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Processo nº 506/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J... e A..., soldados da Guarda Fiscal, com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'nos termos da al. b) do nº 1 do artº 70º, da Lei nº28/82 de 15/11 na redacção dada pela Lei nº
85/79, de 7/9', do acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 12 de Março de 1998, que negou provimento ao recurso jurisdicional por eles interposto, confirmando, 'em consequência, o acórdão da 1ª Subsecção datado de 11.5.95', pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 9º do Dec. Lei 386/76 de 22/5, alterado pelo artº 2º do Dec.Lei 40/82 e outros direitos constitucionais'. Posteriormente, a convite do Relator, vieram esclarecer o seguinte:
'1. Pretendem que seja apreciada a norma do nº 2º do artº 9º do Dec. Lei 386/76, de 22/5 e a que lhe deu nova redacção pelo artº 2º do Dec. Lei 40/82. Tendo em conta nomeadamente, o conteúdo do artº 60º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal, aprovado pelo Dec. Lei 374/85, de 20 de Setembro.
2. Foram violados os princípios previstos nos artºs 13º, 18º, 115º e 122º da C.R.P.
3. As inconstitucionalidades foram alegadas em todas as peças processuais pelos recorrentes, especialmente, nas alegações para o Supremo Tribunal Administrativo nos nºs 22 a 30 e nas conclusões 13ª a 19ª'.
2. Nas suas alegações os recorrentes vieram sustentar que o 'Douto Acórdão Recorrido violou por erro de interpretação e de aplicação o disposto nos artºs
13º, 18º, 20º, 115º e 122º da CRP, 12º do CPC, artº 60º e 61º do EMGF, Dec. Lei
85/91 e Dec. Lei 374/85, de 20 de Setembro', acrescentando: 'por evidente inconstitucionalidade das normas infringidas'. Dessa peça processual, aliás, menos clara e explícita do que as alegações apresentadas perante o tribunal a quo, pode respigar-se o seguinte, com interesse para o caso:
- no preâmbulo do Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro, 'pretende-se retirar o que tinha sido concedido a sargentos e soldados, anteriormente', e, 'ao retirar-se a uns, o que foi dado a outros elementos em igualdade de circunstâncias, é manifesto que esses foram prejudicados e os outros beneficiados, o que é inconstitucional, por colidir com o princípio da igualdade, previsto no artº 13º da CRP, o que para os devidos efeitos se alega'.
- 'No âmbito do artº 9º do Dec. Lei 386/76, de 22 de Maio, aos recorrentes foi-lhes baixado o escalão, o que afectou a sua retribuição, que lhes tinha sido atribuído por diploma legal'.
- 'Com efeito, foram afectados os direitos adquiridos dos recorrentes'.
- 'Com efeito, os recorrentes foram discriminados, prejudicados, enquanto outros portugueses, com funções idênticas e no âmbito de funcionários públicos foram beneficiados, o que tipifica e afecta o princípio da igualdade, previsto no artº
13º da C.R.P.' e a 'afectação desse princípio é inconstitucional, o que para todos os efeitos se alega'.
- 'Por outro lado, não só foi violado o artº 13º da C.R.P., como também os artºs
18º, 115º e 122º do mesmo Código, como se alegará'.
- finalmente, ' Douto Acórdão Recorrido vedou o acesso ao direito, ao julgar válido o cálculo de uma pensão com base numa norma revogada, o que é do conhecimento oficioso, constitui uma ilegalidade e inconstitucionalidade, o que para os devidos efeitos se alega, por a lei não ter efeitos retroactivos, nos termos do artº 12º do C.P.C.'.
3. Também apresentou alegação o recorrido Ministro da Administração Interna, concluindo que 'o douto acórdão recorrido não incorreu na violação de qualquer das normas constitucionais assinaladas pelos Recorrentes'.
4. Tudo visto, cumpre decidir, começando pela história do caso.
4.1. J... e A..., soldados da Guarda Fiscal na situação de reserva, interpuseram, em 3 de Junho de 1993, recurso contencioso de anulação do despacho do Ministro da Administração Interna, datado de 7 de Abril de 1993, que negou provimento aos recursos hierárquicos por ambos interpostos do despacho do Comandante Geral da Guarda Fiscal, que lhes indeferiu, por sua vez, requerimentos nos quais pediam que, para efeito de desbloqueamento de escalões e consequente cálculo da pensão de reserva, fosse tido em conta todo o tempo de serviço por si prestado, não só na Guarda Fiscal – o primeiro em Angola e o segundo em Moçambique -, como todo o tempo do serviço prestado ao Estado, designadamente o tempo de serviço prestado em polícias não fiscais (Polícia de Segurança Pública de Lisboa - J...) ou 6ª Companhia Móvel de Lisboa (A...) destacada no então Ministério do Ultramar ( e ainda Polícia de Segurança Pública de Angola o recorrente J....).
4.2. Da matéria de facto dada como provada nas instâncias e que resulta dos autos constata-se que, sendo o recorrente J... agente da Guarda Fiscal, passou à reserva em 10 de Julho de 1991, ao abrigo da alínea d) do artigo 50º do Estatuto Militar da Guarda Fiscal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 374/85, de 20 de Setembro. Ao passar a esta situação, foi aquele recorrente J... posicionado no 8º escalão e, em Setembro de 1991, foi-lhe desbloqueado um escalão, ficando assim posicionado no 9º escalão. Nos termos do artigo 3º do Decreto-Lei nº 41654, de 28 de Maio de 1958, e a partir daquela data, foi-lhe atribuída a pensão mensal de 136 817$00 com base em
36 anos, 1 mês e 7 dias de serviço. Por sua vez, aquele A..., também agente da Guarda Fiscal que, ao abrigo do mesmo preceito legal e do mesmo Estatuto, passou à reserva em 7 de Novembro de 1989, foi posicionado no 6º escalão, tendo-lhe sido desbloqueados dois escalões, em Junho de 1990. Em Setembro de 1991, foi-lhe desbloqueado um novo escalão, ficando também posicionado no 9º escalão. A partir desta data, foi-lhe atribuída a pensão mensal de 142 000$00 com base em
36 anos, 2 meses e 15 dias de serviço, nos termos do mesmo artigo 3º do Decreto-Lei nº 41 654. Ao dito escalão correspondia o índice 175, para efeitos remuneratórios. Contudo, no mês de Dezembro seguinte, ambos viram o seu posicionamento reduzido para o 7º escalão (a que corresponde o índice 155) e, consequentemente, reduzidas as suas pensões. Considerando que, na base dessa redução estaria a não contagem do referido tempo de serviço prestado em polícias não fiscais, entendem que este tempo é, no entanto, relevante para a determinação do escalão e índices aplicáveis e que a revogação que está implícita na redução do escalão de 9 para 7, com a redução da pensão, 'viola o princípio dos direitos adquiridos'. Entendem ainda que, além de violar o referido 'princípio', o 'Despacho recorrido' discrimina os recorrentes, pois que a colegas seus e a outros agentes de segurança foram atribuídos os mesmos escalões deles e nunca lhes foram retirados. Os recorrentes foram atingidos por um acto discriminatório que contraria o tratamento a que a Administração Pública está obrigada a ter em casos semelhantes, designadamente para os funcionários públicos. Nos termos dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 40º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, não pode alterar-se a situação que os funcionários públicos já detêm, quando esta os possa prejudicar.
4.3. Em síntese, foram estas as conclusões das alegações dos recorrentes para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (muito mais claras, explícitas, como já se disse, do que as apresentadas perante este Tribunal Constitucional):
'13ª Os escalões retirados aos recorrentes tiveram por base os artºs 9º nº 2 do DL 386/76 de 22/5 alterado pelo artº 2º do DL 40/82 de 6/2 o qual é inconstitucional por violar direitos adquiridos dos recorrentes;
14ª É também violador do princípio da igualdade consignado no artº 13º da CRP e DL 85/91, na medida em que os recorrentes foram alvo de um tratamento discriminatório por parte da Administração Pública por sempre terem estado ao serviço desta e esse tempo ter obrigatoriamente de ser contado para a sua antiguidade;
15ª Deste modo , o DL 40/82 é inconstitucional por violador do princípio da igualdade;
16ª Aos recorrentes foram-lhes retirados direitos já adquiridos, o que contraria o disposto na CRP e não lhes foi assegurado o princípio da igualdade por a outros seus colegas na mesma situação não lhes terem sido reduzidos os escalões;
17ª Nos termos do artº 280ª da CRP, para todos os eventuais efeitos necessários, suscita-se a inconstitucionalidade quanto à aplicação ainda que implícita, de qualquer norma que fundamente decisão de indeferimento deste pedido (ou recurso), contendo interpretação (Artº 80º/3 da LOFPTC) da lei em desconformidade com o sentido, favorável aos Recorrentes , dos textos legais citados nestas alegações;
18ª E ainda, em particular, sem prejuízo da generalidade anterior, relativamente a normas ou a interpretações da lei explícita ou implicitamente aplicadas suscita-se que: a) Existe inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da LOGF com a aplicação do artº 9º nº 2 do DL 386/76 de 22 de Maio (fls 108 , 115 e 116 ) e em virtude dessa norma estar revogada; b) Existe inconstitucionalidade por violação do princípio dos direitos adquiridos , tendo em conta que o escalão foi reduzido em desconformidade como artº 18º da LOSTA, com a redacção determinada pelos artºs 134º, 28º al. a) e 55º da LPTA , 13º, l8º, 115º e 122º da CRP, tendo também em conta que essa interpretação é desconforme com o DL 184/89 de 2de Junho (artº 40º ) e com o DL
143/85 de 8de Maio;
19ª Com o devido respeito pela opinião em contrário, foram infringidas as disposições dos artºs 22º nº 1 da LOGF, 60º do EMGF, 18º da LOSTA, 28º, al a) e
134º da LPTA, 3º do D. L. 374/85 de 20/9, 40º do D.L. 184/89 de 2/6, 13º, 18º,
115º e 122º da CRP e o DL 85/91. Nestes termos e nos mais de direito deve: a) revogar-se o douto Acórdão e consequentemente atribuir-se aos recorrentes o
9º escalão, dentro da escala remuneratória competente, restituindo-se os montantes em dívida no valor de 20 300$00 mensais desde a data em que lhes foi retirado essa importância até integral pagamento; b) declarar-se inconstitucional o nº 2 do art. 9º do D.L. 386/76 de 22/5 alterado pelo artº 2º do D.L. 40/82 por violar os direitos adquiridos'. A Secção (1ª Subsecção) do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo havia negado provimento aos recursos, o mesmo sucedendo com o Pleno da Secção que confirmou o anteriormente decidido, por via do acórdão ora recorrido.
4.4. Em termos de direito aplicável, e no que aqui pode interessar, refere o acórdão recorrido relativamente à questão da inconstitucionalidade suscitada.
' Na conclusão 17º da sua alegação de recurso para este TP vieram os recorrentes
'nos termos do artº 280º da CRP , para todos os eventuais efeitos necessários, suscitar a inconstitucionalidade quanto à aplicação , ainda que implícita, de qualquer norma que fundamente a decisão de indeferimento deste pedido (ou recurso) contendo interpretação (artº 80º nº 3 da LOFPTC ) da lei em desconformidade com o sentido, favorável aos recorrentes , dos textos legais citados nas alegações (sic) . Ainda, na conclusão 18ª, acrescentam que 'em particular , sem prejuízo da generalidade anterior, relativamente a normas ou a interpretações da lei explícita ou implicitamente aplicadas suscita-se que: a) Existe inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da LOGF com a aplicação do artº 9º nº 2 do DL 386/76 de 22/5 (...) e em virtude dessa norma estar revogada'; b) Existe inconstitucionalidade por violação do princípio dos direitos adquiridos , tendo em conta que o escalão foi reduzido em desconformidade como artº 18º da LOSTA com a redacção determinada pelos artºs 134º, 28º al. a) e 55º da LPTA 13º, 18º, 115º e 122º da CRP(...) devendo ainda b) declarar-se inconstitucional o nº 2 do artº 9º do DL 386/76 de 22/5 alterado pelo artº 2º do DL 40/82 por violar os direitos adquiridos ...' (sic).
(...) Com excepção da aventada violação do princípio da igualdade e daquele que os recorrentes apelidam de 'princípio dos direitos adquiridos' - pretensos vícios do acto administrativo já arguidos no seio do recurso contencioso - a suscitação de todas as restantes supostas 'inconstitucionalidades' apresenta-se como manifestamente inovatória em sede de recurso para este TP , porque totalmente silenciada pelos recorrentes no seio do recurso contencioso , pelo que se poderá desde já questionar se este tribunal de recurso dela agora poderia conhecer . A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo tradicionalmente a entender que o acto que aplique norma inconstitucional se encontra viciado de erro nos pressupostos de direito integrador do vício de violação de lei , por isso gerador de mera anulabilidade (salvo se a norma aplicada for violadora do cerne ou do conteúdo essencial de um direito fundamental, ofensa neste caso geradora da nulidade do acto (...). Deste modo, porque, no caso sub-specie, o acto alegadamente inquinado e os aludidos vícios suscitados 'ex-novo' já eram do conhecimento dos recorrentes aquando da interposição do recurso contencioso, e porque não oportunamente suscitados no seio desse recurso, jamais poderiam os mesmos ser invocados em sede de recurso jurisdicional .
É certo que os tribunais não podem, nos termos do artº 207º da CRP, 'aplicar ou coonestar a aplicação de normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados'(...). Mas há aqui que abrir um parêntesis de advertência relativo aos poderes de cognição do Supremo Tribunal Administrativo . Na realidade, não cabe dentro desses poderes a sindicabilidade em sede abstracta da inconstitucionalidade dos diplomas legislativos dimanados quer da Assembleia da República quer do Governo. O citado artº 207º da CRP foi concebido tendo em vista simples questões de fiscalização judicial difusa - que é necessariamente uma fiscalização concreta e material , tal como obtemperam G. Canotilho e V. Moreira in 'Constituição da República Portuguesa Anotada' - 3ª ed. rev. pág. 796 - e que o tribunal tem incidentalmente que decidir , mas apenas na medida em que a aplicação de uma determinada norma ou normas possa afectar, de modo substancial, a situação material subjacente...' Não pretende pois tal preceito instituir um controlo obrigatório sistemático e global da constitucionalidade, como parecem pretender os recorrentes . Se os tribunais comuns ou especiais devessem , em cada feito concreto submetido
à sua apreciação, proceder a uma indagação oficiosa acerca da eventual inconstitucionalidade dos diplomas cujos preceitos se reflictam, com maior ou menor grau de incidência na relação material controvertida, então poder-se-ia afirmar que o incidente de inconstitucionalidade era de suscitação oficiosa necessária , passando a ser um incidente 'normal' ou 'típico' de todo e qualquer processo, com todos os reflexos negativos para a marcha normal e célere da respectiva tramitação . E arvorar-se-iam, por essa via, os diversos tribunais integrados em qualquer ordem em verdadeiras instâncias constitucionais de 1ª instância. Nesta linha de pensamento, (...) 'não compete ao Supremo Tribunal Administrativo a fiscalização abstracta da inconstitucionalidade de normas; se a eventual procedência de uma questão de inconstitucionalidade de norma suscitada no processo não tiver incidência na legalidade do acto recorrido, não deve o tribunal conhecer dessa questão' (sic) . Mas há mais: ainda que devendo a decisão surtir, em princípio, os seus efeitos exclusivamente no seio do processo em que se decidir o incidente de inconstitucionalidade, então, por uma questão de coerência, o tribunal deveria recusar-se a aplicar , 'in futurum' toda e qualquer norma dos diplomas legislativos em apreço e em todo e qualquer feito submetido à sua apreciação - com ou sem reflexo directo na legalidade intrínseca dos actos sindicados, com os inevitáveis riscos para a solução atempada dos diferendos, e, consequentemente, para a justiça material.
(...) De qualquer modo, ainda que devesse coonestar a desaplicação de todo o bloco normativo em causa, então parece que deveria ter-se por represtinado o diploma anteriormente regulador da matéria , e consequentemente aferir-se por este
último a legalidade do acto punitivo impugnado (...). Só que as normas ordinárias concretas em causa (...) são de cariz manifestamente inovatório por respeitarem à introdução de um novo sistema retributivo e de um novo processo ascensional-funcional na carreira da guarda fiscal. Termos em que não se conhece da matéria nova da inconstitucionalidade suscitada nas citadas conclusões , l7º, 18º e l9º'.
5. Antes de mais, convém dizer que, independentemente de saber se o Pleno a quo poderia e deveria conhecer da questão de (in)constitucionalidade, pelas razões no acórdão invocadas, no ponto em que considera 'matéria nova', e não parecendo que os recorrentes tenham pretendido (como aliás, o confirmam nas suas alegações para este Tribunal - cfr. nºs 6. 7. e 8) que o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciasse em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade - entendendo-se a referência a 'declarar-se inconstitucional' 'e não a 'julgar-se inconstitucional' a uma má técnica de linguagem jurídica -, o certo é que, como este Tribunal, por diversas vezes tem acentuado, o juízo de
(in)constitucionalidade por si formulado baseia-se nos dados objectivos do processo, designadamente sobre a forma, que deve ser clara, perceptível e coerente, como foi submetida a questão em causa perante a instância recorrida. Ora, os recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 376/76, de 22 de Maio, na redacção dada pelo artigo
2º do Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro, nas alegações para o Pleno do STA
(conclusão 18º, alínea a) e alínea b) do pedido final). O requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade para este Tribunal é o acto idóneo para a fixação do objecto deste e, se a parte recorrente nele especificar as normas a fiscalizar, não pode já, nas subsequentes alegações, ampliar a outras normas aquele objecto (cfr. acórdão nº
366/96, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996). E o certo é que os recorrentes, convidados ao abrigo do artigo 75º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 25/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº 13-A/89, de 26 de Fevereiro, a especificar claramente a norma ou normas que consideravam inconstitucionais, vieram esclarecer que se tratava da norma contida no nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 386/76, de 22 de Maio, na redacção dada pelo artigo
2º do Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro, 'tendo em conta nomeadamente o conteúdo do artº 60º do Estatuto do Militar da Guarda Fiscal, aprovado pelo Dec.-Lei 374/85, de 20 de Setembro' (v. ponto 1.).
Por isso, só sobre a apreciação daquela norma pode o Tribunal debruçar-se e não sobre outras pretensas questões de (in)constitucionalidade, levantadas pelos recorrentes nas suas alegações, designadamente a invocação da violação do
'acesso ao direito' e da violação do 'princípio da igualdade', quando se reportam ao acórdão recorrido, exprimindo-se assim: 'O Acórdão Recorrido ao não conhecer da norma em concreto vedou o acesso ao direito aos recorrentes', e 'o Douto Acórdão recorrido vedou o acesso ao direito, ao julgar válido o cálculo de uma pensão com base numa norma revogada' (não sem se deixar de dizer que, dada a forma como tal questão foi suscitada, ao atribuir-se ao acórdão recorrido a violação do 'acesso ao direito' e a violação 'ao princípio da igualdade' (cfr. II, nº 9, das alegações), bem como dizer-se que o 'acórdão recorrido violou'
(...) – (cfr. II, 30), nunca o Tribunal Constitucional poderia conhecer destas questões, dado que, como, reiteradamente, tem afirmado, na sua jurisprudência, o vício de inconstitucionalidade reporta-se a normas e não a decisões (cfr. acórdãos nºs 282/95 e 20/96, publicados, respectivamente, nos Diário da República, II Série, de 20/5/96 e 16/5/96). Assim, repete-se, objecto de recurso para este Tribunal é tão-só a norma do nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 386/76, de 22 de Maio, na redacção do artigo 2º do Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro.
6. Importa, por isso, agora transcrever o que dispõe a referida norma, fazendo-se, porém, uma referência prévia a alguns dos diplomas pertinentes para a decisão. O Estatuto do Militar da Guarda Fiscal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 374/85, de
20 de Setembro, estabeleceu as situações em que os respectivos alistados se poderiam encontrar, em função da sua disponibilidade para o serviço. O seu artigo 60º, nº 2, invocado pelos recorrentes, manda contar 'o tempo de serviço prestado ao Estado': 'para efeitos do cálculo das pensões de reserva e reforma', abrangendo 'o tempo de exercício de funções militares ou públicas' (nº
1). O Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, que veio estabelecer os princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da função pública, estabeleceu também as regras sobre o estatuto remuneratório dos oficiais, sargentos e praças da Guarda Nacional Republicana e da Guarda Fiscal e a estrutura das remunerações-base dos postos que integram as respectivas carreiras, por se considerarem integrados corpos especiais, além do mais, as forças e os serviços de segurança (artigo 16º, nºs 1, c) e 2, c). A remuneração é determinada pelo índice correspondente à categoria e escalão em que o funcionário ou agente está posicionado (artigo 17º, nº 1, desse Decreto--Lei nº 184/89). O Decreto-Lei nº 85/91, de 23 de Fevereiro, veio, por sua vez, estabelecer o regime a aplicar no desbloqueamento dos escalões do novo sistema retributivo do pessoal das Forças de Segurança (GNR e GF), tendo fixado, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 59/90, de 14 de Fevereiro (este diploma foi editado no desenvolvimento do regime jurídico do citado Decreto-Lei nº 184/89), o número de anos de serviço para integração nos escalões desbloqueados. Determinante para o cálculo da pensão de reserva dos recorrentes é a remuneração-base mensal do respectivo posto (no activo), cuja determinação depende do escalão e do índice em que o interessado esteja inserido. Assim, determina o artigo 5º do citado Decreto-Lei nº 59/90:
'1 – A remuneração base mensal correspondente a cada posto e escalão referencia-se por índices, cuja determinação é feita através de uma escala remuneratória com um índice de referência igual a 100.
2 – A remuneração base mensal correspondente ao índice 100, bem como as respectivas actualizações, é fixada por portaria do Primeiro Ministro e do Ministro das Finanças' (cfr. também artigos nºs 19º, 21º, 22º e 26º desse diploma). A estrutura das remunerações-base da função pública – repete-se – integra, além do mais, escalas indiciárias para os corpos especiais (artigo 16º, nº 1, alínea c)), considerando-se integrados em corpos especiais, também, além do mais, as forças e os serviços de segurança (respectivamente, nºs 1 e nº 2, alíneas c). Por sua vez, o artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro dispõe:
'Em caso algum pode resultar da introdução do novo sistema retributivo redução da remuneração que o funcionário ou agente já aufere ou diminuição das expectativas de evolução decorrentes quer da carreira em que se insere, quer do regime de diuturnidades vigente'. O artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 386/76, de 22 de Maio, na redacção que lhe foi dada pelo citado Decreto-Lei nº 40/82, a norma aqui questionada, estabelece:
'Na integração dos militares do quadro paralelo, deverá ser observado, quanto à sua antiguidade na Guarda Fiscal, o seguinte critério:
1)Para os oficiais do quadro de complemento, é a antiguidade do Exército no porto de integração;
2)Para os restantes militares é a antiguidade do último posto que tinham na Guarda Fiscal de Moçambique e nas polícias fiscais dos demais territórios descolonizados, posto que serviu de base à respectiva equivalência de integração'.
7. Como salienta o acórdão recorrido:
'O ‘punctum saliens’ da controvérsia entre os recorrentes e a entidade recorrida centra-se em aqueles reivindicarem e esta denegar a relevância, para efeitos de determinação do escalão e índices aplicáveis, do tempo de serviço prestado em polícias não fiscais'. E também como salienta a entidade recorrida
'Os recorrentes alicerçam toda a sua argumentação sobre um equívoco: não se trata aqui de saber se o tempo em que permanecerem em serviço fora das ‘polícias fiscais’ deve ou não contar para efeitos de antiguidade de serviço mas de saber se esse tempo pode ser contado para efeitos de progressão na carreira'. Ora, a progressão na carreira obedece a regras próprias especificamente previstas na lei: Decreto-Lei nº 386/76, Decreto-Lei nº 40/82, Decreto-Lei nº
59/90 e Decreto-Lei nº 85/91, atrás identificados. O Supremo Tribunal Administrativo entendeu sempre que o despacho recorrido fez correcta interpretação e aplicação do preceito do artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 386/76, na redacção do Decreto-Lei nº 40/82, porquanto devia ser a data de 1/7/72 (para J...) e de 1/6/72 (para A..) que se devia ter em conta para início da contagem da sua antiguidade na Guarda Fiscal. Não haverá muito mais a acrescentar àquilo que nas instâncias se reafirmou: na verdade não se trata de saber se o tempo em que os recorrentes (enquanto militares) permaneceram ao serviço, em funções estranhas ao âmbito fiscal, deve ou não contar para efeitos de antiguidade de serviço, mas sim de saber se esse tempo pode ser contado para efeitos de progressão na carreira e, consequentemente, se deve relevar para efeitos de remuneração. Como esclarecidamente se pode ver no acórdão da Secção, confirmado pelo acórdão recorrido, 'a lei não definia directamente quaisquer critérios para a determinação da antiguidade dos agentes em causa, abandonando a decisão de cada caso a despachos do Ministro das Finanças. Não conferindo, assim, a lei quaisquer direitos a determinada contagem de antiguidade, não se pode afirmar que o Decreto-Lei nº 40/82, ao definir regras nessa matéria, mandando relevar para a antiguidade na Guarda Fiscal a antiguidade no último posto que os interessados tinham na Guarda Fiscal de Moçambique e nas polícias fiscais dos demais territórios descolonizados, tenha vindo retirar ou restringir direitos legalmente adquiridos dos interessados'. E mais à frente: 'o facto de o despacho impugnado não ter atendido ao tempo de serviço prestado pelos recorrentes antes do respectivo ingresso na polícia fiscal de Angola e na Guarda Fiscal de Moçambique não assentou na circunstância de não atribuir valor à certificação desse tempo de serviço que eventualmente haja sido feita ao abrigo do DL 143/85, mas antes em haver entendido que esse tempo não podia relevar por força do disposto no artigo 9º, nº 2, do DL 386/76, de 22/5, na redacção que lhe foi dada pelo DL 40/82, de 6/2.'
8. Ora, viola este entendimento, como sustentam os recorrentes, o princípio da igualdade? Este princípio, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, impõe não só que situações iguais sejam tratadas igualmente, mas também que situações desiguais sejam tratadas desigualmente. Não proíbe tratamentos diferenciados desde que se trate de diferenciações não puramente arbitrárias e impõe, inclusivamente, uma obrigação de diferenciação como forma de compensar desigualdades de oportunidades. Enquanto proibição do arbítrio e de discriminação, tal princípio só é violado quando as medidas legislativas, contendo diferenciações de tratamento, se apresentam arbitrárias, por carecerem de fundamento legal bastante. Mas as diferenças de tratamento não são ilegítimas se as situações materiais ou realidades da vida forem objectivamente diferentes. Usando uma vez mais as palavras do acórdão da Secção, 'se se compreende que, para efeitos de antiguidade do pessoal da Polícia de Segurança Pública, releve todo o tempo de serviço prestado nessa força de segurança ou noutras forças com idênticas funções, já não é imposto pelo princípio da igualdade que, para efeitos de antiguidade do pessoal da Guarda Fiscal, releve o tempo de serviço prestado na Polícia de Segurança Pública, em funções não fiscais. É a própria diferença da natureza das funções em causa que justifica a diferenciação de tratamento'. E no acórdão recorrido concluiu-se:
'Situações objectivamente diferentes que merecem por parte do legislador ordinário tratamento legislativo naturalmente também diferenciado, não se detectando nos respectivos diplomas legais qualquer discriminação ilegítima de grupos sociais e/ou sócio-funcionais em termos geradores de qualquer violação do princípio constitucional da igualdade contemplado no nº 1 do artº 13º da CONST
76. Isto sendo sabido que as diferenciações de tratamento por via legal podem ser legítimas quando se baseiam numa distinção objectiva das situações e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação dos respectivos fins ou objectivos - (conf. neste sentido, G. Canotilho e V.Moreira in
'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed., pág. 128)'. Assim sendo, como é, e não merecendo o assunto maiores desenvolvimentos, não sofre o artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 386/76, de 22 de Maio, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 40/82, de 6 de Fevereiro, do vício de inconstitucionalidade invocado.
9. 'E quanto à aventada violação do 'princípio dos direitos adquiridos'?' - é a pergunta feita no acórdão recorrido. A resposta, na esteira do acórdão da Secção, vem a seguir:
'Não pode por afirmar-se - como alvitram os recorrentes - que o DL 40/82 tenha vindo retirar ou restringir direitos conferidos pelo DL 386/76. Este diploma, que criou na Guarda Fiscal 'um quadro paralelo ao respectivo quadro privativo', em que puderam 'ingressar os agentes afectos às congéneres corporações dos territórios descolonizados', ocupava-se da antiguidade dos agentes desse quadro paralelo no seu artigo 10º (correspondente ao artigo 9º na redacção do DL
40/82), que dispunha:
'Para efeitos de integrarão funcional e promoção, a antiguidade dos agentes da Guarda Fiscal dos territórios descolonizados que vierem a integrar o quadro paralelo criado pelo presente diploma será definida por despacho do ministro das Finanças, sob proposta do comandante-geral da Guarda Fiscal'. O que tudo significa que a lei não definia directamente quaisquer critérios para a determinação da antiguidade dos agentes em causa, deixando antes , e neste particular , a decisão da cada caso ao alvedrio do Ministro das Finanças. Não conferindo, portanto a lei, quaisquer direitos a determinada contagem de antiguidade, não se pode afirmar que o DL nº 40/82, ao definir regras estritas nessa matéria, mandando relevar para a antiguidade na Guarda Fiscal a antiguidade no último posto que os interessados tinham na Guarda Fiscal de Moçambique e nas polícias fiscais dos demais territórios descolonizados, tenha vindo retirar ou restringir direitos legalmente adquiridos dos interessados',.
(dele decorrendo como resultado lógico que se não 'pode dar pois como violado o princípio da protecção da confiança, que os recorrentes rotulam de 'princípio dos direitos adquiridos'). Assim, não se estando perante direitos estatutares já subjectivados, por não resultar do sistema legal quaisquer direitos a determinada contagem de antiguidade, não pode detectar-se na norma questionada a tal afectação de
'direitos adquiridos dos recorrentes'. Com o que também não procede neste ponto a alegação dos recorrentes.
10. Quanto, finalmente, aos artigos 115º e 122º a que os recorrentes se referem no nº 23 das suas alegações (ter-se-à querido dizer da Constituição e não 'do mesmo código') não se vê em que podem eles ser relevantes para a sua tese, nem como podem relacionar-se com ela, (e, como diz a autoridade recorrida, nem sequer foram apresentados os argumentos que prometeram vir a apresentar). Reportando-se a tais normas - na versão anterior à revisão de 1997, sendo agora os artigos 112º e 119º - aos actos normativos e à publicidade dos actos não se imagina onde se possa localizar a violação delas por parte do preceito legal aqui questionado e nem as recorrentes adiantaram algo que concretiza a mera afirmação feita.
1. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em quinze unidades de conta, para cada um deles. Lisboa, 24 de Novembro de 1999- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida