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Proc. nº 597/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório C..., Sociedade de Comercialização e Vendas, Lda., impugnou judicialmente, junto do Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa, as liquidações adicionais do Imposto sobre o Valor Acrescentado, efectuadas pelo 6º Bairro Fiscal da Repartição de Finanças de Lisboa.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, por decisão de 27 de Setembro de 1994, considerou que 'à data da dedução da (...) impugnação, bem como à data das liquidações que se impugna(ra)m, a fixação definitiva do imposto em causa (IVA), efectuado com recurso a presunções, constituía acto prejudicial e destacável do subsequente acto de liquidação, sendo objecto de impugnação judicial com prazo e fundamentos próprios, nos termos do artigo 86º do CIVA
(...), sob pena de se tornar caso decidido'. O tribunal referiu, porém, que, de acordo com alguma jurisprudência, 'na impugnação do acto de liquidação, podia o impugnante reagir também contra o acto de fixação do imposto, desde que o fizesse dentro do respectivo prazo, que era então de oito dias a contar da sua notificação, nos termos do artigo 27º do mesmo diploma (cf. artigo 86º, nº 2, do CIVA)'.Todavia, o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa entendeu que tal prazo de impugnação (de oito dias) já havia decorrido, só podendo, consequentemente, estar em causa nos autos a impugnação dos actos de liquidação adicional do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Contudo, a impugnante pediu a anulação da liquidação com fundamento em alegadas ilegalidades dos actos de fixação da matéria colectável.
O tribunal considerou que os eventuais vícios de tais actos de fixação da matéria colectável não podiam, pelas razões expostas, fundamentar a impugnação da liquidação. Em consequência julgou a impugnação improcedente.
C..., Sociedade de Comercialização e Vendas, Lda., interpôs recurso da decisão de 27 de Setembro de 1994 para o Supremo Tribunal Administrativo.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 19 de Outubro de
1995, declarou-se incompetente para conhecer do recurso, considerando competente o Tribunal Tributário de 2ª Instância.
Os autos foram remetidos ao tribunal competente.
O Tribunal Tributário de 2ª Instância, por acórdão de 28 de Maio de
1996, considerou que 'o prazo de impugnação judicial era de 90 dias a contar do dia imediato ao da abertura do cofre, no caso de cobrança virtual (artigo 89º, alínea a), do CPCI)', afirmando, por outro lado, que 'no caso sub judice e uma vez que o pagamento voluntário, sem juros de mora, decorreu entre 8 de Janeiro de 1988 e 24 de Janeiro de 1988 e que findo este prazo a cobrança passou a virtual, tendo o dia de abertura do cofre, como primeiro dia desse prazo, ocorrido em 9 de Janeiro de 1988, é manifesto que a impugnação deduzida em
30.6.1988, ocorreu muito para além do prazo de 90 dias a contar do dia imediato ao da abertura do cofre, a que se refere o artigo 89º, alínea a), do CPCI'. Em consequência, negou provimento ao recurso.
C..., Sociedade de Comercialização e Vendas, Lda., interpôs recurso do acórdão de 28 de Maio de 1996 para o Supremo Tribunal Administrativo.
Nas respectivas alegações, a recorrente considerou ser aplicável nos autos o prazo geral de noventa dias, que deveria ser contado, em princípio, a partir da data das notificações das liquidações adicionais. No entanto, e uma vez que tais notificações careciam, alegadamente, de fundamentação, seriam, nessa medida, ineficazes, pelo que a impugnação teria sido tempestiva (a recorrente afirma que só teve conhecimento da respectiva fundamentação em 4 de Fevereiro de 1993). A recorrente suscitou, concomitantemente, a inconstitucionalidade do artigo 86º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, nomeadamente da norma que estabelece o prazo de oito dias para a interposição do recurso do acto de fixação definitiva do imposto (nº 2 do referido artigo 86º), por violação do disposto no artigo 268º, nºs 3 e 4 da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 1 de Outubro de
1997, entendeu que a 2ª Instância decretou a caducidade da acção 'numa base que não era consentida pela lei em vigor ao tempo em que a notificação foi praticada
(8.1.88) – o artigo 86º/2 da redacção primitiva do CIVA'. O tribunal afirmou, porém, que 'disso se apercebeu (...) a recorrente, que reagiu no recurso como se a decisão recorrida tivesse concluído pela extemporaneidade do recurso nos termos da lei aplicável, tanto assim que sustentou a inconstitucionalidade da norma referida, na medida em que esta teria restringido o prazo de recurso a oito dias, diferente do prazo mais lato de 90 dias, prescrito no corpo do artigo
89º de CPCI (que a decisão recorrida teria aplicado, a final, mas sem atenção aos termos da correcta aplicação das leis no tempo, tendo, contudo, chegado ao mesmo resultado da intempestividade do procedimento)'. O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, todavia, que a norma contida no artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, não é inconstitucional. Por outro lado, e em relação à deficiente fundamentação das notificações, o tribunal verificou que a impugnante não usou da faculdade conferida pelo artigo
31º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (requerimento dos elementos em falta no prazo de um mês), pelo que não se poderia aplicar o nº 2 do referido artigo (contagem do prazo de impugnação a partir da data do recebimento da certidão requerida), não podendo então ser invocada a ineficácia da notificação efectuada, bem como a inoponibilidade do acto notificado. Em consequência, e fazendo aplicação expressa da norma contida no artigo 86º, nº
2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, o tribunal negou provimento ao recurso, confirmando, com fundamentação diversa, a decisão recorrida.
Foi requerida a aclaração do acórdão de 1 de Outubro de 1997, aclaração que foi indeferida por acórdão de 1 de Abril de 1998.
C..., Sociedade de Comercialização e Vendas, Lda., interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:
1ª - O acórdão recorrido entendeu, e bem, que a norma contida no 1º do art. 86º do CIVA, na redacção então vigente - fundamentos da impugnação judicial - era inconstitucional, por ser incompatível com o disposto no nº 3 do art. 268º da CRP (redacção de 1982).
2ª - Já o mesmo não sucedeu com a norma contida no nº 2 do mesmo artigo 86º: prazo de 8 dias para a impugnação judicial.
3ª - Tal entendimento viola as regras da interpretação da lei, por porem em causa o princípios contidos no nº 1 do art. 9º do Código Civil, designadamente a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicável.
4ª - Resulta das precedentes conclusões e do princípio da interpretação da lei conforme à Constituição que, in casu, o prazo de impugnação é o prazo geral contido no art. 89º do Código das Contribuições e Impostos.
Por seu turno, a Fazenda Pública contra-alegou, propugnando a improcedência do recurso.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
10. A norma que a decisão recorrida efectivamente aplicou e que a recorrente impugnou no presente recurso de constitucionalidade é a contida no artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na redacção vigente no momento das liquidações adicionais efectuadas pelo 6º Bairro Fiscal da Repartição de Finanças de Lisboa. A redacção desse preceito era a seguinte: Artigo 86º
(...)
1. O recurso não tem efeitos suspensivos e só poderá ser interposto dentro do prazo de oito dias a contar da data da notificação referida no artigo anterior.
A recorrente sustenta que tal norma é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 268º, nº 3, da Constituição, na redacção de 1982 (actual artigo 268º, nº 4).
1. A Constituição consagra, no artigo 268º, nº 4 (correspondente ao artigo
268º, nº 3, na versão de 1982), o direito ao recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.
A recorrente afirma que o prazo de interposição do recurso consubstancia um aspecto substancial do direito de impugnar um determinado acto da administração. Para fundamentar a inconstitucionalidade do artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, que estabelece o prazo de oito dias para a dedução da impugnação, a recorrente invoca a unidade do sistema jurídico convocando o artigo 89º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, que consagra um prazo de 90 dias, e referindo que o acórdão recorrido considera inconstitucional o nº 1 do mencionado artigo 86º.
Ora, notar-se-á desde logo que o acórdão recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade
(nomeadamente, não formulou um juízo de inconstitucionalidade sobre o artigo
86º, nº 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado). Mesmo pressupondo que a admissão da impugnação se fundamenta numa interpretação extensiva do artigo 86º, nº 1, ou numa interpretação conforme à Constituição, não é possível concluir que a ampliação dos fundamentos de impugnação conduziria necessária e logicamente a uma alteração do prazo previsto para uma tal impugnação.
Por outro lado, o entendimento da recorrente (em relação à norma do nº 2 do mencionado artigo 86º) pressupõe que do artigo 268º, nº 4, da Constituição (correspondente ao n º 3 da redacção de 1982) resulta a imposição de um único prazo de impugnação dos actos da administração (que seria um prazo de 90 dias).
Contudo, tal uniformização não decorre do preceito constitucional. Com efeito, o direito ao recurso contencioso, constitucionalmente consagrado, não implica uma limitação absoluta do legislador infraconstitucional no que respeita ao estabelecimento dos prazos de interposição do recurso. O escopo fundamental da norma constitucional é o de assegurar a recorribilidade dos actos ilegais da Administração que lesem interesses dos particulares. Garantida a efectiva eficácia dos mecanismos de impugnação previstos, abre-se um amplo espaço de manobra ao legislador no que se refere à regulamentação específica da tramitação de cada um desses mecanismos, podendo este, em função das particularidades de cada situação, consagrar regimes diferenciados, nomeadamente no que se relaciona com os prazos de impugnação.
Nos presentes autos, é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a conformidade à Constituição da norma que consagra o prazo de oito dias para impugnar os actos de fixação do imposto sobre o valor acrescentado no âmbito de uma liquidação adicional subsequente ao exame efectuado à escrita do impugnante.
Em primeiro lugar, sublinhe-se que existem outras normas que consagram prazos de impugnação igualmente reduzidos. Uma vez que a recorrente invoca a unidade do ordenamento jurídico, refira-se a título de exemplo, e naturalmente do âmbito do Direito Fiscal, o artigo 84º do então vigente Código de Processo das Contribuições e Impostos, que prevê um prazo de oito dias para a impugnação da resolução definitiva da reclamação ordinária, ou o artigo 175º do mesmo diploma, com um prazo de dez dias para a oposição à execução fiscal.
Porém, e decisivamente, deve notar-se que, na hipótese normativa que abrange o caso, o impugnante terá em princípio elementos suficientes para tomar rápida e fundamentadamente a decisão de impugnar a fixação do imposto. Com efeito, tendo a liquidação adicional resultado de um exame à contabilidade do impugnante, este disporá dos elementos necessários para, em confronto com os valores constantes das notificações das liquidações adicionais, infirmar a pretensão da Administração Fiscal. Nessa medida, e à semelhança do que acontece noutros casos, a necessidade de definição das situações jurídicas, decorrente do valor segurança, conjugada com as particularidades deste tipo de casos, não permite concluir pela desrazoabilidade ou desproporcionalidade de um prazo curto que, não obstante, ainda permita a activação, de modo eficaz, do respectivo mecanismo processual de impugnação. O prazo de oito dias não implicará, assim, uma compressão desproporcionada do exercício do direito ao recurso da impugnante, ora recorrente, não sendo situação análoga à que levou o Tribunal Constitucional a julgar inconstitucionais certas normas relativas a prazos processuais (cf. o Acórdão nº
8/87, de 13 de Janeiro – Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol 9º, 1987, p.
229 e ss). Por outro lado, e em reforço da conclusão a que se chegou, refira-se que a recorrente podia Ter requerido, no prazo de um mês, a notificação da fundamentação alegadamente em falta (contando-se então o prazo de impugnação a partir da data da nova notificação - artigo 31º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos). No entanto, afirma que só teve conhecimento da fundamentação das liquidações em 4 de Fevereiro de 1993 na sequência de um pedido de notificação das informações prestadas nos autos, formulado já na fase instrutória do processo, ao abrigo do disposto no artigo 134º, nº 3, do Código do Processo Tributário (apresentado em 13 de Outubro de 1992 – fls. 62 e 63). O Supremo Tribunal Administrativo, considerando que tal mecanismo 'não contende' com o meio previsto no aludido artigo 31º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (note-se que em Outubro de 1992 já a impugnação tinha sido deduzida, pelo que a questão da respectiva caducidade já se colocava ao julgador), concluiu pela preclusão da possibilidade de impugnar as liquidações adicionais, nos termos do artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado. Ora, tal conclusão, como acaba de se demonstrar, decorreu da ponderação pelo Tribunal recorrido de um quadro normativo global suficientemente garantístico dos direitos da recorrente (a fundamentação das notificações podia Ter sido requerida no prazo de um mês, contando-se então o prazo de oito dias da data da nova notificação), pelo que a inadmissibilidade da impugnação deduzida resultou, não de uma solução normativa incompatível com a Constituição (nomeadamente, da consagração de um prazo de oito dias, alegadamente reduzido), mas antes da estratégia processual adoptada pela recorrente
Conclui-se, pois, que a norma contida no artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na interpretação acolhida pela decisão recorrida, não viola o disposto no artigo 268º, nº 3 (correspondente ao actual nº 4), da Constituição. III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 86º, nº 2, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Custas pela recorrente ,fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 24 de Novembro de 1999 Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida