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Proc. nº 954/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. I..., Lda., instaurou, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, acção ordinária contra a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, pedindo a condenação da ré no pagamento de uma indemnização no valor de
177.750.000$00, decorrente dos danos sofridos pelo atraso na entrega do prédio de dois pisos sito no lugar da Aluniara, freguesia de Canidelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o número 53769, a fls. 160 d, Livro B-138.
A Câmara Municipal, arrendatária do referido imóvel, havia-se obrigado, por transacção homologada judicialmente com trânsito em julgado, a entregar a R... (então senhoria), até ao dia 10 de Maio de 1991, o prédio livre de pessoas e bens. Entretanto, em 15 de Fevereiro de 1989, a autora na acção instaurada (I..., Lda.) celebrou com R... um contrato de compra e venda do prédio em causa (com o propósito de o demolir e subsequentemente construir um novo edifício). A entrega do prédio à nova proprietária só ocorreu, porém, em Dezembro de 1994. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia invocou como fundamento do atraso a impossibilidade de realojamento das pessoas que habitavam o edifício.
Na petição inicial, a autora não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa, tendo apenas invocado os danos emergentes da realização de um novo projecto, uma vez que a validade do primeiro havia cessado por caducidade, bem como os danos resultantes da não comercialização do imóvel que projectava construir.
A ré contestou, sustentando que, a haver lugar ao pagamento de indemnização, esta sempre teria de ser calculada em conformidade com o disposto no artigo 1045º do Código Civil.
O Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no despacho saneador de 28 de Junho de 1996, julgou a acção não provada e improcedente, absolvendo a ré do pedido. Para tanto, considerou aplicável a norma contida no artigo 1045º do Código Civil, pelo que a ré só estaria obrigada a pagar à autora, a título de indemnização por atraso na entrega do prédio, o dobro da renda.
2. I..., Lda., interpôs recurso da sentença de 28 de Junho de 1996 para o Tribunal da Relação do Porto.
Nas respectivas alegações, a recorrente, reiterando os argumentos anteriormente apresentados, sustentou a inconstitucionalidade material da norma contida no artigo 1045º do Código Civil, por violação do disposto nos artigos
65º, 62º e 13º da Constituição. Relativamente ao artigo 65º, a recorrente afirmou que cabe ao Estado e não ao particular suportar a protecção do direito à habitação. Em relação aos artigos 62º e 13º, a recorrente considerou que a limitação do direito à indemnização consubstancia uma verdadeira expropriação. A recorrente sustentou ainda que a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, ao fazer-se valer do disposto no artigo 1045º do Código Civil, estaria a actuar contra os princípios da boa fé, incorrendo, nessa medida, em abuso do direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 30 de Junho de 1997, julgou procedente o recurso, revogando a decisão contida no despacho saneador e ordenando, consequentemente, o prosseguimento da acção, com especificação e questionário. Considerou, para o efeito, que a indemnização do artigo 1045º do Código Civil é uma indemnização por enriquecimento sem causa, que não impede o ex-senhorio de fazer valer contra o ex-locatário os princípios gerais da responsabilidade civil, caso a conduta deste lhe cause danos que directamente não tenham que ver com o valor do uso do prédio. O tribunal afirmou ainda que outro entendimento poderia violar o disposto nos artigos 62º e 13º da Constituição.
3. A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia interpôs recurso do acórdão de 30 de Junho de 1997 para o Supremo Tribunal de Justiça.
A recorrente, nas alegações, rebateu os fundamentos da decisão recorrida.
I..., Lda., nas contra-alegações apresentadas, desenvolveu, no essencial, os argumentos anteriormente apresentados.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 6 de Maio de 1998, concedeu parcialmente a revista, mantendo o acórdão recorrido, na parte em que ordenou o prosseguimento da acção, com especificação e questionário, para oportuno conhecimento do mérito da causa apenas com fundamento em abuso do direito. Em relação ao artigo 1045º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada aí prevista está em princípio limitada pelo critério consignado nesse preceito, com exclusão das regras gerais dos artigos 562º e ss. do mesmo código.
4. I..., Lda., interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 6 de Maio de 1998, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida nos artigos 1045º do Código Civil.
Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
- A norma do art.1045º do Código Civil vigente, quando interpretada e aplicada no sentido de excluir a responsabilidade do locatário por indemnização superior ao valor das rendas ou em dobro, no caso de mora no cumprimento da obrigação de entrega do prédio, não garante o direito do senhorio à indemnização dos prejuízos nos termos gerais de direito, revertendo em desfavor do senhorio as consequências da mora imputável ao locatário, mesmo que a título de culpa grave ou grosseira, sempre que o montante dos danos exceda o dobro do valor da renda praticada na vigência do contrato;
- A interpretação e aplicação da norma no sentido mencionado, ofende os princípios constitucionais da legalidade democrática, igualdade e da propriedade privada ínsitos nos arts. 2º, 13º e 62º da CRP.
Nestes termos, mas confiando sobretudo no elevado critério de Justiça de V.Exas., deverá o recurso ser julgado procedente, e, por via dele, com todas as legais consequências, ser declarada a inconstitucionalidade da norma do art.
1405º do Código Civil, quando interpretada e aplicada no sentido referido.
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:
1ª - O Supremo Tribunal de Justiça fez correcta interpretação do art. 1045º do Código Civil.
2ª - Não houve na interpretação consignada no Acórdão aqui sob censura violação dos arts. 2º, 13º e 62º da Constituição.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. O artigo 1045º do Código Civil tem a seguinte redacção: Artigo 1045º
(Indemnização pelo atraso na restituição da coisa)
1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.
O Supremo Tribunal de Justiça interpretou este preceito no sentido de o limite nele contido excluir as regras gerais relativas à obrigação de indemnizar, contidas nos artigos 562º e seguintes do Código Civil, considerando que tal solução apresenta 'alguma razoabilidade', porque se baseia no montante estipulado pelas partes, e que o referido preceito está em harmonia com a protecção tradicionalmente concedida ao arrendatário.
A recorrente sustenta que tal interpretação, na medida em que impede o efectivo ressarcimento dos danos que alegadamente sofreu por força do atraso na entrega do prédio, é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade democrática, da igualdade e da propriedade, consagrados nos artigos
2º, 13º e 62º da Constituição, respectivamente.
7. A quantificação da indemnização pecuniária é feita, nos termos do disposto no artigo 566º do Código Civil, de acordo com a teoria da diferença. No entanto, tal norma ressalva expressamente o preceituado noutras disposições legais. É o caso, nomeadamente, dos artigos 899º e 909º do Código Civil. Assim, verifica-se que no plano infra- constitucional o legislador consagra determinadas soluções que constituem, de algum modo (ou podem constituir), limites à determinação do montante indemnizatório, que se fundamentam em circunstâncias objectivas.
No presente caso, a norma impugnada limita a indemnização pelo atraso na entrega da coisa locada (trata-se, em concreto, de um imóvel) ao valor das rendas. Tal solução normativa, necessariamente inter-relacionada com a pré-existência de um contrato de arrendamento, assenta naturalmente numa lógica de prolongamento de facto do contrato, que se traduz na subsistência da utilização da coisa pelo locatário, com prejuízo do locador. Continuando aquele a auferir os benefícios decorrentes da celebração do contrato, deverá consequentemente pagar ao senhorio as rendas acordadas, a título de indemnização
(cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição,
1986, pp. 406 e 407).
No entanto, a dimensão limitativa da opção legislativa resulta fundamentalmente da relevância conferida à conexão entre a utilização do bem no mercado de locação e a sua fruição. Com efeito, uma coisa, quando objecto de um contrato de locação, assume uma função económica específica (a função de coisa produtora de frutos civis) que, de certo modo, monopoliza a sua rentabilidade. Nessa medida, todo o potencial lucrativo da coisa locada que vá para além da produção de frutos civis encontra-se neutralizado enquanto durar a situação locatícia.
No presente caso, a norma limita, como se referiu, a indemnização devida por atraso na entrega da coisa locada findo o contrato. Apesar de se tratar de um momento em que a relação contratual já se extinguiu formalmente, é ainda a projecção da situação contratual pré-existente, projecção acompanhada da continuação da situação de facto, que justifica a solução consagrada. Se o locatário não entrega a coisa no fim do contrato, a compressão do património do locador tem por equivalente pecuniário o valor da renda (ou do aluguer) acordado
(tenha-se presente que, nos termos do nº 2 do artigo 1045º do Código Civil, a mora do locatário eleva o valor da indemnização ao dobro da renda ou do aluguer), pois foi essa a utilização que o locador decidiu fazer da coisa. Nessa medida, a indemnização corresponderá ao valor dos benefícios dessa utilização
(corresponderá, pois, aos frutos da coisa).
É esta a razão objectiva da solução normativa em apreciação no presente recurso de constitucionalidade. Trata-se da decorrência (ainda possível) de uma determinada utilização da coisa. Note-se, porém, que não é excluído o direito à indemnização. Na verdade, o critério pode até beneficiar o locador, uma vez que, sendo fixo, pode implicar um montante que vá além dos prejuízos efectivamente sofridos com o atraso na entrega da coisa (ou seja, a continuação da situação de facto pode corresponder ao interesse do locador, sendo-lhe portanto vantajosa). A possibilidade de o prejuízo ser superior ao valor devido insere-se, deste modo, no risco inerente à celebração do contrato de locação, risco que se justifica em face de uma certa normalização racional dos efeitos de determinada utilização das coisas.
8. No entanto, e por outro lado, no caso em apreciação a norma questionada encontra ainda fundamento num outro valor, que fortalece particularmente a sua razão de ser. A recorrida não entregou o prédio arrendado, em virtude da dificuldade no realojamento dos seus ocupantes (não sendo relevante o título legitimador de tal ocupação). Pode entrever-se, ainda, nesta situação concreta a relevância de uma dada dimensão do direito à habitação, justificando-se também por esta via, no plano constitucional, uma acrescida previsibilidade dos efeitos jurídicos do comportamento do arrendatário que, não obstante a afectação de uma dada dimensão da esfera patrimonial de terceiros, se afigura indispensável à preservação e garantia do conteúdo fundamental desse direito. Tal circunstância impedirá a inconstitucionalidade da norma que limite não desproporcionadamente o valor da indemnização às rendas acordadas. Assim, e para além da existência de um fundamento objectivo e racional assente numa dada compreensão da eficácia limitadora do contrato de locação, a tutela do direito à habitação dos ocupantes do prédio reforça a legitimidade de uma compressão parcial (e, em abstracto, virtual) do interesse da recorrente na obtenção do lucro inerente à venda das fracções a construir.
9. Ora, é verdade que no caso dos autos, a recorrente não celebrou qualquer contrato de arrendamento com a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. No entanto, ao adquirir o imóvel, assumiu a posição da anterior proprietária (de cujos elementos essenciais tinha conhecimento).
Assim, e uma vez detectado o fundamento da norma em causa, deverá concluir-se que não se verifica qualquer violação constitucionalmente inadmissível do princípio da igualdade. Com efeito, a Constituição não proíbe tratamento diferenciado de situações análogas, quando exista fundamento axiológico e racional para tal diferenciação [cf., nomeadamente, Acórdãos nºs
39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol.
(1988), p. 233 e ss. e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente]. No presente caso, tal fundamento existe, indubitavelmente traduzindo-se num princípio de coerência na utilização do bem e, por outro lado, na tutela do direito à habitação, que, pelo menos, permite, justificadamente, uma diferenciação em relação às situações gerais de responsabilidade civil.
10. Por outro lado ainda, também não se verifica qualquer afectação do direito de propriedade violadora do artigo 62º da Constituição. Trata-se, apenas, da eficácia de uma situação contratual anterior que afectava a propriedade (ainda que a recorrente não tenha celebrado o contrato de arrendamento, pelo menos assumiu os efeitos da situação jurídica gerada pelo arrendamento no momento da aquisição), e do direito à habitação (artigo 65º da Constituição). O direito de propriedade não é afectado pelo facto do exercício da liberdade contratual poder gerar situações em que o destino atribuído à propriedade implica alguma protecção jurídica de outras posições jurídicas e dos respectivos sujeitos. Com efeito, os critérios de determinação da indemnização devida pelo atraso na entrega do prédio locado dependem de uma lógica inerente a uma dada utilização económica do bem. Tal lógica fundamenta uma certa estabilidade de expectativas quanto às consequências do incumprimento, as quais são aceites por quem realiza um contrato de arrendamento ou sucede nessa posição contratual.
11. Por último, também não se verifica qualquer violação do princípio da confiança, consagrado no artigo 2º da Constituição. Na realidade, não só existe um fundamento objectivo (devidamente identificado) para a solução em apreço como uma tal solução normativa atende ao valor da segurança
(previsibilidade das consequências económicas do incumprimento) para ambas as partes e, se esse for o caso, o valor pessoal do direito à habitação que pode estar na base do incumprimento contratual.
12. Em conclusão, dir-se-á que a solução normativa impugnada, não consubstanciando uma decorrência necessária de um qualquer preceito ou princípio constitucional, encontra ainda o seu fundamento numa razão objectiva e, em
última análise, num valor fundamental. Sendo, contudo, uma de entre várias soluções possíveis, não constitui porém, e pelas razões expostas, uma solução inconstitucional.
III Decisão
13. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 1045º do Código Civil, negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 24 Novembro de 1999 Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida