer o direito comunitário quer o direito nacional (este pela previsão directa do caso e pelo que resulta de lugares paralelos) prevêem sanções de outra natureza diferente da criminal para as condutas agora tidas em consideração.'
Por sua vez, o magistrado do Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1. O interesse público da 'correcta aplicação de dinheiros públicos' exige a tipificação legal, no plano da criminalidade económica, de condutas eticamente censuráveis;
2. O juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, só devendo censurar-se as soluções legislativas que forem manifestamente excessivas;
3. Haverá, assim, que concluir que a norma constante do artigo 37º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, não se mostra violadora das normas constitucionais invocadas pelo recorrente;
4. Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade a apreciação da norma do nº 1 do artigo 37º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro - na interpretação enunciada - a qual, inserida no diploma que alterou o regime em vigor em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública, dispõe assim:
'1.- Quem utilizar prestações obtidas a título de subvenção ou subsídio para fins diferentes daqueles a que legalmente se destinam será punido com prisão até
2 anos ou multa não inferior a 100 dias.'
Pretende-se, com esta incriminação tutelar criminalmente a fraude na obtenção de créditos, dada não só a gravidade dos efeitos da correspondente actuação como a necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas, até então ignorados pela nossa ordem jurídica - como se lê no preâmbulo do diploma.
No caso vertente, defende-se que foi dada à norma transcrita, na sua aplicação, uma interpretação materialmente lesiva do princípio constitucional ínsito no nº 1 do artigo 29º da CR - que assenta na congregação dos princípios da legalidade, da tipicidade e da não retroactividade
-, do mesmo passo que viola o nº 2 do artigo 18º do mesmo texto, na medida em que a restrição legítima dos direitos, liberdades e garantias só encontra justificação na salvaguarda de um outro direito ou interesse legalmente protegido.
Com efeito, alega-se, o crime em causa, de desvio de subsídio, sendo um crime de dano, pressupõe a lesão efectiva de um específico bem jurídico, só valendo como conduta típica o comportamento que inequivocamente consume esse sacrifício do bem jurídico - o qual consiste no subsídio ou subvenção enquanto instituição, isto é, como instrumento fundamental de conformação da economia pelo Estado, e, para além disso e sobretudo, as próprias metas da política económica pré-definidas e almejadas pelo legislador (cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, in – 'Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado', publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, tomo III, págs. 337 e segs.).
Ora, entende o recorrente, tendo sido realizada a formação profissional especificamente subsidiada, 'é absurdo falar-se de desvio de subsídio, maxime se a formação se cumpriu nos moldes acordados com a entidade que concedeu o subsídio' - sob pena de se adoptar uma interpretação extensiva do preceito, feridente não só da tipicidade exigida pelo nº 1 do artigo 29º da CR, como da proporcionalidade implícita no nº 2 do artigo 18º da CR (com as subvertentes de 'danosidade social, subsidariedade/última ratio e fragmentaridade do direito penal').
Mais ainda, nesse âmbito aplicativo surpreende-se igualmente violação do princípio non bis in idem, reforçativa da tese de inconstitucionalidade defendida, uma vez que se retira do artigo 39º do Decreto-Lei nº 28/84, intimamente conexionado com o artigo em sindicância, existirem outros textos legais que prevêem funções de natureza diferente da criminal para uma conduta como a imputada ao arguido - como, v.g., os Decretos-Leis nºs 132/83, de 18 de Março, 75-A/91, de 15 de Fevereiro, 246/93, de 8 de Julho e 289/92, de 26 de Dezembro - ou, no próprio direito comunitário, o artigo 6º do Regulamento CEE nº 2950/83, do Conselho, de 17-10-83, que aplica a Decisão 83/516/CEE, relativa às funções do FSE, e que prevê, como única sanção para a prática de irregularidades na utilização das contribuições do Fundo, a sua suspensão, quando ainda não pagas, e a sua repetição, nos casos em que já tenha havido pagamento.
2. - O acórdão recorrido viu-se confrontado com esta posição do recorrente que já então a expusera.
E, a este respeito, afastou a invocada tese de inconstitucionalidade, em termos que não deixarão de ser transcritos.
Escreveu-se, a esse propósito, nomeadamente:
'Ora, consta do preâmbulo do DL nº 28/84, nº 6, alínea l), que o interesse protegido é o da correcta aplicação dos dinheiros públicos e os fins dos subsídios referidos no artigo 37º daquele diploma legal são fixados pelas normas emanadas das entidades que concedem os ditos subsídios, isto é, o Fundo Social Europeu e o Estado Português. Resulta do artigo 3º da Decisão 83/516/CEE que os pedidos de contribuição do Fundo Social Europeu devem ser apresentados por meio de formulário que figura no anexo I daquela Decisão. Tal formulário não é mais do que um programa detalhado das acções de formação a realizar, exigente na sua execução, uma vez que por força do artigo 6º do Regulamento da CEE nº 2950/83, de 17-10-93, que aplica a referida Decisão nº
83/516/CEE, «as somas que não tenham sido utilizadas nas condições fixadas pela decisão de aprovação dão lugar a restituição, sendo o Estado membro em causa responsável, subsidiariamente, pelo reembolso das somas pagas indevidamente». Do que fica dito se infere que a entidade que beneficiou do subsídio, não o utilizando nas condições fixadas, apropriando-se dele, comete o crime p. e p. pelo artigo 37º, nº 1, do DL nº 28/84. No caso em apreço resulta dos factos provados que o arguido determinou levar a cabo a apropriação de parte substancial do subsídio que pedira ao Fundo Social Europeu e ao Estado Português. Para isso requereu os subsídios para a formação a realizar pela sua firma
'Plano' e, seguidamente, celebrou um contrato de prestação de serviços com a firma 'LO & O' ['Lopes de Oliveira & Oliveira'], da qual ele próprio era sócio gerente. Por força desse contrato a esta última firma, obrigava-se a dar ela formação profissional que originava a concessão do subsídio mediante o preço de custo/hora de Esc. 3.600$00, sendo o valor do contrato de Esc. 275.400$00. Mas, confrontando o teor desse contrato com o teor do pedido de contribuição, verifica-se que o primeiro é genérico, inexistindo qualquer identificação como segundo. Por isso, o arguido preencheu o questionário a que atrás se alude de forma arbitrária, no que respeita aos indicados preços custo/hora, de molde a encontrar um saldo equivalente ao preço aceite pelo Fundo Social Europeu, mas sem que houvesse, findos os custos, qualquer confirmação da sua realização.'
Ainda segundo o aresto recorrido, não está em causa a realização de contrato de prestação de serviços, desde que este obedeça aos termos do despacho do Director do Departamento para os Assuntos do Fundo Social Europeu (DAFSE), de 13-4-87, e no contrato se identifiquem, com precisão, os serviços a prestar, os fornecimentos, os montantes em causa, as datas de pagamento e as condições técnicas e pedagógicas da sua efectivação.
Com tudo isto, mais se pondera, 'quer-se significar que o contrato deveria obedecer a requisitos precisos que permitissem ao Estado Português controlar a acção de formação de acordo com o compromisso assinado pelo arguido'.
'No caso em apreço vem provado que a firma 'Plano' suportou custos de Esc.
34.793.858$00 e a firma 'LO & O' suportou custos de Esc. 72.857.298$00, e que o pedido do pagamento do saldo ascendeu ao montante de 308.760.665$00, recebendo a título de adiantamento Esc. 168.893.286$00, o que significa que daqueles mencionados montantes resultou uma diferença de Esc. 71.893.286$00, da qual o recorrente se apropriou ilicitamente. Ora, estatuindo o artigo 37º que será penalizado quem utiliza as prestações obtidas a título de subsídio para fins diferentes daqueles a que legalmente se destinam, os factos dos autos e a consequente conduta do arguido enquadram-se naquele tipo legal de crime. Deste modo, não se alcança que, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o Tribunal Colectivo tenha feito uma interpretação extensiva daquele preceito
(artigo 37º), violando, assim, o princípio constitucional consagrado nos artigos
29º, nº 1, e 18º, nº 2, da CRP.'
3. - A norma sob sindicância já tem sido objecto de julgamento por parte do Tribunal Constitucional, se bem que nem sempre sob a mesma perspectiva.
3.1. - Foi assim que, tendo sido oportunamente alegado excesso de autorização do Decreto-Lei nº 28/84 - emitido no uso da autorização legislativa emanada da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, na parte respeitante à definição dos crimes e à fixação das penas a que se reportam as normas dos artigos 36º e 37º daquele primeiro diploma -, se colocou o problema da respectiva inconstitucionalidade orgânica que o Tribunal sempre julgou no sentido da não verificação desse vício.
Nesta conformidade se pronunciaram os acórdãos nºs.
213/95 e 302/95, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Junho e
29 de Julho de 1995, respectivamente, além de vários outros, não publicados
(caso dos acórdãos nºs. 214/95, 707/95, 162/96, 959/96 e 53/98).
Entendeu-se, então, que o Governo, ao prever os novos tipos de crimes como o do artigo 37º, utilizou correctamente a autorização que a Assembleia da República lhe concedeu, para tipificar novos ilícitos penais, definir novas penas ou modificar as vigentes, tomando, para o efeito, como ponto de referência a dosimetria do Código Penal (cfr. o artigo 1º da Lei nº 12/83), e actuou em correspondência com o fim parlamentarmente assinalado de obter uma
'maior eficácia [...] na prevenção e repressão deste tipo de infracções' [cfr. artigo 4º, alínea a), da mesma Lei], não se vendo, de resto, como se escreveu no citado acórdão nº 302/95, 'melhor maneira de dar resposta à necessidade que se fazia sentir na comunidade de proteger o interesse público da «correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas» do que criar aqueles novos tipos de crime'.
Assim, vem-se entendendo não ter o Governo excedido, nem desrespeitado, o objecto, o sentido ou o âmbito da autorização, antes os tendo cumprido, não ocorrendo, por isso, violação do artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição.
3.2. - É outro, no entanto, o enfoque do problema de constitucionalidade equacionado pelo recorrente, apresentado, de resto, em duas distintas vertentes que merecerão sortes diferentes e, como tal, serão separadamente tratadas.
3.2.1.- Na verdade, o recurso não é de conhecer na medida em que se pretende nele discutir o acerto da decisão do Supremo Tribunal de Justiça enquanto considerou os factos tidos como provados nos autos e julgou a essa luz a conduta do arguido, subsumindo uns e outra à previsão normativa do artigo 37º, em termos que ora se pretende reapreciar: defende o recorrente que o tipo legal em causa só é preenchido se e quando se frustra a concretização dos programas que determinarem a concessão do subsídio, o que, in casu, não se teria verificado.
Com efeito, não se integra no poder de cognição do Tribunal Constitucional a valoração jurídico-penal dos factos pertinentes, não lhe cabendo emitir qualquer juízo de censura a esse respeito, uma vez que o controlo por si exercido, de matriz jurídico-constitucional, é circunscritamente normativo, não recaindo sobre a decisão judicial, em si mesma considerada.
Ou seja, e por outras palavras, não se vai apreciar, neste recurso - pelo que, nesta parte, o seu objecto não é de conhecer - a verificação da factualidade típica.
3.2.2.- Nem se diga, a este propósito, que a aplicação da norma ocorreu mediante uma interpretação extensiva constitucionalmente censurável.
É que, independentemente de saber se entra nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional averiguar a ocorrência de uma interpretação desse tipo à luz do princípio da tipicidade, a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça deu à norma do nº 1 do artigo 37º uma interpretação que decorre directa e explicitamente do respectivo teor literal, segundo a qual
é punível criminalmente a utilização das prestações obtidas a título de subvenção ou subsídio para fins diferentes daqueles a que legalmente se destinam
- e considerou, a essa luz, verificados os elementos típicos da norma incriminadora.
Finalmente, observe-se que, no estudo de Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, trazido à colação pelo recorrente, não é afastada a incriminação típica da lesão efectiva de bens jurídicos que integram o direito penal económico mas tão só se questionam práticas susceptíveis de serem levadas à conta de desvio de subsídio ou de fraude na obtenção do subsídio. Só que essa qualificação encontra-se feita, no concreto caso, e dela não cura o Tribunal Constitucional, como, aliás, se ponderou no acórdão nº 1142/96, inédito.
3.3. - Há, porém, outro aspecto a considerar.
É que o recorrente questiona ainda a constitucionalidade da norma por violação dos princípios da proporcionalidade, danosidade social, subsidariedade e fragmentaridade do direito penal e ainda do princípio non bis in idem.
Ora, a este respeito, importa relembrar que, na incriminação por desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, está em causa o êxito dos programas que o Estado se propõe levar a cabo, pelo que uma incorrecta aplicação dos dinheiros públicos pode comprometer ou mesmo frustrar o interesse público subjacente. A medida justifica-se pela gravidade dos efeitos dessa aplicação e pela necessidade de se proteger o interesse do correcto emprego dos dinheiros públicos nas actividades produtivas, como se realça no ponto 6 da nota preambular ao Decreto-Lei nº 28/84 e tem sido destacado pela jurisprudência deste Tribunal, ao analisar a questionada norma, se bem que em resposta a problemática diversa - como é o caso, entre outros, dos citados acórdãos nºs. 213/95 e 302/95.
Como se observou noutro aresto já mencionado, o nº
1142/96, 'se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] «o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)», (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
«É evidente - lê-se no citado acórdão nº 634/83 - que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo
âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva»'
Não se crê que a norma em sindicância coenvolva uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR, ou, tão pouco, que importe 'danosidade social' a exigência de utilização vinculada dos meios financeiros concedidos exclusivamente para a execução de programas nessa medida e enquanto tais a eles concretamente afectados.
Pois bem, sublinhou-se na decisão ora recorrida a passagem do preâmbulo do Decreto-Lei nº 28/84 onde a tipificação das condutas que passaram a ser tuteladas criminalmente se justifica pela necessidade de proteger o interesse público que a 'correcta aplicação dos dinheiros públicos' encerra, nesse tipo de actuação.
E, na verdade, verificada a insuficiência da lei civil para controlar os interesses em jogo, surgiu, naturalmente, a necessidade de tipificar legalmente, no plano da criminalidade económica, as condutas eticamente censuráveis, dando-se, assim, combate às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos que integram o direito penal económico, como se escreve, a certo passo, no acórdão nº 1142/96, citado, a propósito das chamadas
'irregularidades' nos subsídios do Fundo Social Europeu, um trabalho de Pedro Verdelho, publicado na Revista do Ministério Público, nº 66, págs. 61 e ss. ('As chamadas «irregularidades» nos subsídios do Fundo Social Europeu são crime ou apenas constituem ilícito civil?').
Ora, não contendo o texto constitucional uma qualquer proibição de criminalização e conhecendo a necessidade experimentada em Estado de direito de proteger penalmente os bens e interesse jurídicos essenciais ao viver em comunidade, a liberdade de conformação do legislador ordinário só conhecerá limitação, nesta perspectiva, se se representar como manifestamente excessiva a punição criminal encontrada.
O que significa que a existência de instrumentos legais disciplinadores da matéria de concessão de subsídios concedidos pelo Fundo Social Europeu, sancionando civil ou administrativamente as referidas
'irregularidades' - globalmente consideradas -, não significa, nem exclui, que certos desses 'desvios' tenham merecido do legislador ordinário uma sanção mais severa, do foro criminal, uma vez tipicizados os respectivos comportamentos.
O facto de o direito comunitário prever sanção diferente para a prática de irregularidades na utilização das contribuições do FSE - suspensão, redução ou supressão, quando ainda não estejam pagas, a sua repetição, nos casos em que já tenha havido pagamento - pode significar que o legislador nacional não qualifique como penalmente ilícitas as correspondentes condutas exigidas ou autorizadas por aquele direito, mas não exclui, em princípio, que os Estados membros punam actuações que tenham por ilícitas, o que
é substancialmente distinto, como, aliás, se fez notar no acórdão nº 440/97, inédito.
3.4. - Por outro lado, com a interpretação dada à norma tão pouco se desenha violação do princípio non bis in idem, cuja contrariedade depende da identidade do bem jurídico tutelado por normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas, como se observou recentemente no acórdão nº 244/99, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Julho
último. Com efeito, não se vê que à prática da infracção em causa corresponda uma plúrima aplicação de sanções jurídico-penais, sendo certo que os lugares legislativos convocados pelo recorrente, nas suas alegações, se situam em planos diferenciados (assim, v.g., o caso Decreto-Lei nº 132/83, de 18 de Março, ao regular o regime de incentivos fiscais e financeiros ao investimento, revogando o regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 194/80, de 19 de Junho; do Decreto-Lei nº 75º-A/91, de 15 de Fevereiro, ao aprovar o sistema de incentivos à modernização do comércio; do Decreto-Lei nº 289/92, de 26 de Dezembro, ao prever a resolução dos contratos, nomeadamente por não cumprimento dos objectivos e obrigações aí estabelecidos ou pelo não cumprimento atempado das obrigações fiscais por parte da empresa promotora ou, ainda, pela prestação de informações falsas sobre a situação da empresa ou viciação de dados fornecidos na apresentação e apreciação e no acompanhamento dos projectos; do Decreto-Lei nº
246/93, de 8 de Junho, situado na mesma área e de outros, que nada têm a ver com o bem jurídico tutelado especificamente pela norma do questionado artigo 37º).
III
Em face do exposto, decide-se:
a) não conhecer do recurso, enquanto se pretende reapreciar o anteriormente decidido em sede da valoração jurídico-penal oportunamente feita;
b) no mais, negar provimento ao recurso. Lisboa, 9 de Novembro de 1999 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa