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Proc. nº 489/00
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. AL... vem reclamar para a conferência da decisão sumária de fls.
4480, cujo conteúdo é o seguinte:
'1. AL..., arguida em processo criminal comum, com intervenção do tribunal de júri, pela prática de três crimes de burla agravada, recorreu da decisão do Tribunal da Comarca de Cascais de 23 de Janeiro de 1998 (fls. 3588 e segs.) que, invocando o disposto nos artigos 361º e 98º do Código de Processo Penal, não admitiu a junção aos autos de uma Exposição sobre a matéria de facto, elaborada pela sua anterior mandatária. Na motivação do recurso (fls. 3659 e segs.), a arguida afirmou, no essencial, que a exposição em causa continha 'uma análise da prova produzida ao longo de várias sessões do julgamento no qual a Advogada M... participou até 18/12/97, como patrona da arguida; contendo a aludida exposição – em síntese – uma
'declaração de ciência da prova produzida sobre a matéria da acusação e da defesa' que ao Tribunal de júri cumpria conhecer para poder, em consciência, decidir a matéria de facto e elaborar o douto Acórdão final'. Nas conclusões apresentadas, pode ler-se designadamente:
' 1) Recorre-se da 'deliberação' de 23/01/98 que 'não admitiu, 'mandou desentranhar e devolver a Exposição que a Drª. M... apresentou, nos termos do artº 98 do C.P.P.
2) Tal declaração foi feita no exercício do direito de petição consagrado nos artºs. 98 C.P.P. e 52 nº 1 da C.R.P.
(...)
5) Ao não admitir a junção da referida 'Exposição' o Mº Juiz a quo impediu o tribunal de Júri de tomar conhecimento de matéria constante dessa Exposição.
6) A qual era decisiva para a averiguação da verdade material.
7) Violou, por isso, o disposto nos arts. 323, 327 e 340 do C.P.P. que consagram os princípios da investigação ou da verdade material.
(...)
13) Deveria, pelo exposto ser a mesma obrigatoriamente integrada no processo, sem necessidade de sobre ela recair qualquer despacho (artº 98 nº 1 C.P.P.).
(...)
15) Ao proferir o despacho de fls. 3456, o Mº Juiz a quo fez errada interpretação e aplicação do preceituado nos artºs 98 nº 1 da C.P.P. e 52 da C.R.P.
(...)
19) Nunca o Mº Juiz a quo poderia cercear o direito constitucional de defesa da arguida submetendo-o ao critério de uma Advogada!
(...)
32) Decidindo em contrário a douta deliberação recorrida violou, entre outros, o preceituado nos artºs. 61, 98 C.P.P. e 32 da C.R.P.
(...)
41) A não admissão aos autos da aludida Exposição foi, por si só, susceptível de restringir os poderes de cognição do tribunal a quo; devendo – também por isso – a deliberação recorrida ser revogada.
42) Por violação expressa, pelo menos, das normas dos artºs 61, 98º, 323, 327 e
340 do C.P.P. e 32, 52, nº 1 C.R.P.
(...)'
O referido recurso subiu conjuntamente com o recurso da sentença (de fls. 3528 e segs.) que condenou a arguida na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.
2. Por acórdão de 9 de Fevereiro de 2000 (de fls. 4272 e segs.), o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso da decisão que não admitiu a junção da Exposição (a fls. 4386-4389). Com efeito, depois de ter refutado a ideia de que tal junção poderia corresponder ao exercício do direito de petição, o referido Tribunal entendeu que 'tal exposição nunca poderá ser considerada como meio de prova, nem sequer integrando a situação prevista no art. 98º, nº 1. É natural que, em face de processo de indesmentível complexidade, o mandatário vá tomando notas da prova produzida para, com base nelas, estruturar a final a alegação oral. É esta sem dúvida a natureza da
'exposição' em causa' Assim, e tendo designadamente em conta 'que quem elaborou a 'exposição' e a apresentou – já fora de prazo – foi quem já não tinha mandato da arguida, por a ele ter renunciado', e que 'nenhuma norma legal existe que permita a junção de um projecto – pois é, ao fim e ao cabo, de que se trata – de alegações orais de quem, já tendo sido mandatária da arguida, a tal renunciou antes das mesmas', considerou improcedente o recurso.
3. Do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça reclamou a arguida para a conferência (fls.4402), invocando a sua nulidade, 'nos termos do disposto nas alíneas b) e d) do nº 1 do artº 668º do C.P.C., ao caso aplicáveis ex vi das normas dos arts. 732º e 716º do mesmo diploma, subsidiariamente aplicáveis ao processo penal – art. 4º C.P.P.'. Tal reclamação veio a ser indeferida, por acórdão de 31 de Maio de 2000 (de fls.4449 e segs.).
4. Notificada do indeferimento da reclamação, a arguida recorreu do acórdão de 9 de Fevereiro de 2000 para o Tribunal Constitucional (por requerimento de 15 de Junho, a fls. 4454 e segs.), nos termos da alínea b) do nº
1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas dos 'artºs 98º nº 1 e 61º nº 1 do Código de Processo Penal, na interpretação, e consequente aplicação, que dela foi feita pelo Tribunal a quo (cf. artº 80º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional)', indicando como normas constitucionais violadas 'as dos artºs 18º, 32º nºs 1 e 7 e 52º, que consagram os princípios da 'Força Jurídica dos Preceitos Constitucionais', das 'Garantias do Processo Criminal' e do 'Direito de Petição'.
Afirma a recorrente que suscitou (logo na motivação do recurso da decisão sobre a Exposição, e nas intervenções posteriores) a questão 'de o Mº Juiz titular dos autos em primeira instância ter feito uma interpretação das normas dos artºs 98º nº 1 e 61º nº 1 do CPP, e respectiva aplicação – ao ordenar o desentranhamento da exposição apresentada pela arguida', violadoras dos artigos 32º, nºs 1 e 7 e 52º, nº 1, da Constituição. Deste modo, a recorrente indica como objecto do presente recurso 'a questão da constitucionalidade das normas contidas nos artºs 98 nº 1 e 61º nº 1 do CPP nas interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida, e de cuja aplicação resultou para a arguida o desentranhamento da exposição apresentada pela sua primitiva signatária, e a sua subtracção à possibilidade de ser apreciada pelo Tribunal do Júri e pelas instâncias de recurso; e, consequentemente, o gravíssimo cerceamento das garantias de defesa em processo criminal, incluindo o direito de intervir no processo nos termos da lei, de acordo com o preceituado no artº 32º, nºs 1 e 7 da C.R.P., e do direito de petição que lhe assiste, ao abrigo do artº 52º nº 1 da C.R.P. '
O recurso foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 3 de Julho de 2000, por decisão que não vincula o Tribunal Constitucional (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
5. Como exige a lei (al. b) do nº 1 do artigo 70º e nº 2 do artigo 72º da Lei nº
28/82) e repetidamente tem sido afirmado por este Tribunal, é pressuposto da admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da mesma Lei que a questão de inconstitucionalidade normativa tenha sido invocada 'durante o processo', por forma a que o tribunal recorrido dela possa tomar conhecimento e a tenha que decidir (cfr., a título de exemplo, os acórdãos nºs 62/85, 90/85, 147/85, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, em vol. 5, págs. 497 e 663 e vol. 6, pág. 633, 160/94 e 418/98, in Diário da República II Série, de 28 de Maio de 1994 e de 1 de Agosto de 1994).
Sucede que, diferentemente do que sustenta, a recorrente não suscitou durante o processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, de violação da Constituição por uma norma ou uma interpretação normativa. O que a recorrente, repetidamente, durante o processo, questionou foi, para além da legalidade, a constitucionalidade da decisão que não admitiu a junção da Exposição em causa. Com efeito, a recorrente afirmou expressamente e por diversas vezes que 'a douta deliberação recorrida violou entre outros, o preceituado nos artºs 61º, 98º C.P.P. e 32º da C.R.P.', ou que 'ao proferir o despacho de fls. 3456, o Mº Juiz a quo fez errada interpretação e aplicação do preceituado nos artºs 98º nº 1 do C.P.P. e 52º da C.R.P.'. Apenas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional colocou, pela primeira vez, a questão da inconstitucionalidade das normas que pretende sejam apreciadas. Ora não ocorre, manifestamente, no presente recurso nenhuma razão que justifique a dispensa do ónus de invocar a inconstitucionalidade durante o processo. Só em casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, ou em que não era de todo previsível a aplicação de uma norma (ou de uma sua interpretação) na decisão recorrida é que será admissível a arguição em momento posterior – nomeadamente, no requerimento de interposição de recurso (cfr., a título de exemplo, os já citados acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94). Tal excepcionalidade, manifestamente, não ocorre neste caso. Falta, por conseguinte, um pressuposto indispensável para que possa ser julgado o objecto do presente recurso.
Assim, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6Ucs.'
Sustenta a reclamante, em primeiro lugar, que se verifica 'manifesta contradição entre a (...) fundamentação' da decisão reclamada 'e a própria decisão' e, em segundo lugar, que não poderia ter invocado a inconstitucionalidade em causa em momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, por não ter disposto de oportunidade para o efeito.
2. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a reclamação ser manifestamente infundada.
3. Quanto à alegada contradição, ela resultaria de a decisão de não conhecimento do objecto do recurso, por um lado, se fundamentar na circunstância de a ora reclamante nunca ter invocado, durante o processo (nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82), qualquer questão de inconstitucionalidade normativa e, por outro, afirmar, até por diversas vezes, que a mesma reclamante sempre questionou a constitucionalidade da decisão recorrida.
'Donde, (...) A conclusão inequívoca – aliás expressamente reconhecida na douta decisão sumária proferida – de que, durante o processo a Recorrente suscitou' e
'repetidamente' questões de inconstitucionalidade, nomeadamente da decisão recorrida, que não admitiu a junção da Exposição em causa'. Na verdade, da leitura da reclamação resulta que a reclamante não toma em conta que o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas é a norma e não a decisão que a aplicou, como se indica na decisão sumária. Nada há, pois, a acrescentar quanto a este ponto.
3. Quanto à segunda questão colocada – cuja compatibilidade com a primeira, aliás, não é evidente –, também não tem razão a reclamante. Com efeito (e sem repetir o que consta da decisão reclamada quanto ao pressuposto de admissibilidade agora em causa), não é exacto que a reclamante não tenha disposto de oportunidade processual para invocar, perante o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade das normas que indica no requerimento de interposição de recurso; bastaria tê-lo feito quando invocou a inconstitucionalidade das decisões que as aplicaram. Para o que agora releva, haveria de a ter suscitado na motivação do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão, de fls. 3588, que não admitiu a junção aos autos da Exposição que neles pretendia incorporar; no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, aliás, sustenta tê-lo feito.
Nestes termos, indefere-se a presente reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa