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Proc. nº 274/97
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. Em 18 de Outubro de 1995, G..., Lda., instaurou contra o Estado Português acção com processo ordinário, para resolução de contrato de arrendamento, nos termos do artigo 64º, nº 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Alegou que, em 1991, celebrou com o Estado Português, representado pelo Director-Geral do Gabinete Coordenador do Alqueva, um contrato pelo qual deu de arrendamento o imóvel identificado nos autos, 'destina[do] à instalação e funcionamento de serviços do Estado, não lhe podendo ser dado outro uso sem autorização expressa, por escrito, [da senhoria]' (cláusula 7ª do contrato); que, em Abril de 1995, a sociedade EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A., comunicou à autora que a Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva foi extinta, tendo a mesma empresa sucedido ao Estado na posição por este detida no contrato de arrendamento do imóvel em causa, tal como determinado pelo artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro.
A autora invocou a ilicitude da cessão da posição contratual do Estado à EDIA, realizada sem autorização da senhoria, e a inconstitucionalidade do artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95, por restringir o direito de propriedade privada.
Contestou o Estado, afirmando que a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A., é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos que tem como objecto social a concepção, execução, construção e exploração do empreendimento do Alqueva, contribuindo para a promoção do desenvolvimento económico e social na respectiva área de intervenção; que, gerindo aquela empresa um serviço público do Estado, não existe incumprimento do contrato de arrendamento; que, de qualquer modo, ao arrendamento em causa não é aplicável o Regime do Arrendamento Urbano, mas o Decreto-Lei nº 228/95, de 11 de Setembro, que define o regime especial dos contratos de arrendamento [celebrados] pelo Estado ou por institutos públicos de imóveis necessários à instalação de serviços públicos; que o artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro, não é inconstitucional, pois estabelece um regime especial cuja base jurídico-constitucional se encontra no princípio da prossecução do interesse público consagrado no artigo 226º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
O Juiz da Comarca de Lisboa (5º Juízo Cível), em saneador-sentença de 19 de Outubro de 1996, considerou inconstitucional a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição; consequentemente, recusou a sua aplicação e julgou a acção procedente.
2. A representante do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Lisboa interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 1, alínea a), e nº 3, da Lei nº 28/82.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído:
'1º. A norma inserida em «lei-medida» que cria certa empresa pública, com a forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos – que dispõe que esta empresa sucede ao Estado na posição jurídica por este detida através da comissão instaladora da dita empresa, passando a ser titular de todos os correspondentes direitos e obrigações, bem como do património àquela comissão afecto, incluindo todo o existente nas instalações sediadas no local arrendado – não diz respeito ao «regime geral» do arrendamento urbano, pelo que se não insere no âmbito da competência legislativa reservada à Assembleia da República pela alínea h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa.
2º. Tal norma – limitando-se a adaptar à especificidade da «conversão» ou
«transformação» de meros serviços administrativos em entidades juridicamente autónomas (embora destinadas à prossecução do mesmo interesse público) princípios gerais vigentes em direito civil e comercial, segundo os quais as vicissitudes ocorridas na estrutura jurídica das sociedades não obstam à transmissão global do estabelecimento sem necessidade de consentimento do locador – não ofende os princípios da igualdade e do Estado de direito democrático.
3º. Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando- -se a reforma da decisão recorrida.'
Por sua vez, G..., Lda., formulou as seguintes conclusões:
'1 – A norma do art. 11º do Decreto-Lei nº 32/95 de 11/2 está ferida de inconstitucionalidade orgânica e material pelo que não pode ser aplicada pelos Tribunais – art. 207º da Constituição.
2 – A cessão pelo Estado à Edia, da sua posição de arrendatário no contrato de arrendamento do 4º andar do prédio urbano sito na Av. da República, nº 83, contrato em que a G.T.U. tem a posição de senhorio, por ter sido efectuado sem o acordo da G.T.U., foi ilícita;
3 – Pelo que, verificada a previsão da alínea f) do nº 1 do art. 64º do R.A.U. tem a G.T.U. o direito à resolução do contrato de arrendamento em causa.
4 – E, assim sendo, nenhuma censura merece a sentença recorrida.'
II
3. O presente recurso tem por objecto a constitucionalidade da norma contida no artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro, que o Tribunal da Comarca de Lisboa julgou organicamente inconstitucional e que, nos termos do artigo 207º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989), se recusou a aplicar.
Dispõe o artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95:
'A Empresa [a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra- -Estruturas do Alqueva, S.A.] sucede ao Estado na posição jurídica por este detida através da comissão instaladora da Empresa do Alqueva, passando a ser titular de todos os correspondentes direitos e obrigações, bem como do património afecto àquela comissão, incluindo todo o existente nas instalações até agora por esta utilizadas e de que, por sucessão, passa a ser arrendatária.'
Apesar de ser mais amplo o âmbito de aplicação da norma que acaba de se transcrever, a questão de constitucionalidade a apreciar será restrita à matéria do arrendamento, pois apenas essa está em discussão nos presentes autos.
4. O Tribunal da Comarca de Lisboa recusou a aplicação da norma que constitui o objecto do presente recurso, com a seguinte argumentação:
'O art. 11º do D.L. nº 32/95 de 11.2 ao estatuir que «a Empresa sucede ao Estado na posição jurídica por este detida, ..., passando a ser titular de todos os correspondentes direitos e obrigações, ..., incluindo todo o existente nas instalações até agora por esta utilizadas e de que, por sucessão, passa a ser arrendatária», o Governo legislou sobre o regime geral do arrendamento urbano, da exclusiva competência da Assembleia da República, para o qual não estava devidamente autorizado – art. 168º nº 1 al. h) da C. R. Portuguesa.
É que se a EDIA por sucessão ao Estado passasse a ser arrendatária das instalações em que este fosse inquilino, sem permissão do locador, estar-se-ia a criar um outro tipo de cessão, que não os previstos no R.A.U..
Ora, as matérias relativas ao regime geral do arrendamento urbano são da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, o que no caso em apreço não aconteceu, pelo que tal norma sofre do vício de inconstitucionalidade orgânica, a qual consiste na infracção das normas de competência.'
5. A partir da revisão constitucional de 1982, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o 'regime geral do arrendamento rural e urbano' (artigo 168º, nº 1, alínea h), nas versões de 1982 e 1989, artigo 165º, nº 1, alínea h), na versão de
1997).
Incluem-se por certo no 'regime geral do arrendamento' as regras relativas à celebração do contrato e às condições da sua validade, as regras definidoras das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a vigência do contrato, as regras respeitantes às condições e fundamentos da sua extinção
(acórdão do Tribunal Constitucional nº 77/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., p. 361 ss, 367).
Ora, o diploma em que se integra a norma questionada neste processo
– o Decreto-Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro – foi aprovado na sequência da decisão de relançamento do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva e da constituição da Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva (esta comissão, por sua vez, havia sido criada pelo Decreto-Lei nº 305/93, de 1 de Setembro, com o objectivo de dotar o empreendimento de 'uma estrutura marcadamente empresarial').
De acordo com o princípio da 'liberdade de escolha da forma de organização do sector empresarial do Estado' (cfr. Paulo Otero, Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado, Coimbra,
1998, p. 233 ss), aquele Decreto-Lei criou a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, e disciplinou a transição da anterior comissão instaladora para a nova sociedade assim constituída.
O Decreto-Lei nº 32/95 tem portanto como objecto estabelecer o regime aplicável à transformação de um serviço do Estado, com estrutura empresarial (a Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva), em entidade juridicamente autónoma que prosseguirá o mesmo interesse público (a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A.).
Este Decreto-Lei, tal como outros diplomas com um objectivo semelhante (constituição de sociedades anónimas de capitais públicos ou constituição de empresas públicas, na sequência de transformação ou conversão, em entidades juridicamente autónomas, de serviços anteriormente inseridos na administração central do Estado), contém certos aspectos específicos de regulamentação, estabelecendo desvios às regras gerais aplicáveis nos domínios correspondentes. Por exemplo, o próprio Decreto-Lei aprova os estatutos da sociedade (que são publicados em anexo), determinando que tais estatutos não carecem de redução a escritura pública (diferentemente do que resultaria das normas gerais do artigo 7º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 80º, nº 2, alínea e), do Código do Notariado), e estabelecendo que o registo comercial competente tem de ser feito com base no Diário da República em que os estatutos se encontrem publicados (ao passo que, na generalidade dos casos, tal registo se efectua com base na escritura pública de constituição da sociedade).
Dentro da mesma linha de orientação, a norma do artigo 11º do diploma determina que a EDIA sucede ao Estado, passando a ocupar a posição jurídica assumida pelo Estado quanto a diversas relações jurídicas. No que diz respeito às relações jurídicas obrigacionais, da norma em causa resulta a transmissão ex lege da posição contratual que o Estado tinha assumido através da Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva. A norma alude expressamente à transmissão, para a nova empresa, da posição de arrendatária das instalações utilizadas pela Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva.
Neste contexto, forçoso é concluir que a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95 não pode caracterizar-se como regra respeitante ao 'regime geral do arrendamento': o preceito regula uma situação específica e concreta decorrente da transformação da Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva na EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A. (entidade juridicamente autónoma, embora integrada na administração estadual indirecta, no sentido que à expressão é atribuído por Diogo Freitas do Amaral, Direito administrativo, vol. I, 2ª ed., Coimbra, 1994, p. 341 s, 375).
Não dizendo respeito ao 'regime geral do arrendamento', a norma questionada não se insere na área de competência reservada da Assembleia da República, nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989).
6. Invoca a recorrida G..., Lda., nas suas alegações, que a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 32/95 é restritiva de um direito fundamental – o direito de propriedade.
Ora, esta disposição, na parte em que rege a transmissão do direito ao arrendamento, não estabelece qualquer restrição ao direito de propriedade que deva ter-se por constitucionalmente proibida.
Na verdade, e entendendo-se que a liberdade de uso e fruição integra naturalmente o direito de propriedade, há-de admitir-se a possibilidade de a lei estabelecer limitações a tal liberdade, justificadas pela interferência de outros princípios constitucionais, maxime dos princípios da constituição económica (Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 333).
Deste modo, sempre seria constitucionalmente justificada uma eventual limitação à liberdade de uso e fruição de bens imóveis determinada pela necessidade de instalação de um serviço a que se reconhece 'o carácter de missão delegada do Estado para a promoção do desenvolvimento de uma vasta área' e que é qualificado como 'instrumento estratégico para o desenvolvimento de uma área importante do Alentejo'.
No caso dos autos, a norma em apreciação atribui prevalência ao interesse público do arrendatário sobre o interesse puramente privado do proprietário: a manutenção do arrendamento justifica-se pela manutenção do fim público a que se destinava o imóvel.
Verifica-se, portanto, que permanece a afectação do imóvel a um mesmo serviço público, apenas se alterando a forma de gestão de tal serviço.
7. Finalmente, não configura a norma questionada, na parte em que rege a transmissão do direito ao arrendamento, uma solução legislativa arbitrária ou discricionária incompatível com o princípio da igualdade ou com o princípio do Estado de direito democrático.
A transmissão do direito ao arrendamento (do mesmo modo que a transmissão da posição jurídica ocupada pelo Estado quanto a outras relações jurídicas) operada ex lege por aquela norma encontra a sua justificação na alteração da natureza jurídica da entidade à qual a lei cometeu a prossecução de um determinado fim ou interesse público – a realização da obra pública de construção do 'Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva'.
As razões que estão na base da exigência de autorização do senhorio para a validade da transmissão da posição contratual de arrendatário – ditadas pela necessidade de proteger o senhorio de alterações quanto à pessoa da contraparte, quanto ao fim a que é destinado o imóvel objecto do contrato, quanto à garantia patrimonial – não assumem no caso dos autos a relevância que têm na generalidade das situações. Com efeito, embora a pessoa do arrendatário passe a ser uma entidade jurídica distinta do Estado, é uma sociedade de capitais exclusivamente públicos; por outro lado, mantém-se o fim a que é destinado o imóvel, pois que nele continuam instalados os serviços do Empreendimento do Alqueva.
A 'sucessão' no arrendamento é determinada pela 'sucessão' na gestão do mesmo empreendimento, isto é, pela vinculação à mesma finalidade, que, como já antes ficou sublinhado, se traduz numa finalidade de interesse público.
Aliás, o fim último do serviço público que ocupava as instalações questionadas no presente processo – a Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva
– consistia precisamente em dar execução ao lançamento do Projecto de Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Alqueva, o que não pode excluir a criação da empresa que veio a suceder-lhe, a EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A..
Acresce que a solução legislativa adoptada – transmissão do direito ao arrendamento sem exigência de autorização do senhorio – corresponde à que se encontra consagrada no artigo 115º, nº 1, do R.A.U., relativamente ao trespasse do estabelecimento comercial ou industrial.
A ideia de 'sucessão' utilizada na lei para caracterizar a transmissão, para a EDIA - Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A., da posição jurídica que o Estado tinha assumido, através da Comissão Instaladora da Empresa do Alqueva, quanto à generalidade das relações jurídicas respeitantes à prossecução do empreendimento em causa, permite aproximar a situação aqui em análise da hipótese do trespasse do estabelecimento comercial ou industrial, já que o que caracteriza o trespasse é precisamente 'a transmissão acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento'
(cfr. artigo 115º, nº 2, alínea a), do R.A.U.).
Não se afigura portanto injustificado nem desrazoável que a mera alteração de natureza jurídica do arrendatário não implique a extinção da relação de arrendamento pré-existente.
Fica assim afastada a violação do princípio da igualdade e do princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de direito democrático.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
11º do Decreto- -Lei nº 32/95, de 11 de Fevereiro, na parte em que se refere à transmissão do direito ao arrendamento;
b) conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o julgamento quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Novembro de 1999 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa