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Proc. nº 285/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. PN, S.A., (ora recorrida) interpôs, perante o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação do despacho proferido pelo Presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, referente ao averbamento da transmissão de certo registo do nome do estabelecimento. Decidindo, disse aquele Tribunal:
'(...) Afigura-se-me que este Tribunal é competente em razão da matéria para conhecer do recurso, porquanto a autorização legislativa concedida pela Lei nº
11/94, de 11/5, ao abrigo do qual o Governo aprovou o actual Código de Propriedade Industrial não concedeu ao mesmo Governo poderes para legislar sobre a competência dos tribunais, a qual, como é sabido, integra a reserva relativa de competência legislativa da A.R., nos termos do art. 168º, nº 1, al. q) da CRP. Assim sendo, o disposto no nº 2 do DL nº 16/95, de 24/1, não pode ser aplicado aos autos por ser desconforme ao estabelecido na Constituição Política (cfr. art. 207º da CRP) (...)'.
2. É desta decisão que vem interposto pela Representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º e 72º, nº
3, ambos da LTC, o presente recurso obrigatório, com fundamento na recusa de aplicação pela decisão recorrida do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº
16/95, de 24 de Janeiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por a autorização legislativa concedida ao Governo pela lei nº 11/94, de 11 de Maio, não o autorizar a legislar sobre a competência dos Tribunais, matéria que integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do art. 168º, nº 1, al. q) da Constituição.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, tendo concluído nos seguintes termos:
'1º - A norma constante do art. 2º do Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, ao excluir da revogação «em bloco» do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30 679, de 24 de agosto de 1940, o preceito constante do artigo 203º, referente à competência para a apreciação dos recursos dos despachos referentes à concessão ou recusa de patentes, depósitos ou registos, carece de carácter inovatório, nada alterando em sede de repartição de competências entre os diversos tribunais, pelo que não viola o art. 168º, nº 1 alínea q) da Constituição.
2º - Tal norma, ao manter a competência emergente do citado artigo 203º do Código de Propriedade Industrial de 1940, cometendo aos tribunais judiciais a competência para a apreciação de certos actos de registo em sede de propriedade industrial, não afronta o disposto no nº 3 do art. 214º da Constituição da República Portuguesa, por nada obstar a que, no âmbito da administração pública do direito privado, o legislador infra-constitucional possa legitimamente cometer aos tribunais judiciais a apreciação dos recursos dos actos de concessão ou recusa de registos, apesar da natureza publicista destes.
3º - termos em que deverá proceder o presente recurso, determinado-se a reforma da decisão recorrida'.
4. Notificada para responder, querendo, às alegações do Ministério Público, a recorrida veio aos autos para, em síntese, sustentar a inconstitucionalidade orgânica e material da norma objecto do recurso. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação.
5. O Código de Propriedade Industrial de 1940, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30
679, de 24 de Agosto de 1940, estabelecia, no seu artigo 203º que: 'dos despachos por que se concederem ou recusarem as patentes, depósitos ou registos haverá recurso para o Tribunal da Comarca de Lisboa'. No uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº 11/94, de 11 de Maio, foi aprovado o Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro - que aprovou o novo Código de Propriedade Industrial -, cujo artigo 2º dispõe da seguinte forma:
'mantém-se a competência do Tribunal da Comarca de Lisboa nos precisos termos em que lhe é atribuída pelo artigo 203º do Código de Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 30679, de 24 de agosto de 1940'. Nos presentes autos, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, confrontado com a questão prévia da sua própria competência para conhecer do recurso, respondeu afirmativamente. Para o efeito recusou aplicar a norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por alegada violação do disposto no artigo 168º, nº 1, al. q) da Constituição (na redacção de 82), uma vez que a respectiva lei de autorização legislativa não teria autorizado o Governo a legislar sobre a competência dos tribunais. A norma que constitui objecto do recurso é, assim, o artigo 2º do Decreto-Lei nº
16/95, de 24 de Janeiro (que já transcrevemos supra), que deve começar por ser confrontada com o disposto no artigo 168º, nº 1, al. q) da Constituição (na redacção de 1982), preceito que atribuía à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre a 'organização e competência dos tribunais (...)'.
5.1. Nas alegações apresentadas neste Tribunal sustentou o Ministério Público a não inconstitucionalidade orgânica do preceito, por o mesmo não assumir carácter inovatório em matéria de delimitação da competência material dos tribunais, limitando-se a manter em vigor, nos seus precisos termos, o regime já anteriormente constante do artigo 203º do Código de Propriedade Industrial de
1940.
5.2. A recorrida, por sua vez, contesta esta posição, alegando, designadamente, que o art. 203º do Código de Propriedade Industrial de 1940, deveria considerar-se revogado com a entrada em vigor da Constituição - nos termos do art. 290º, nº 2 da CRP -, por ser desconforme com o disposto no seu art. 212º, nº 3. E, nessa perspectiva, o art. 2º do Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro
(norma que agora é objecto de recurso), já seria inovador, porquanto teria
(re)introduzido no ordenamento jurídico uma solução que, à data, já não vigorava, em virtude da sua inconstitucionalidade material superveniente.
6. Importa, pois, começar por decidir se a norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, tem ou não carácter inovatório, uma vez que dessa questão depende a questão de saber se houve ou não violação do disposto no artigo 168º, nº 1 al. q) da Constituição, na redacção em vigor à data da sua aprovação [sobre o «carácter inovatório» de um preceito como critério decisivo para aferir da sua compatibilidade com o art. 168º, nº 1, al. q) da Constituição - actualmente, art. 165º, nº 1, al. p) - cfr., mais recentemente, os acórdãos nºs 588/99 e 589/99, publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 2000]. A resposta a esta questão, porém, depende da prévia resposta a uma outra, consistente em saber se o artigo 203º do Código de Propriedade Industrial de
1940 estava ainda em vigor à data em que foi editada a norma ora objecto do recurso ou, como alega a recorrida, se já deveria considerar-se revogado - nos termos do art. 290º, nº 2 da CRP - por contrariar o disposto no art. 212º, nº 3 da Lei Fundamental ?
É, pois, esta questão que importa começar por decidir.
7. Pois bem: este Tribunal teve já, por diversas vezes, oportunidade de se pronunciar sobre a compatibilidade de vários preceitos de direito ordinário com o disposto no artigo 212º, n.º 3, da Constituição (anterior artigo 214º, nº 3). Assim, logo nos acórdãos nºs 371/94, 372/94, 508/94 (Diário da República, II série, de 3 de Setembro de 1994, 7 de Setembro de 1994 e 13 de Dezembro de 1994, respectivamente) e 574/94, 610/94 e 629/94 (estes por publicar) decidiu o Tribunal que o artigo 61º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 953, de 5 de Abril de
1969 (redacção do Decreto-Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro) - norma que atribuía aos tribunais tributários competência para cobrar dívidas de que fosse credora a Caixa Geral de Depósitos - não violava o disposto no mencionado preceito constitucional. No mesmo sentido decidiu igualmente que também o artigo 36º, n.º 1, da Portaria n.º 640/76, de 26 de Outubro - norma que prevê recurso contencioso para os tribunais administrativos dos actos de registo de imprensa - não violava o disposto naquele preceito da Constituição (cf. acórdão n.º 607/95, Diário da República, II série, de 15 de Março de 1996). Ainda no mesmo sentido disse-se já que também os preceitos do Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro) que atribuem aos tribunais judiciais a competência para julgar a questão da indemnização por expropriação por utilidade pública (recte, os artigos 37º, 50º,
51º, nº 1, 52º, n.º 2, e 53º, n.º 2), são compatíveis com aquele normativo constitucional (cf. o acórdão n.º 746/96, Diário da República, II série, de 4 de Setembro de 1996). Da mesma forma decidiu o Tribunal, finalmente, que também a atribuição ao Supremo Tribunal de Justiça da competência para julgar os recursos interpostos das deliberações do plenário do Conselho Superior da Magistratura, feita pelo n.º 1 do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, não viola o referido artigo 212º, n.º 3, da Constituição [cf., designadamente, o acórdãos n.ºs 347/97
(Diário da República, II Série, de 25 de Julho de 1997) e, mais recentemente, os acórdãos nº 290/99 e 421/2000 (estes ainda inéditos)].
8. Na fundamentação daquelas decisões o Tribunal tem dito, de forma reiterada e uniforme (cfr., designadamente, os acórdãos nºs 347/97 e 290/99), 'que o artigo
212º, nº 3, da Constituição, ao contemplar uma jurisdição administrativa ordinária, não impõe que todos os litígios emergentes de qualquer relação jurídica administrativa sejam dirimidos pelos tribunais administrativos. Com efeito, o que o legislador constitucional pretendeu, tal como é patenteado pelos trabalhos preparatórios da Revisão Constitucional de 1989 (relativos ao artigo
214º, nº 3, correspondente, como se referiu, ao actual artigo 212º, nº 3), foi estabelecer uma competência comum, genérica, dos tribunais administrativos para apreciar os litígios administrativos e não uma reserva absoluta de competência
(cfr. Trabalhos Preparatórios da Revisão Constitucional, vol. IV, 1989, p.
4.134). Daqui resulta que a finalidade essencial que presidiu à inserção da norma constante do nº 3 do artigo 214º (actual nº 3 do artigo 212º) na Revisão Constitucional de 1989 foi, como também se esclareceu, no citado Acórdão nº
347/97, abolir o caracter facultativo da jurisdição administrativa. Mas isto significa apenas que a existência de tribunais administrativos é obrigatória e que eles estão dotados, em geral, de competência para dirimir litígios administrativos - não que em casos pontuais e fundamentados, repete-se, os tribunais judiciais não possam ser competentes para apreciar determinadas questões de natureza administrativa'. Em suma: tem considerado o Tribunal que o artigo 212º, nº 3 da Constituição, não proíbe em absoluto a atribuição pontual de competência a outros tribunais, que não os da ordem judicial administrativa e fiscal, para conhecerem de questões de natureza jurídica-administrativa, nomeadamente quando existam razões justificativas dessa atribuição. Pois bem: esta linha argumentativa, que mantém inteira validade, conduz à conclusão de que também no que se refere ao artigo 203º do Código de Propriedade Industrial de 1940, não se verifica a alegada situação de inconstitucionalidade material superveniente.
É que, também aqui, estamos manifestamente perante outro caso em que não só se verifica a mesma razão de tradição jurídica (o preceito vigorava, recorde-se, já desde 1940) que tem sido invocada para sustentar a não inconstitucionalidade de outras normas que foram objecto dos acórdãos referidos, como é efectivamente aceitável (designadamente em virtude da dupla natureza, simultaneamente publicista e privatística, dos actos de registo público de factos respeitantes a matérias de direito privado) a atribuição de competência a um tribunal judicial para dirimir um litígio que se reveste (também) de natureza administrativa. Como, com razão, sublinha o Ministério Público, esta dupla natureza implica 'que ao legislador infra-constitucional seja legítimo, segundo critérios de conveniência e oportunidade, situar a competência para a dirimição dos litígios decorrentes dos actos de registo público, quer aos tribunais judiciais
(privilegiando a consideração da vertente material da relação civil ou comercial a que o registo se reporta), quer aos tribunais administrativos (dando particular ênfase à natureza formal e publicística do acto de registo e, si, abstraindo da relação jurídica que lhe está subjacente)'. Acrescente-se, aliás, que já desde o acórdão nº 347/97 que o Tribunal Constitucional vem apresentando como exemplo de situação em que a atribuição aos tribunais judiciais de questões de natureza administrativa não violava o disposto no artigo 212º, nº 3 da CRP, precisamente o caso (que agora é objecto dos autos) dos recurso das decisões administrativas em matéria de patentes (cfr., designadamente, para além do acórdão nº 347/97, os acórdãos nºs 290/99 e 421/2000).
9. E, não se verificando a alegada situação de inconstitucionalidade material superveniente do art. 203º do Código de Propriedade Industrial de 1940 - que estava, por isso, em vigor a data em que foi editado o Decreto-Lei nº 16/95, de
24 de Janeiro - não é igualmente a norma agora objecto de recurso organicamente inconstitucional, por não apresentar um carácter inovatório em matéria de delimitação da competência dos tribunais, já que se limita a manter em vigor, nos seus precisos termos, o regime até aí aplicável.
10. E também não é, como alega a recorrida, materialmente inconstitucional, uma vez que, evidentemente, valem para o art. 2º do Decreto-Lei nº º 16/95, de 24 de Janeiro, as considerações acima feitas acerca da não inconstitucionalidade material do art. 203º do Código de Propriedade Industrial de 1940, na medida em que as normas têm o mesmo conteúdo: o de atribuir ao Tribunal da Comarca de Lisboa a competência para decidir do recurso dos despachos por que se concederem ou recusarem as patentes, depósitos ou registos.
III – Decisão.
Por tudo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de constitucionalidade aqui formulado. Lisboa, 13 de Dezembro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de visto) José Manuel Cardoso da Costa