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Proc. nº 488/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – Na decisão sumária de fls. 2332 e segs, decidiu-se não conhecer do objecto do recurso relativamente a todas as normas invocadas pelo recorrente EA nos seguintes termos:
'1 - EA, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal do acórdão do STJ de fls. 2221 e segs, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, pedindo a apreciação da constitucionalidade das normas infra identificadas, todas do Código de Processo Penal.
Disse no requerimento de interposição de recurso:
'Entende o recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou contra o sentido da Constituição da República Portuguesa, as seguintes disposições legais:
1 – O artº 363º do Código de Processo Penal, em violação dos arts 13º,1, 16º,
28º, 32º, 32º,5 da Constituição.
2 – O artº 318º,1 do Código de Processo Penal, em violação do disposto no artº
32º,5, 7 e 9 da Constituição, ao aceitar que o julgamento se processe, na sua maior parte por deprecada, fora do tribunal competente.
3 – O artº 140º do mesmo Código, em violação do artº 32º,1 e 5 da Constituição, ao interpretar-se tal norma no sentido de se permitir o aproveitamento das declarações do arguido para o incriminar.
4 – O artº 133º,1 al. a) do Código de Processo Penal, em violação do artº 32º da Constituição, ao interpretar-se essa norma no sentido de que ela não prejudica a possibilidade de valoração dos depoimentos dos co-arguidos para fundar uma condenação criminal.
5 – Os artºs 129º e 130º do CPP, em violação do disposto no artº 32º da Constituição na interpretação de que são admissíveis os depoimentos indirectos e os que se limitaram a reproduzir vozes públicas.
O recurso foi admitido sem qualquer limitação no tribunal a quo, o que, nos termos do artigo 76º nº 3 da Lei nº 28/82, não vincula este Tribunal.
Cumpre, pois, verificar se se mostram preenchidos os requsitos de admissibilidade do presente recurso relativamente a todas ou algumas das normas que o recorrente pretende ver apreciadas quanto à sua pretensa desconformidade constitucional.
2 - Nos termos do citado artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82 impõe-se que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, explicitando o artigo 72º nº 2 da mesma Lei que essa suscitação deve ocorrer perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada.
Por outro lado, decorre igualmente do artigo 70º nº 1 alínea b) que a norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada tenha sido aplicada, como ratio decidendi na decisão recorrida; do mesmo modo, quando a inconstitucionalidade é imputada a uma determinada interpretação normativa exige-se que ela corresponda
à interpretação dada naquela decisão.
Ora, desde logo, quanto às normas dos artigos 129º e 130º do CPP, não há o mínimo traço de que o recorrente tenha suscitado a sua inconstitucionalidade perante o STJ, pelo que delas se não poderá conhecer
Vejamos, agora, o que se passa com as restantes normas invocadas, começando pelo artigo 363º do CPP.
No requerimento de interposição de recurso, não refere o recorrente qualquer interpretação normativa relativa àquele preceito legal. Perante o tribunal recorrido – e só aí valerá o que o recorrente alegou – foi suscitada a inconstitucionalidade da norma, o que se sintetizou nas primeiras oito conclusões da 'motivação' do recurso. E delas resulta que o recorrente começa por invocar a violação da norma do artigo 363º do CPP (conclusões 1ª e 3ª) para depois por em causa uma interpretação em que se concluisse que 'está assegurado o direito de defesa decorrente da documentação integral das declarações orais produzidas em audiência de julgamento apenas para os casos em que haja meios técnicos idóneos de gravação, excluindo tal garantia nos tribunais em que não haja meios de gravação' (conclusão 4ª), acrescentando ainda que 'é forçosa a conclusão de que os arguidos deste processo estão, por tal via, prejudicados e descriminados por relação aos que são julgados em tribunais que usam meios idóneos à reprodução integral das declarações orais (conclusão 7ª).
Quer isto dizer que o recorrente, numa primeiro momento, entende infringido o próprio artigo 363º do CPP dirigindo-se aqui a sua censura, em termos de constitucionalidade, não à norma mas à sua (não) aplicação no tribunal de 1ª instância; num segundo momento, põe já em causa uma pretensa interpretação normativa, com o sentido apontado, que necessariamente pressupõe a inexistência de meios técnicos de gravação naquele tribunal.
Ora, é manifesto que, no primeiro caso, não está suscitada uma inconstitucionalidade da norma (ou de uma sua interpretação); no segundo, a apontada interpretação de modo algum se surpreende no acórdão recorrido, onde, a propósito, se escreveu:
'O presente recurso ainda se encontra subordinado à primitiva redacção do CPP, em que se recorria directamente para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo (432º, alínea c)). Os poderes de cognição do Supremo Tribunal estavam estabelecidos no artº 433º do mesmo Código segundo o qual, sem prejuízo do disposto no artº 410º nºs 2 e 3, o recurso para aquele tribunal visava exclusivamente o reexame da matéria de direito. Daqui decorre que o registo da prova não influía nos poderes de cognição do Supremo e, portanto, no âmbito do recurso. Assim, a ausência de registo da prova nunca poderia afectar o direito de defesa do recorrente no recurso. Por outro lado, não foi suscitada a questão da gravação da audiência de julgamento, nem foi decidido, explícita ou implicitamente, pelo tribunal que não haveria gravação ou outra forma de registo por carência de meios, nem em favor desta solução foi invocado o disposto no artº 363º do CPP. O recorrente nada requereu nesse sentido e o tribunal não se pronunciou, sendo certo que o Exmo Magistrado do M.P. nos dá conhecimento na sua resposta que o tribunal dispunha de meios técnicos de registo.'
Não poderá, assim, conhecer-se da invocada inconstitucionalidade do artigo 363º do CPP.
Idêntica situação se verifica no que concerne ao artigo 318º nº 1 do CPP onde o recorrente invocou a inconstitucionalidade da norma no ponto em que ela permitiria que o julgamento se processasse, na sua maior parte por deprecada, fora do tribunal competente..
É que o tribunal recorrido para além de fundamentar a improcedência do alegado por terem sido observados 'todos os princípios pertinentes á audiência de julgamento', acolheu ainda a argumentação dos recorridos no sentido da falta de reacção processual do recorrente ao despacho que ordenou as inquirições por deprecada, o que significa que esta é também uma razão de decidir que sempre subsistiria, mesmo que se julgasse procedente a arguição de inconstitucionalidade.
Invocou ainda o recorrente a inconstitucionalidade do artigo 140º do CPP e 133º nº 1 alínea a) do CPP, o primeiro na interpretação de se permitir o aproveitamento das declarações do arguido para o incriminar e o segundo no sentido de ele não prejudicar a possibilidade de valoração dos depoimentos do co-arguidos para fundar uma condenação criminal.
Ora, em primeiro lugar não se vê nas conclusões da motivação do recurso para o STJ que o recorrente tenha suscitado a inconstitucionalidade da norma do artigo
140º do CPP (fê-lo, sim, quanto aos artigos 133º nº 1 alínea a) e 344 nº 1 do CPP).
Em segundo lugar, ao decidir a questão suscitada, o tribunal que proferiu o acórdão recorrido não faz a mínima alusão, expressa ou implícita, àqueles preceitos legais, movendo-se no âmbito dos artigos 127º e 343º a 345º do CPP, pelo se pode concluir que as apontadas interpretações daqueles concretos preceitos (artigos 140º e 133º nº 1 al. a) do CPP) não constituíram razão de decidir do aresto em causa.
Em suma, pois, não se mostram preenchidos os requisitos de admissibildade do presente recurso, quanto a todas as normas invocadas pelo recorrente.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UCS.'
Desta decisão veio o recorrente reclamar, alegando, em síntese, que:
- Alegou, na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça a inconstitucionalidade dos artigos 129º e 130º do CPP e que ao julgado por esse Tribunal está subjacente uma interpretação das normas contidas naqueles preceitos no sentido de serem admissíveis os depoimentos indirectos e os que se limitam a reproduzir vozes públicas;
- Alegou a inconstitucionalidade da norma do artigo 363º do CPP e que a questão suscitada era de inconstitucionalidade normativa, tendo sido acolhida no acórdão impugnado a interpretação que o reclamante entende inconstitucional;
- Alegou a inconstitucionalidade da norma do artigo 318º nº 1 do CPP e que não pode ser indeferido o pedido de apreciação de inconstitucionalidade dessa norma com fundamento numa apreciação do STJ relativa à não reacção do arguido ao despacho que determinou a expedição de deprecadas, sendo certo que este despacho seria irrecorrível, só podendo ter suscitado a questão em sede de recurso para o STJ.
- Alegou a inconstitucionalidade das normas dos artigos 140º e 133º nº 1 alínea a) do CPP e que a valoração das declarações do arguido para o incriminar ou dos co-arguidos com o mesmo efeito no quadro dos artigos 127º e 343º a 345º do CPP tem subjacente a interpretação daquelas normas no sentido que considerou e considera inconstitucional.
O Ministério Público e o recorrido particular sustentam que a reclamação não deve proceder.
Cumpre decidir, apreciando, ponto por ponto, a reclamação deduzida.
2 – No que concerne às normas dos artigos 129º e 130º do CPP, reitera-se que nas alegações de recurso para o STJ o recorrente não suscitou a sua inconstitucionalidade – apenas ao reproduzir as alegações orais que teria feito na audiência de julgamento alude a esses preceitos mas só para sustentar que eles não permitiriam 'aceitar como válidos os depoimentos indirectos e os que se limitaram a reproduzir vozes públicas e convicções pessoais'.
Quanto à norma do artigo 363º do CPP, entendeu-se na decisão reclamada que o reclamante a referia, nas alegações de recurso para o STJ, em duas vertentes: por um lado, insurgindo-se quanto à sua não aplicação pelo tribunal de 1ª instância e, por outro, pondo em causa uma interpretação que pressuporia a inexistência de meios técnicos de gravação no mesmo tribunal.
Ora, naquela primeira vertente, é manifesto que a impugnação se dirige directamente à infracção ao disposto naquele preceito infra-constitucional, não colocando qualquer questão de inconstitucionalidade normativa; e não pode surpreender-se nessa não aplicação uma interpretação subjacente no sentido de que o princípios da igualdade e os direitos de defesa do arguido não são violados o facto de num tribunal existir a documentação integral em actas e noutros tal não acontecer.
Por outro lado e atendendo ao que o recorrente sintetiza nas conclusões das alegações para o STJ (conclusões 4ª e 7ª) é patente que a interpretação por ele questionada pressupõe a inexistência de meios de gravação no tribunal em causa, o que no caso se não verificaria, pelo que nunca poderia ter sido acolhida pelo acórdão recorrido uma tal interpretação.
No que respeita à norma do artigo 318º nº 1 do CPP, também não subsistem dúvidas de que o acórdão recorrido, para julgar improcedente a alegada violação daquele dispositivo, assentou numa razão de decidir autónoma no sentido de que o recorrente não reagira ao despacho que ordenara a inquirição por deprecada; tal significa que este fundamento sempre subsistiria a julgar-se inconstitucional a referida norma, na interpretação que hipoteticamente o acórdão recorrido lhe teria dado, sendo certo que está fora dos poderes de cognição deste Tribunal sindicar o acerto, no estrito plano do direito infra-constitucional, de tal fundamento.
No que concerne ao artigo 140º do CPP, sustenta o recorrente que alegou na motivação do recurso para o STJ – embora sem o levar às respectivas conclusões – a inconstitucionalidade da norma tal como interpretada na sentença então recorrida.
Ora, independentemente da resposta à questão de saber se os poderes de cognição do tribunal 'ad quem' estão condicionados á matéria que for levada às conclusões das alegações (e isto nada tem a ver com o dever oficioso de o juiz recusar a aplicação de normas inconstitucionais que resulta do disposto no artigo 204º da CRP) a verdade é que, referido aquele preceito na motivação, não se vê aí suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade, ao menos em termos processualmente adequados – o artigo 140º do CPP é apenas referido a fls. 2129 e no termo desse trecho da motivação apenas se alude à inconstitucionalidade dos artigos 133º nº 1 alínea a) e 344º nº 1 do CPP (fls. 2133).
Finalmente, quanto ao artigo 133º nº1 alínea a) do CPP que o recorrente insiste ter sido implicitamente aplicado, nada mais há a dizer do que se escreveu na decisão reclamada no sentido de que o acórdão recorrido não fez qualquer aplicação, explícita ou implícita, daquele preceito, nem se vendo que, valoradas as declarações do arguido no quadro dos artigos 127º e 343º a 345º do CPP, implicitamente se tenha aplicado a norma que impede de depor como testemunhas os arguidos e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. (quinze Ucs)
Lisboa, 12 de Dezembro de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa