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Processo n.º 306/95
1ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. M..., que também usa M..., e outros, devidamente identificados nos autos, instauraram, no Tribunal Judicial da comarca de Peso da Régua, acção declarativa com processo ordinário contra T..., Lda., com sede nessa cidade, pedindo: a) que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio rústico que identificam, do qual, em 1982, venderam à ré uma fracção com a área de 950 metros quadrados; b) que lhes seja reconhecido fazer parte desse prédio uma fracção com a área de 124 metros quadrados que a ré ocupou, malogradas que foram as negociações de venda dessa parcela; c) que a ré seja condenada a demolir o que, nessa segunda área, construiu, restituindo o terreno respectivo aos autores; d) que a ré seja, bem assim, condenada a tapar as janelas que para este terreno deitam directamente e a construir, nas varandas existentes na construção, parapeitos com a altura mínima de 1,5 metros; e, e) que se condene a ré a pagar-lhes a indemnização que se liquidar em execução de sentença. Na 1ª instância foi proferida sentença a julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio em causa, e que dele faz parte uma área de 56,04 metros quadrados ocupada pela construção da ré, condenando-se esta a indemnizar os autores pela ocupação dessa área e pelos prejuízos sofridos pela destruição da vinha aí existente, com direito a benefício (Região Demarcada do Douro), tudo a liquidar em execução de sentença. O Tribunal da Relação do Porto, para quem os autores apelaram, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença da 1ª instância. Recorreram os autores, de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, que, no entanto, a negou.
2. Inconformados, os autores interpuseram, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da interpretação e aplicação feitas pelo acórdão recorrido das normas dos artigos
334º, 566º, n.º 1, e 829º, n.º 2, todos do Código Civil, por alegada ofensa 'aos princípios consagrados nos artigos 62º, 17º, 18º, n.º 2, e 13º da Constituição da República Portuguesa'. Recebido o recurso no tribunal recorrido, veio a ser proferido, já neste Tribunal, o despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional a que os recorrentes deram resposta, formulando as seguintes conclusões:
'1º – O direito de propriedade privada é um direito económico consagrado no art.º 62º da CRP, que, como direito fundamental de natureza análoga, goza do regime dos direitos, liberdades e garantias, por força do preceituado no art.º
17º da CRP.
2º – O direito de propriedade privada goza das garantias previstas naquele art.º62º, designadamente no seu n.º 1 e no n.º 2 do art.º 18º também da CRP.
3º – A sua transmissão em vida ou por morte é feita nos termos da Constituição e só pode ser restringido por lei, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
4º – A recorrida, em Junho de 1985, desobedeceu ao embargo judicial ordenado a uma obra que tinha em construção numa parcela de terreno com a área de 950 m2 que havia comprado aos recorrentes e prolongou essa obra, contra a vontade destes, ocupando-lhes, segundo os tribunais ordinários, 56,04 m2 de terreno, cuja restituição faz parte do pedido da acção do presente recurso.
5º – Os recorrentes estão desde então arbitrariamente privados da referida parcela, cuja restituição foi recusada pelos ditos tribunais ordinários, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça.
6º – Este, no acórdão recorrido, interpretou o disposto no artigo 334º do Código Civil no sentido de não violar os princípios expressos nos art.ºs. 13º, 18º e
62º da Constituição da República Portuguesa por entender que o direito de propriedade deve ceder na plenitude das suas características quando tal se justifique e tenha cobertura legal, considerando justificação o facto de a procedência do pedido de restituição daquela parcela implicar um resultado não razoável e como cobertura legal o disposto no art.º 566º, n.º 1 e no art.º 829º, n.º 2, ambos do Código Civil.
7º – É completamente inaceitável tal interpretação que não estabelece as devidas distinção e hierarquia entre as referidas normas constitucionais que contemplam e garantem o direito de propriedade e quaisquer outras normas legais, como são as citadas do Código Civil, que nem sequer se destinam a salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
8º – Foi a recorrida que, manifestamente, excedeu os limites impostos pela boa fé e pelos 'bons costumes' ao apropriar-se criminosamente – a desobediência ao embargo judicial parece que ainda continua a ser crime no nosso ordenamento jurídico, embora até aqui e neste processo se tenha olvidado esse 'pormenor' – da propriedade privada dos recorrentes em área que não é tão insignificante que não dê para construir um apartamento de pelo menos, três boas assoalhadas e que para nove pisos, dá nove apartamentos –, e ainda por se socorrer de autorizações verbais – gravemente ilegais – de membros da Câmara Municipal de Peso da Régua para ocupar terreno que as instâncias deram como pertencente àquela autarquia.
9º – Assim, na parte em que o acórdão recorrido interpretou o art.º 334º do Cód. Civil no sentido de considerar 'ilegítimo' o pedido de restituição da dita área por considerar que haveria 'excesso dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes', tal interpretação viola claramente o disposto nos referidos art.ºs. 62º, n.º 1, 18º, n.º 2 e 17º, todos da CR.
10º – E o mesmo acontece quanto à interpretação dada às invocadas normas dos art.ºs 566º, n.º 1 e 829º, n.º 2, ambos do Código Civil, dado que, por um lado, a reconstituição natural é possível e a sua onerosidade tinha de ser obrigatoriamente prevista pela ofensora como consequência natural e lógica da sua actuação conscientemente ilícita e, por outro a cessação do direito à demolição representaria uma autêntica expropriação de natureza particular, sem o mínimo fundamental legal e a raiar a verdadeira espoliação.
11º – Mesmo nos casos em que a nossa Constituição e as normas internacionais admitem a expropriação por utilidade pública está esta condicionada pelo pagamento pronto, efectivo e adequado da justa indemnização, o que jamais poderá verificar-se no caso concreto, dado que já decorreram mais de dez anos sobre a privação arbitrária consumada pela recorrida.
12º – Por isso, a manter-se o acórdão do S.T.J. estariam os tribunais a transferir para o Estado a responsabilidade da recorrida, pois é manifesto que a violação das normas de direito internacional, permitirá aos alegantes recorrer
às competentes instâncias.
13º – Quando o acórdão recorrido recusa a aplicação da norma especial do artigo
1343ºdo Código Civil que contempla expressamente o prolongamento do edifício por terreno alheio porque, como está demonstrado, a recorrida nunca poderia provar a sua 'boa fé' e procura contornar a dificuldade com o recurso à norma genérica do art.º 334º do mesmo Código, quando estão mais próximas as também normas especiais dos art.ºs 1341º e 1340º, n.º 4, do Código Civil, que são inequívocas quanto ao direito de restituição do terreno e de destruição da obra feita, está, objectiva e manifestamente, a cometer uma discriminação beneficiando a infractora e, correspondentemente, prejudicando os aqui alegantes, o que é inadmissível e viola o preceituado no art.º 13º da CRP.
14º – O mesmo acórdão viola também o preceituado no art.º 2º da CRP ao não ponderar e valorar negativamente, como se impõe, os comportamentos da recorrida no que tange, quer à violação do embargo judicial, quer no que respeita às ilegais e duvidosas relações dela com os membros da autarquia.
15º – Finalmente, os princípios consignados nos art.ºs. 17º, n.º 2, e 29º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e os princípios gerais da 'boa fé' 'motivo justificativo', 'justa causa', 'bons costumes', 'não exigibilidade' e 'bom pai de família' devem ser, no caso concreto, interpretados e aplicados de forma a concluir-se em sentido oposto ao que lhe foi dada pelo acórdão da Relação do Porto [...].' Na tese dos recorrentes, deve ser 'declarada' inconstitucional a interpretação e aplicação feitas no aresto recorrido das normas dos artigos 334º, 566º, n.º 1, e
829º, n.º 2, do Código Civil, por ofenderem os princípios e normas consagrados nos artigos 62º, 17º, 18º, n.º 2, 13º e 2º da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 17º, n.º 2, e 29º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 1º do Protocolo n.º 1, Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os princípios gerais da 'boa fé', 'motivo justificativo',
'justa causa', 'bons costumes', 'não exigibilidade' e 'bom pai de família'.
3. A recorrida, por sua vez, contra-alegou, assim concluindo:
'1. Os recorrentes pedem que seja declarada inconstitucional a interpretação e aplicação feita pelo acórdão recorrido das normas dos art.ºs. 334º, 566º, n.º 1 e 829º, n.º 2, todos do C.C., o que não cabe no âmbito da competência deste tribunal, de acordo com o previsto no art.º 225º da C.R.P., que define a competência do Tribunal Constitucional. Sem prescindir.
2. A interpretação e aplicação das normas dos art.ºs.334º,566º n.º 1 e 829º n.º
2, todos do C.C., não é inconstitucional porquanto o direito de propriedade consagrado no art.º 62º da C.R.P., não é um direito absoluto, é um direito que necessita de cláusulas de limitação e regulação do seu exercício, quer através de disposições legais avulsas, quer através de uma cláusula geral como a do art.º 334º do C.C..'
4. Notificados, responderam os recorrentes à equacionada questão prévia relativa ao conhecimento do objecto do recurso, manifestando-se no sentido da improcedência dessa questão. Corridos os vistos legais e mudado o relator, por vencimento deste, cumpre decidir. II. Fundamentos
5. Há, naturalmente, que começar por tratar da questão prévia do não conhecimento da totalidade ou de parte do objecto do recurso, suscitada pela recorrida. Entende esta não ser o recurso de conhecer no tocante a qualquer das normas convocadas pelos recorrentes, dado não estar em causa, na sua opinião, uma questão de constitucionalidade normativa, mas tão só a aplicação da norma na decisão judicial propriamente dita, cuja reapreciação, afinal, é o que se pretende. Circunscrevendo, por ora, o problema às normas dos artigos 566º, n.º 1, e 829º, n.º 2, do Código Civil, verifica-se, porém, que as mesmas não foram, em tempo oportuno, objecto de controvérsia quanto à constitucionalidade, sendo certo que o requerimento de interposição do recurso não constitui já, como se sabe, momento adequado para esse efeito, consoante se vem sustentando, reiterada e uniformemente (cfr., por todos o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995).
É certo que este entendimento pode sofrer desvio em hipóteses excepcionais ou anómalas, dispensando-se o recorrente do cumprimento do ónus de suscitação atempada, quando se verifique não ter existido oportunidade processual anterior para tal, o que, porém, não sucede no caso concreto. Na verdade, quer a decisão do tribunal de comarca, quer a da Relação, conceberam e decidiram em consonância com uma interpretação normativa envolvendo os três preceitos – perspectiva que o Supremo retomou –, sem que, então (nomeadamente nas alegações apresentadas para qualquer dos tribunais superiores), os recorrentes tivessem suscitado problemas de constitucionalidade relativos às normas dos artigos 566º, n.º 1, e 829º, n.º 2, do Código Civil, como tinham o
ónus de fazer, para vir a interpor o recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (isto, independentemente de se cuidar de saber se qualquer dessas normas integrou ou não efectivamente a ratio decidendi, ou apenas funcionou, in casu, com mera relevância adjuvante).
6. Resta, assim, a norma do artigo 334º do Código Civil, aplicada no acórdão recorrido no sentido de considerar 'ilegítimo' – por exceder 'manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes', e, portanto, constituir
'abuso de direito' – o pedido de restituição efectuado pelos ora recorrentes. Tendo os recorrentes suscitado uma questão de inconstitucionalidade do artigo
334º do Código Civil durante o processo – designadamente nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça
–, há que reconhecer que o fizeram, porém, em ambos os casos, de forma que tanto poderia ser imputada à dimensão normativa da lei, como à decisão judicial que a concretizou:
'A aplicação que se fez do artigo 334º do Código Civil é manifestamente inconstitucional face aos arts. 18º e 62º da C.R.P.' (conclusão 4º do recurso para o Tribunal da Relação do Porto)
'Finalmente, a interpretação e aplicação que o Tribunal da Relação faz, no caso concreto, do já referido art. 334º é manifestamente inconstitucional, por violarem o preceituado nos arts. 62º, 17º, 18º, 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa, além das normas e princípios gerais nele expressamente invocados e que levam necessariamente à conclusão contrária da ali tirada.'
(conclusão 8º do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça). E, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido pelo relator originário do presente processo, tal ambiguidade só se acentuou:
'São todas as razões sintética e indiciariamente apontadas, que levam a interpretar e aplicar o citado art. 334º em sentido diametralmente oposto, isto
é, recusando a sua aplicação no segmento relativo ao 'excesso dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes' que não foram ultrapassados por eles, mas sim pela recorrida. (...) Por isso, prevalecem as normas e princípios invocados, interpretados no sentido de serem postergados pela aplicação do art. 334º do Código Civil que, no caso, deve ser recusado e ceder perante normas superiores.' Ainda assim, poderá não se ter por decisiva para o não conhecimento do recurso a forma como se procurou suscitar a referida inconstitucionalidade (se bem que a possibilidade de se tratar de uma inconstitucionalidade normativa dependa do que se dirá a seguir sobre a cláusula geral do abuso de direito). E poderá igualmente deixar-se de valorizar decisivamente a incoerência da argumentação desenvolvida no sentido de opor a intangibilidade de um direito de propriedade (sobre o terreno) à invocação do abuso de direito, pela óbvia razão de que a invocação deste instituto se faz em defesa de um, então, igualmente intangível direito de propriedade (sobre o edifício construído). Isto porque, posto tal fragilidade argumentativa seja patente, não se poderá dela retirar que o recurso seja manifestamente infundado (o que, segundo a parte final do n.º 2 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, seria fundamento autónomo para a não admissão do recurso). Acresce, todavia, uma outra razão que, por si só, conduz à impossibilidade de tomar conhecimento do recurso, relacionada com a própria estrutura de tal cláusula geral na sua relação com a decisão judicial que a ela recorre. Vejamos.
7. O instituto do abuso de direito emerge na nossa codificação civilística no artigo 334º, situado na Parte Geral. Segundo tal disposição:
'É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.' Esta redacção não coincide com a do Anteprojecto Vaz Serra – v. Adriano Vaz Serra, 'Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)', BMJ, nº 85, Abril de 1959, pág. 335 (art. 1º) –, tendo resultado sobretudo da primeira revisão do Código, fazendo-se então, contudo, referência antes aos 'princípios
éticos fundamentais do sistema jurídico'. Na segunda revisão é que, por influência do art. 281º do Código grego de 1940 (que, influenciado por sua vez pelo art. 2º do Código Civil suíço, é quase igual ao nosso art. 334º), entram as referências à boa fé e aos bons costumes. Deve, contudo, salientar-se desde já que qualquer consagração legal da proibição do abuso de direito e dos seus critérios tem um valor muito relativo. Estamos perante um afloramento de um princípio geral com relativa independência das específicas formulações que o concretizem. A doutrina geral do abuso de direito
é, pois fundamental para determinar o seu sentido. Sem qualquer pretensão de fazer uma exposição completa, pode dizer-se que só no século XIX o instituto do abuso de direito, enquanto instituto autónomo, começou a dar os seus primeiros passos. Antes conhecia-se apenas a proibição dos chamados actos emulativos ('malitiis non est indulgendum' – v. Adriano Vaz Serra, 'Os actos emulativos no direito romano', BFDC, 1929, págs. 529 e segs.). E foi a jurisprudência francesa (primeiro com decisões relativas a relações de vizinhança e a direitos reais) que abriu o caminho, constatando-se hoje em França, contudo, um relativo declínio do recurso a este instituto. Durante muito tempo, a admissão do abuso de direito foi, como se sabe, verdadeiramente prejudicada pela acrítica referência ao princípio de que 'neminem laedit qui suo iure utitur' (posição defendida, por exemplo, por Duguit – para diversas posições teóricas mais antigas sobre o abuso de direito, v. F. Cunha de Sá, Abuso do direito, Lisboa 1973, págs. 285 e segs.). Disse-se igualmente que abuso e falta de direito só podiam ser a mesma coisa, sustentando, v. gr., o carácter logomáquico da expressão 'abuso de direito' (dizia-se que 'le droit cesse où l'abus commence'). Mas estes pontos de vista não vingaram, e na evolução deste instituto veio a ser um marco fundamental a obra de Josserand, sobre 'o espírito dos direitos e a sua relatividade' (Louis Josserand, De l'esprit des droits et de leur relativité. Théorie dite de l' abus des droits, Paris 1927), enfileirando decididamente na defesa do abuso de direito, e propondo critérios de ordem sobretudo sociológica. Neste problema têm, de facto, sido sustentados inúmeros pontos de vista, relativos ao critério do abuso: se uns optam por perspectivas sociológicas, outros colocam-nos na encruzilhada do direito e da moral – em ambos estes casos procura dar-se uma fundamentação metajurídica ao abuso de direito. Podem depois distinguir-se concepções subjectivas do abuso – que atendem predominantemente ao estado subjectivo do agente –, objectivas – que propõem uma valoração independentemente da intenção de quem age –, e concepções mistas. Entre nós, foi adoptada por Manuel de Andrade (Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, I, com a colaboração de Rui de Alarcão, 2ª ed., Coimbra 1963, págs. 63 e segs.) e depois por Vaz Serra (ob. cit.) a fórmula da 'contrariedade clamorosa ao sentimento jurídico dominante na comunidade'. O abuso de direito foi também visto como cláusula geral como que 'de segundo grau', uma vez que seria um critério sindicante da aplicação doutras normas, e por isso com uma função de 'válvula de segurança' do sistema (Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Coimbra 1970, págs. 312 e segs., e Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra 1985, págs. 63 e seg.). Para Castanheira Neves e Cunha de Sá, o problema do abuso de direito é o próprio problema do fundamento axiológico dos direitos subjectivos. Segundo uma outra concepção (defendida por Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil. Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2º ano (1ª turma) do curso jurídico de 1980/81, Coimbra 1981, polic., págs. 45 e segs.), o abuso de direito existirá quando houver um exercício para lá do poder de autodeterminação que é o próprio fundamento dos direitos subjectivos. Como critérios para isso propõe-se então a falta de interesse no exercício do direito, a apreciar em abstracto ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. No domínio do abuso de direito há, ainda quem o refira como 'disfuncionalidade intra-subjectiva' (António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, vol. I, Coimbra, 1984, págs. 879 e segs.). E pode referir-se, por último, uma distinção que esteve em voga na doutrina alemã, (já adoptada por exemplo por Josef Esser, Schuldrecht, Band I, 4. Aufl., Karlsruhe 1970, págs. 34 e segs., e Esser/Schmidt, Schuldrecht, Band I, 6. Aufl., Heidelberg 1984, págs. 149 e segs.), entre 'abuso de direito institucional', relativo à utilização do direito objectivo, ou melhor, de institutos para fins abusivos; e o 'abuso de direito individual', referente esses aos direitos subjectivos.
8. Prima facie, a previsão do artigo 334º do Código Civil consagra uma concepção objectivista – ou, pelo menos, mista – do abuso. O preceito referido remete, segundo o entendimento dominante e no que agora interessa, para o excesso manifesto de limites resultantes de standards ou padrões valorativos, a saber, os bons costumes e a boa fé e a função económica e social do direito. A cláusula do abuso de direito – cláusula geral como que 'de segundo grau', possibilitadora de um controlo do resultado da aplicação das restantes normas, incluindo as que contenham outras cláusulas gerais (ver, para esta distinção, C. Mota Pinto, Cessão..., cit., págs. 311-2, e Teoria geral do direito civil, cit.,
1985, págs. 51-2) – reveste-se de uma singularidade irrepetível na sua concretização, de acordo com os estalões ou padrões valorativos para que remete, em cada acto de concretização/aplicação, singularidade de concretização, essa, que desqualifica o seu juízo aplicativo como objecto do controlo de constitucionalidade, confinado este, como está, a normas, e excluindo decisões judiciais. De certa forma pode dizer-se que a cláusula geral aplicada numa decisão judicial implica, pela consideração das circunstâncias do caso à luz do padrão valorativo a considerar, em cada caso um sentido normativo concreto, que não se distingue para efeitos de controlo da constitucionalidade da concretização efectuada na decisão judicial. Sobre a especial natureza da cláusula do abuso de direito salientou-se na nossa doutrina (C. Mota Pinto, Cessão..., loc. cit.) que a
'superação da ideia da máxima economia no uso dos conceitos indeterminados só tem lugar, e pour cause, quanto aos conceitos desse tipo inseridos no teor de disposições legais imediatamente aplicáveis a cada situação concreta. Nestas hipóteses a cláusula geral integra o teor da norma e está necessariamente presente em cada concreta aplicação. Ao lado destas cláusulas podem divisar-se, porém, outras, cuja função é realizar um controle ou sindicância, sobre os resultados da directa aplicação de outras normas. É o caso da cláusula do abuso de direito (art. 334º) (...) Estas cláusulas, embora entrem em funcionamento em referência a um caso concreto, não são de aplicação directa e imediata a cada situação da vida. Directamente em face desta, o juiz faz apelo a outras normas avulsas do sistema jurídico e apura o resultado da aplicação destas à situação concreta, só então, e em caso de clamorosíssima e insustentável ofensa do sentimento ético-jurídico, corrigindo a solução encontrada por aqueles padrões, concebidos assim como válvulas de segurança.' (itálicos aditados). Defendia-se, assim, no caso de emprego de cláusulas gerais sindicantes dos resultados de aplicação das restantes normas, como é o caso do abuso de direito, a 'necessidade de reconhecimento pelo juiz da clamorosa e intolerável injustiça concreta do resultado a que, doutro modo, se chegaria, e, por consequência, autenticidade plena na convicção de um proceder excepcional' (ob. cit., pág. 314
– itálico aditado). Ou, por outras palavras, dizia-se que 'a superação do sistema jurídico, por via destas cláusulas, só pode admitir-se em casos de clamorosa e intolerável injustiça do resultado a que se chegaria, aplicando a norma em que a hipótese concreta se subsume' (Teoria geral..., cit., pág. 52, nota 1 – itálico aditado). Trata-se, pois, de uma cláusula geral a que apenas se recorre, numa clara atitude valorativa e constitutiva, em face da hipótese concreta, recebendo, de acordo com o padrão valorativo a seguir, concretizações diversas no caso, mediante a decisão do juiz. Assim, no acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, e na esteira das decisões anteriormente proferidas nos autos, entendeu limitar a condenação da actuação da ré, ora recorrida, à remuneração pecuniária dos danos causados, não exigindo a pretendida restauração natural, eventualmente resultante de outras normas, numa situação cujos traços essenciais ora se recapitulam: sendo comproprietários do prédio rústico identificado nos autos, os autores, ora recorrentes, venderam à ré, ora recorrida, uma área de 950 metros quadrados, a desanexar desse terreno, gorando-se a pretensão desta última, posteriormente deduzida, de obter mais 72 metros quadrados; a ré viria, porém, a construir um prédio urbano ocupando uma superfície de 1064 metros quadrados no terreno adquirido, não tendo os autores conseguido provar que a diferença de 114 metros quadrados entre a área efectivamente ocupada e construída e a vendida fosse do seu terreno, o que só lograram demonstrar relativamente a 56,04 metros quadrados, sendo uma parte onde foi implantada a construção 'cedida' pela Câmara Municipal; pretendiam os recorrentes, além da indemnização, a condenação da ré à restituição natural da anterior situação, nomeadamente com a entrega da parcela de terreno em causa, livre de construção. No entanto, não foi a solução pretendida pelos ora recorrentes a adoptada pelo Supremo, de resto em concordância com o anteriormente decidido. Reconhecendo não ser caso de se observar o disposto no artigo 1343º do Código Civil (que prevê a hipótese da construção de edifício em terreno próprio se prolongar em terreno alheio, permitindo, havendo boa fé e observados certos condicionalismos, a aquisição deste último, mediante indemnização), uma vez que a recorrida não provou a sua boa fé, o aresto ponderou que nem por isso está provada a sua má fé, contrariamente ao pretendido pelos recorrentes, dada a admissibilidade de confusão em face da cedência de terreno pela Câmara, o que permitiria, quando muito, concluir pela existência de indícios de má fé, como na 1ª instância se entendeu. Assim sendo, na ausência de prova de má fé, o acórdão considerou que devia recorrer, para sindicância dos resultados a que se chegaria por aplicação de outras normas, à norma do artigo 334º, concretizando o seu critério no caso a decidir. Ora, como se escreveu no Acórdão n.º 44/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, págs. 403-409, 'em princípio, o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional', sendo certo que o juízo de contrariedade entre o resultado da estrita aplicação das normas e o sentimento ético-jurídico (ou de
'clamorosa e intolerável injustiça do resultado' a que se chegaria na hipótese concreta), a mais de destituído de sentido normativo – sendo, por isso, insindicável pelo Tribunal Constitucional –, se situa no plano infra-constitucional de que não cabe a este Tribunal curar. Desta última consideração resulta também que a opção por uma concepção do abuso de direito tributária das chamadas teorias internas – que encontram os limites de cada direito 'nas normas que constituam o próprio conteúdo do direito, ou seja, no seu interior', respeitando-se a função para que foram concebidos – ou das chamadas teorias externas – que encontram os limites de cada direito em
'certos preceitos que lhe delimitam o exercício' (A. Menezes Cordeiro, Da boa fé..., cit., vol. II., Coimbra, 1984 págs. 863 e 874, respectivamente, retomando a distinção de Siebert) – é indiferente, já que nenhuma delas tem a virtualidade de poder subtrair o juízo formulado sobre a existência de abuso de direito ao plano da concreta decisão, deslocando-o – e às normas que prevêem a respectiva sindicância – para o âmbito do susceptível de controlo de constitucionalidade normativa. Pelo contrário, o que se defende na melhor doutrina é que esse juízo sobre a existência de abuso do direito nem sequer se coloca no plano da legalidade – veja-se Castanheira Neves, Questão-de-facto/Questão-de-Direito ou o problema metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) I- A Crise, Coimbra, 1967, pág. 528: 'sendo deste modo o problema do ‘abuso do direito’ um problema metodológico-normativo de realização (ou de ‘aplicação’) concreta do direito, e não um problema dogmático da determinação do conteúdo jurídico positum (na lei)', chegando a afirmar a 'necessária independência do problema (e da solução) do ‘abuso do direito’ relativamente às determinações legais que o visem' (págs. 528-529), uma vez que um tal problema se põe da mesma forma quer existam, quer não existam normas como as do artigo 334º do nosso Código Civil:
'Em primeiro lugar, porque a concepção sobre a verdadeira intenção e sentido do direito não pode decretar-se ou dominar-se legalmente (...) – é esse um problema do autónomo e crítico pensamento jurídico e não dos mandados do poder político. Em segundo lugar, porque a averiguação fundamentante e a realização concreto-material do direito, como intenções que transcendem o conteúdo formal das formas positivas, não podem ser destas deduzidas ou por elas prescritas.'
(pág. 529). Em suma: 'o abuso é um modo de ser jurídico que se coloca no trajecto mediante entre a norma e a solução concreta: como tal não depende da lei', para o dizer como Menezes Cordeiro (ob. cit., pág. 872) o diz da concepção de Castanheira Neves – sobre o abuso do direito, veja-se ainda Adriano Vaz Serra, 'Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)', Boletim do Ministério da Justiça, nº 85. Ou, como prefere aquele civilista de Lisboa, o abuso do direito
é o produto de uma 'aspiração cultural de integração sistemática', 'quando ela actue no espaço não-funcional interno dos direitos subjectivos' (A. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 885). E mesmo defendendo-se uma concepção do abuso de direito segundo a qual o que está nele em causa é – não o controlo de uma actuação contra legem (contra o direito objectivo, portanto), ainda que por um critério valorativo, mas antes – a relação entre as imagens estrutural e funcional do direito subjectivo (no sentido em que a actuação do direito subjectivo não corresponde ao poder de autodeterminação que lhe serve de fundamento – assim, Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil – Sumários, cit., págs. 54-77; cfr. também as referências de António Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, pág. 733-4, n. 1648), não deixará o juízo sobre tal relação de remeter para a singular decisão do caso concreto. Seja como for, é certo que o juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito, concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e, para a concepção dominante, segundo um determinado critério valorativo), é destituído do sentido normativo, com independência da sua decisão concretizadora, necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal – confinado que está este, em sede de recurso de constitucionalidade, às funções de controlo de constitucionalidade normativa. Acrescendo a isso ser manifesto, no caso, que o que os recorrentes questionavam era realmente a forma como as instâncias aplicaram o direito infra-constitucional, sendo certo que também isso não cabe a este Tribunal aferir (cfr., v.g., os Acórdãos n.ºs 21/87, 339/87 e 279/92, publicados no Diário da República, II série, de 31 de Março de 1987, de 19 de Setembro de 1987 e de 23 de Novembro de 1992, respectivamente). Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso, igualmente no que diz respeito
à aplicação do artigo 334º do Código Civil na decisão recorrida. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar os recorrentes em custas, fixando-se a taxa de justiça em 6
UC. Lisboa, 7 de Dezembro de 1999 Paulo Mota Pinto Artur Maurício Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa (vencido conforme declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Entendi ser de conhecer de mérito se bem que, a final, negasse provimento ao recurso, seguindo uma linha de argumentação que, agora, não interessa reter.
Reconhece-se ser difícil neste caso, como em tantos outros, estabelecer uma nítida linha de demarcação entre controlo normativo e reapreciação da decisão judicial recorrida, em si mesma considerada – problema que sempre se levanta quando está em causa a interpretação ou sentido com que a norma questionada é, in concretu, tomada e aplicada. No entanto, fiel à orientação jurisprudencial que tem aberto o recurso de constitucionalidade relativamente a interpretações normativas, considerei (e considero) que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 334º do Código Civil, independentemente da sua natureza, é juridico-constitucionalmente sindicável.
Neste sentido escreveu-se no projecto do acórdão apresentado, além do mais, ter o Supremo, a partir do suporte fáctico apurado, feito uma interpretação da norma que, partindo da vertente de expediente técnico que a norma comporta, na sua aplicação concreta surpreendeu um resultado ofensivo do sentimento de justiça dominante na comunidade social, 'de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais no caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido' (e citou-se, a título de apoio na Doutrina, M.J.Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed., Coimbra, 1984, págs. 51 e ss., e, na jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1996, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 459, págs.
519 e segs.).
Não parece, assim, que seja destituído de sentido normativo o juízo proferido na decisão judicial, independentemente de pressupor um particular conjunto concreto de circunstâncias.
Maria Fernanda Palma (vencida, acompanhando no essencial o sentido da declaração de voto do Senhor Conselheiro Tavares da Costa) Vítor Nunes de Almeida (vencido pelo essencial dos fundamentos da declaração de voto do Exmº Consº Tavares da Costa). José Manuel Cardoso da Costa