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Processo n.º 154/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos foi proferida pelo relator em 23 de Março de 2000 a seguinte decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro):
«I. Relatório
1. C..., Ld.ª instaurou, junto do Tribunal Cível de Lisboa, acção declarativa, com processo ordinário, contra S..., pedindo a condenação do réu no pagamento de uma indemnização no valor de 13.364.322$00, a título de indemnização pelos danos materiais por si sofridos em consequência da sua actuação culposa, acrescida dos juros vincendos à taxa legal de 15%. Alegou, em suma, que contratou com o demandado a execução de um furo de pesquisa e captação de águas subterrâneas, que houve atrasos no início da execução dos trabalhos, tendo o referido furo ficado inutilizado na fase de entubamento, razão pela qual se realizou um segundo furo que também foi deficientemente executado, o que obrigou a autora a contratar uma outra empresa a fim de executar um novo furo, tendo a actuação e omissão culposa do réu causado danos materiais no montante do pedido. O réu contestou, impugnando a factualidade alegada pela autora e sustentando, em síntese, que cumpriu todas as obrigações a que se vinculou para com esta, não tendo praticado qualquer acto ou omissão susceptível de fazer emergir o dever de indemnizar, 'por o que quer que seja, incluindo a despropositada exigência de juros'. Por sentença de 18 de Maio de 1998, do 9º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, foi a acção julgada procedente, por provada, condenando-se o réu a pagar à autora a pedida quantia de 13.364.322$00, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento à taxa legal. Para tanto, considerou-se que
'[...] Estamos perante um contrato misto combinado de compra e venda e de prestação de serviços, este na modalidade de empreitada, ao qual se aplicam as regras próprias ou específicas do regime normativo especial inserto, respectivamente, nos artºs 874 e ss. e 1207 e ss. (vd. a contrario o artº 1156), todos do CCivil, de acordo com o princípio da liberdade contratual, expresso no artº 405/2 do mesmo CCivil'. Inconformado, interpôs o demandado recurso para Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a sua absolvição total do pedido ou, caso tal não se entenda, a repetição do julgamento, tendo em 22 de Abril de 1999 sido proferido Acórdão que decidiu pela procedência da apelação, revogando a sentença a 1ª instância e, em consequência, absolvendo o apelante do pedido. Considerou a Relação de Lisboa, para o efeito, que 'bem andou o Mº Juiz a quo em manter inalterada a peça processual do questionário', pelo que 'não vemos razão para ordenar a repetição do julgamento', acrescentando de seguida, relativamente à segunda questão suscitada pelas conclusões do apelante, que estava '[...]Em causa, ab initio a execução de um contrato de empreitada cujo objecto era a realização de um furo com certas e determinadas características. Apesar de o R. , como empreiteiro, ter realizado a obra com defeitos, o certo é que a A., como dona da obra, não exigiu a sua reparação, antes, pelo contrário, se contentou com a realização de um outro furo. Este segundo, como também já ficou dito, também não foi correctamente executado. Perante os defeitos apresentados no 2º furo, a A., como dona da obra, devia ter exigido a eliminação dos mesmos, de acordo com o disposto no art. 1221° do C. Civil. [...] Ora, in casu, a A.-apelada, perante os defeitos do 2º furo, tratou, de imediato, verificar as anomalias e contratar uma outra empresa para a realização de obra nova. Não tratou de ver se o R., como empreiteiro estava na disposição de reparar os defeitos ou de realizar obra nova, nem muito menos cuidou de saber se haveria da parte dele recusa na realização de tais trabalhos, para, em sede judicial, obter a sua condenação e, então sim, incumbir terceiros da realização da obra.
É claro que realizou as despesas peticionadas (elas foram dadas como provadas - cfr. respostas aos quesitos 13°, 14°, 15° e 16° ), mas só podia exigir do R.-apelante o pagamento dessas mesmas despesas se previamente tivesse obtido uma condenação prévia do empreiteiro e isto no caso de ele se recusar a reparar os defeitos da obra ou realizar obra nova. Não tendo procedido da forma supra referida, não pode exigir do empreiteiro o pagamento das despesas que, à revelia dele, realizou por intermédio de terceiro'.
2. Deste Acórdão interpôs a autora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando na conclusão 16º das alegações de recurso que oportunamente apresentou a inconstitucionalidade dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil,
'na interpretação dada e que a obrigaria a ter de utilizar previamente, obrigatória e sucessivamente, os seguintes passos: exigência da eliminação dos defeitos, exigência de nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto pelo empreiteiro ou por terceiro, por violação dos direitos e garantias de defesa e de acesso ao direito e aos Tribunais, constitucionalmente consagrados (artºs 13º, 16º, 18º e 20º da C.R.P.).' O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 18 de Novembro de 1999, negou provimento à revista, com, no que releva para o presente recurso de constitucionalidade, a seguinte fundamentação:
'[...] A questão, contudo, não se esgota aqui. A recorrente defende que tem direito a ser indemnizada nos termos gerais de direito, por execução defeituosa da empreitada. Ainda sem sair do regime específico da empreitada, alguma doutrina e jurisprudência defendem que em casos de manifesta urgência e estando o empreiteiro em mora para evitar mais prejuízos, é admissível que o dono da obra, directamente e sem intervenção do poder judicial, proceda à eliminação dos defeitos, exigindo, depois, as respectivas despesas. Acção esta que teria por base o princípio do estado de necessidade (artigo 339° do CC) – Pedro Romano Martinez – 'Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada', pág. 389. Ou, noutra perspectiva, colocando-se o empreiteiro em mora quanto ao seu dever de eliminar os defeitos e sendo urgente a eliminação dos mesmos, tal eliminação pelo dono da obra é lícita nos termos do artigo 335° n° 2 do CC, já que existindo colisão de direitos, o direito do dono da obra a que esta seja realizada sem defeito prevalece sobre o direito empreiteiro a ser ele próprio a eliminar os defeitos – Ac. RP de 22.01.96 CJ, I, pág. 203. Trata-se, ao fim e ao cabo, do retomar da tese do Prof. Vaz Serra – Bol. 146, pág. 229 – que no seu anteprojecto previa essa possibilidade e que, como é sabido, não passou para a versão definitiva. Independentemente da aceitação ou não de tais enquadramentos teóricos, certo é que não têm aplicação ao caso em análise. O carácter excepcional que assume a possibilidade da actuação do dono da obra
(como resulta desde logo do recurso à figura do estado de necessidade) assenta no pressuposto da mora do empreiteiro e da manifesta urgência para evitar mais prejuízos. Tais pressupostos não vêm provados, nem foram invocados. A recorrente não solicitou ao empreiteiro a realização de quaisquer obras, não o interpelou para cumprir, não exigiu a eliminação dos defeitos, ou a realização de nova obra, não o colocou perante a questão de a obra não ser adequada ao fim a que se destinava. Também não há elementos que apontem para uma manifesta urgência ou a necessidade de evitar prejuízos. Socorre-se a recorrente do disposto no artigo 1223° do C. Civil. Aí se estipula que o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado. Tem-se entendido que o direito que a lei confere de ressarcimento se refere aos danos que não sejam reparados com a eliminação dos defeitos, a nova construção ou a redução do preço. Sob pena de a lei consentir um duplo ressarcimento pelo mesmo facto, aquela indemnização tem de respeitar a outros prejuízos que não sejam compensados com a eliminação dos defeitos ou com a redução do preço da empreitada – Ac. STJ de
17.05.83 BMJ n° 327, pág. 646. Ora, o que, a propósito, vem provado é unicamente o seguinte: a autora contratou o réu para a execução de um furo de pesquisa e captação de águas subterrâneas; a primeira perfuração efectuada pelo réu ficou inutilizada; as partes acordaram na realização de um segundo furo; os testes realizados a este segundo furo apontam algumas deficiências técnicas; a autora contratou uma outra empresa para a execução de um novo furo. Saliente-se que não existiu reclamação da autora relativamente ao primeiro furo nem qualquer exigência no que toca ao segundo. Tendo pago ao réu pelos dois furos a quantia de 6 400 000$00, a autora despendeu a importância de 11 523 116$00 pelo terceiro furo. A diferença de preços tem um significado que este Tribunal desconhece, tanto mais que o 2° furo produziu algum caudal. O grau de exigência ou necessidade de caudal por parte da recorrente são igualmente desconhecidos. Parece evidente que ao aumento substancial do custo corresponderá uma mais valia técnica. Diga-se, aliás, que se ignora a razão pela qual ficou inutilizado o 1° furo. O Supremo, como Tribunal de revista, só julga em princípio de direito, aplicando o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido (artigo 729º do C. Processo Civil). Dos factos fixados nas instâncias não é possível concluir pela existência de um nexo de causalidade entre os dois furos feitos pelo réu e os estudos geológicos e o terceiro furo contratados posteriormente pela autora a uma outra empresa.
É certo que ao contrato de empreitada são aplicáveis além das normas especiais, também as regras gerais relativas aos contratos e às obrigações daí decorrentes, mas a verdade é que a autora não provou na altura própria que existisse um cumprimento defeituoso que lhe acarretasse os danos que invoca, nem demonstrou que a actuação do réu fosse causa adequada das despesas posteriormente feitas. Por tudo isso não tem a recorrente o direito de ser indemnizada. Nem se vê que exista qualquer inconstitucionalidade. Dentro do princípio da liberdade contratua1, que é um dos princípios fundamentais do nosso direito civil, as partes têm a liberdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil e de incluir nos contratos as cláusulas que lhes aprouver. E têm a faculdade de auto-regulamentar a sua esfera jurídico-privada de acordo com o princípio da autonomia privada subjacente ao ordenamento jurídico-civil. Tudo, obviamente, dentro dos limites da lei e com respeito pelo princípio da igualdade. Nenhuma ofensa é feita quando a parte voluntariamente se submete ao regime específico da empreitada e não usa os mecanismos que a lei lhe concede para defesa dos seus direitos, ou, como também é o caso, não faz prova bastante desses mesmos direitos'.
3. Desta decisão, interpôs a autora o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 1221º e 1222º do Código Civil, 'na interpretação dada e aceite pelo douto Acórdão em crise, de que, antes da utilização da faculdade prevista no artigo 1223° do mesmo diploma
(pedido de indemnização nos termos gerais) obrigava a recorrente a exigir, prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto
(a que se referem aqueles dois artigos 1221° e 1222º)', porquanto 'tais artigos, na interpretação dada pelo ST J, violam, como então se alegou, os direitos e garantias de defesa e de acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrados, estando, assim, em oposição ao disposto designadamente nos artigos
13°, 16°, 18° e 20° da Constituição'. Cumpre decidir. II. Fundamentos
4. Analisando os autos, com o objectivo de verificar se se encontram preenchidos os requisitos para o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, conclui-se que é de proferir decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro. Na verdade, constituem requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, além do prévio esgotamento dos recursos ordinários e da suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo, a aplicação, pela decisão recorrida, como ratio decidendi, das normas constitucionalmente impugnadas. Este último requisito resulta do facto de a intervenção do Tribunal Constitucional em sede de recurso se dar para reapreciação ou reexame de uma decisão de uma questão de constitucionalidade que surgiu incidentalmente num processo concreto, e, portanto, com uma natureza instrumental em relação à decisão do mesmo processo. Só, na verdade, se as normas cuja apreciação sub specie constitutionis é requerida a este Tribunal tiverem sido aplicadas como ratio decidendi pelo Tribunal recorrido é que a decisão sobre a questão de constitucionalidade se projectará com utilidade no processo, confirmando essa decisão ou conduzindo à sua reformulação. Caso contrário, qualquer que fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, ela não se projectaria utilmente no processo. E o mesmo se deve dizer, aliás, se na decisão recorrida se encontrar, além da norma cuja constitucionalidade é impugnada, outro fundamento por si só bastante para a ela chegar – outra ratio decidendi. Também neste caso não deverá o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental deste e a impossibilidade de a sua decisão vir a alterar o decidido pelo tribunal a quo.
5. O presente recurso de constitucionalidade tem por objecto a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil, interpretadas no sentido de que 'antes da utilização da faculdade prevista no artigo 1223° do mesmo diploma (pedido de indemnização nos termos gerais) obriga[m] a recorrente a exigir, prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto (a que se referem aqueles dois artigos
1221° e 1222º)'. Segundo a recorrente, tal dimensão normativa violaria os direitos e garantias de defesa e de acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrados. Uma análise do Acórdão recorrido impõe, no entanto, a conclusão de que nele se encontra outro fundamento, para além da(s) norma(s) impugnada(s), só por si suficiente para fundamentar a decisão a que se chegou – de negação de provimento
à revista. Na verdade, nesse aresto, o Supremo Tribunal de Justiça, depois de ponderar que
'a recorrente não solicitou ao empreiteiro a realização de quaisquer obras, não o interpelou para cumprir, não exigiu a eliminação dos defeitos, ou a realização de nova obra, não o colocou perante a questão de a obra não ser adequada ao fim a que se destinava' (sendo a este ponto que se refere a dimensão normativa dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil impugnada pela ora recorrente), e que
'também não há elementos que apontem para uma manifesta urgência ou a necessidade de evitar prejuízos', entra na análise da invocação pela recorrente do disposto no artigo 1223° do Código Civil (pedido de indemnização nos termos gerais). Reconhecendo que, segundo esta norma, 'o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado', adopta-se, seguidamente, no Acórdão recorrido, o entendimento segundo o qual 'o direito que a lei confere de ressarcimento se refere aos danos que não sejam reparados com a eliminação dos defeitos, a nova construção ou a redução do preço' – 'sob pena de a lei consentir um duplo ressarcimento pelo mesmo facto, aquela indemnização tem de respeitar a outros prejuízos que não sejam compensados com a eliminação dos defeitos ou com a redução do preço da empreitada – Ac. STJ de 17.05.83 BMJ n° 327, pág. 646.' E, partindo desta posição, conclui-se que 'a autora não provou na altura própria que existisse um cumprimento defeituoso que lhe acarretasse os danos que invoca, nem demonstrou que a actuação do réu fosse causa adequada das despesas posteriormente feitas', pelo que se não reconhece à recorrente o direito de ser indemnizada. Resulta, pois, com meridiana clareza, da decisão recorrida, que nela não se adoptou qualquer interpretação dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil segundo a qual a dedução do pedido de indemnização ressalvado no artigo 1223° do mesmo diploma 'obriga a recorrente a exigir, prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto (a que se referem aqueles dois artigos
1221° e 1222º)'. Antes se negou que a recorrente tivesse feito prova, como lhe competia, dos pressupostos (cumprimento defeituouso e nexo de causalidade, em relação aos danos) da indemnização, por isso se não reconhecendo este direito.
6. É certo que, segundo o Acórdão recorrido, a indemnização nos termos gerais, ressalvada no artigo 1223º, respeita a outros prejuízos, que não sejam compensados com a eliminação dos defeitos ou com a redução do preço da empreitada, o que é fundamentado na necessidade de evitar um duplo ressarcimento dos mesmos prejuízos. Todavia, tal entendimento do direito de indemnização, nos termos gerais da responsabilidade civil, respeita apenas à medida da indemnização – rectius, aos danos cuja indemnização o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui. Bem diferente é afirmar – como se pretenderia se se aplicasse a dimensão normativa impugnada pela recorrente – que a invocação de um direito de indemnização nos termos gerais requer, como pressuposto, que, antes da utilização dessa faculdade, ressalvada no artigo 1223° do Código Civil, se exija, 'prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto (a que se referem aqueles dois artigos 1221° e 1222º)'. Este último entendimento não foi, claramente, o aplicado no Acórdão recorrido, como se comprova pelo facto de a concessão do direito de indemnização (embora apenas relativamente a outros prejuízos, não compensados com a eliminação dos defeitos ou com a redução do preço) ter sido negada, não por uma razão de direito correspondente a esse entendimento, mas apenas pelo facto de, como se disse, a recorrente não ter satisfeito o ónus de provar os respectivos pressupostos.
7. Tem, pois, que concluir-se as normas referidas pela recorrente não foram aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão normativa que vem impugnada. Esse Tribunal não se baseou numa interpretação dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil segundo a qual, para que pudesse ser reconhecido o direito de indemnização a recorrente haveria primeiro de ter exigido obrigatoriamente a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto. Antes negou o direito de indemnização, por determinados prejuízos, com fundamento na falta de prova dos respectivos pressupostos, que analisou (sendo certo que uma questão de constitucionalidade referida à medida dos prejuízos ressarcíveis nos termos gerais e ressalvados no artigo 1223º do Código Civil não foi adequadamente trazida à apreciação do Tribunal Constitucional, não correspondendo, designadamente, à dimensão normativa enunciada pela recorrente). Assim, fosse qual fosse o sentido da decisão que recaísse sobre a questão de constitucionalidade referida à dimensão normativa cuja constitucionalidade é impugnada (e, repete-se, não aplicada pelo Tribunal recorrido), poderia manter-se inalterado o decidido (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 454/91,
337/94, 608/95, 577/95, 1015/96, 196/97 e 508/98, publicados, os três primeiros, no Diário da República, II série, respectivamente de 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de 1994, e 19 de Março de 1996). Tanto basta para, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, impor o não conhecimento do presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decido, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional, não tomar conhecimento do presente recurso e condenar a recorrente em custas, com 6 unidades de conta de taxa de justiça.»
2. A recorrente C..., Ld.ª vem reclamar desta decisão para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional,
'porquanto, contrariamente ao entendido naquela douta decisão, a sentença da 1ª instância fez prova mais que suficiente do cumprimento defeituoso pelo recorrido, conforme consta, nomeadamente: da alínea C da Especificação
(necessidade de um novo furo), dos Docs. 9 e 10 da recorrente juntos com a sua p.i., das Respostas aos Quesitos 1º e 4º a 12º. Por outro lado, o prejuízo da recorrente encontra-se comprovado nos autos, conforme respostas aos quesitos 14º a 16º, sendo que a sentença da 1ª instância deu como comprovados os danos, o facto ilícito e a culpa, tal como o respectivo nexo de causalidade. Finalmente, ao contrário do que naquela douta decisão se pretende fazer crer, foi com base na interpretação dada aos artigos 1221º e 1222º e, ainda, 1223º, todos do Código Civil, que foi efectivamente negado o direito à indemnização a favor da recorrente, preceitos que são por ela considerados inconstitucionais por ofensa, designadamente, dos arts. 13º, 16º, 18º, e 20º da Constituição, como melhor se desenvolverá nas Alegações.' Cumpre decidir.
II. Fundamentos
3. A presente reclamação vem assente, antes do mais, no facto de, segundo afirma a reclamante, ter sido feita prova do cumprimento defeituoso pelo recorrido e do prejuízo que para a reclamante adveio desse cumprimento defeituoso. Ora, na decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 1999 – pode ler-se (fls. 308 dos autos) que 'também não há elementos que apontem para uma manifesta urgência ou a necessidade de evitar prejuízos.' E nela escreveu-se, sobre o direito de ressarcimento nos termos do artigo 1223º do Código Civil:
'ora, o que, a propósito, vem provado é unicamente o seguinte: a autora contratou o réu para a execução de um furo de pesquisa e captação de águas subterrâneas; a primeira perfuração efectuada pelo réu ficou inutilizada; as partes acordaram na realização de um segundo furo; os testes realizados a este segundo furo apontam algumas deficiências técnicas; a autora contratou uma outra empresa para a execução de um novo furo. (...) Dos factos fixados nas instâncias não é possível concluir pela existência de um nexo de causalidade entre os dois furos feitos pelo réu e os estudos geológicos e o terceiro furo contratados posteriormente pela autora a uma outra empresa.
É certo que ao contrato de empreitada são aplicáveis além das normas especiais, também as regras gerais relativas aos contratos e às obrigações daí decorrentes, mas a verdade é que a autora não provou na altura própria que existisse um cumprimento defeituoso que lhe acarretasse os danos que invoca, nem demonstrou que a actuação do réu fosse causa adequada das despesas posteriormente feitas.'
(itálico aditado). Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar os factos dados como provados pelas instâncias. A este Tribunal apenas compete apreciar a conformidade constitucional de normas aplicadas pela decisão recorrida, e cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. A reclamação contra a decisão sumária em questão não pode, pois, proceder com fundamento na remissão para a prova alegadamente feita pela reclamante nas instâncias – a qual, aliás, não foi reconhecida na decisão recorrida, no que toca a um 'cumprimento defeituoso que lhe acarretasse [à reclamante]os danos que invoca' e ao nexo de causalidade entre a actuação do réu e as despesas efectuadas.
4. Sustenta ainda a reclamante que, contrariamente ao afirmado na decisão sumária, 'foi com base na interpretação dada aos artigos 1221º e 1222º e, ainda,
1223º, todos do Código Civil, que foi efectivamente negado o direito à indemnização a favor da recorrente.' Como resulta das transcrições efectuadas logo na decisão sumária em apreço, o tribunal a quo não se baseou no acórdão recorrido, como ratio decidendi, num entendimento do artigo 1223º do Código Civil segundo o qual o direito de indemnização exige 'prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto (a que se referem aqueles dois artigos 1221° e 1222º)'. Antes se disse expressamente nesse aresto, depois de se tratar dos pressupostos para o dono da obra proceder à eliminação dos defeitos desta e exigir o pagamento das respectivas despesas:
'Independentemente da aceitação ou não de tais enquadramentos teóricos, certo é que não têm aplicação ao caso em análise. O carácter excepcional que assume a possibilidade da actuação do dono da obra
(como resulta desde logo do recurso à figura do estado de necessidade) assenta no pressuposto da mora do empreiteiro e da manifesta urgência para evitar mais prejuízos. Tais pressupostos não vêm provados, nem foram invocados. E concluiu-se, como se viu, pela inexistência de prova de um cumprimento defeituoso que acarretasse à reclamante os danos que invocava, ou de que a actuação do réu tivesse sido causa adequada das despesas posteriormente feitas. Como se salientou na decisão sumária reclamada, 'resulta, pois, com meridiana clareza, da decisão recorrida, que nela não se adoptou qualquer interpretação dos artigos 1221º e 1222º do Código Civil segundo a qual a dedução do pedido de indemnização ressalvado no artigo 1223° do mesmo diploma ‘obriga a recorrente a exigir, prévia e obrigatoriamente, a eliminação dos defeitos, nova construção, redução do preço, resolução do contrato e, por fim, a execução para prestação de facto (a que se referem aqueles dois artigos 1221° e 1222º)’. Antes se negou que a recorrente tivesse feito prova, como lhe competia, dos pressupostos
(cumprimento defeituouso e nexo de causalidade, em relação aos danos) da indemnização, por isso se não reconhecendo este direito.' A norma – rectius dimensão normativa – em questão não foi, assim, aplicada na decisão recorrida, pelo que, faltando um pressuposto do recurso de constitucionalidade interposto, não podia dele tomar-se conhecimento, conforme se decidiu na decisão sumária reclamada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se: a. Indeferir a presente reclamação e, confirmando a decisão sumária reclamada, não tomar conhecimento do presente recurso; b. Condenar a reclamante em custas, fixando em 15 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa