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Proc. nº 165/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão da secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, de
4 de Fevereiro de 1998 (fls. 1023), foi o arguido J..., Delegado do Procurador da República, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de um crime de prevaricação, previsto e punível pelo artigo 369º, n.º s 1 e 2 do Código Penal de 1995, na pena de um ano de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de dois anos, nos termos do artigo 50º, n.º s 1 e 5 do mesmo Código, sem prejuízo de, na hipótese de a pena ter de ser cumprida, poder beneficiar do disposto nos artigos 8º, n.º 1, alínea d), e 12º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio.
2. Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1035), concluindo nas suas alegações (fls.
1072 e seguintes), além do mais, que:
'1º - O acórdão recorrido não apresenta motivação da decisão em matéria de facto, donde resulta não haver qualquer possibilidade de controle, pela via de recurso, das decisões em matéria de facto, nem mesmo da sua conformidade com as disposições legais em matéria de prova.
2º - A fundamentação exigida pelos art.ºs 97º, n.º 4 e 374º, n.º 2 do C.P.P. não consiste na mera enumeração dos meios de prova utilizados, pois para que seja possível o recurso quanto à legalidade da decisão no domínio probatório importa que a motivação do juízo em matéria de facto conste da decisão.
3º - O acórdão recorrido é nulo por omissão de fundamentação da decisão em matéria de facto, conforme se exige na al. a) do art.º 379º do C.P.P., e não sendo indicada qualquer prova positiva, não foi afastado o princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do art.º 32º da C.R.P.
4º - Sendo dados como provados factos negados pelo ora arguido, sem indicação ou menção de qualquer prova credível em contrário violou-se o n.º 2 do art.º 32º da C.R.P., isto é, o princípio da presunção de inocência.
5º - Ao não proceder à apreciação crítica das provas, nega-se ao arguido o recurso quanto à decisão em matéria de facto e quanto à decisão em matéria de direito probatório, violando-se também deste modo, embora indirectamente, o disposto nas als. b) e c) do n.º 2 do artº 410º do C.P.P.
6º - Viola-se igualmente o direito de defesa consagrado no n.º 1 do art.º 32º da C.R.P., pois que a decisão recorrida pressupõe uma interpretação do art.º 374º, n.º 2 do C.P.P. inquinada pelo vício de inconstitucionalidade material.
[...]
10º - Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 32º da C.R.P. o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, e no núcleo essencial destas garantias está também consagrada a exigência de um duplo grau de jurisdição em matéria penal, a qual não pode deixar de abranger tanto a matéria de direito como a matéria de facto.
11º - A disciplina dos n.ºs 2 e 3 do art.º 410º e do art.º 433º do C.P.P., na interpretação restritiva que destes preceitos é feita e na ausência de uma fundamentação mínima do decidido, não garante o princípio do duplo grau de jurisdição.
12º - Não permitindo, sem quaisquer restrições, o julgamento da matéria de facto por dois graus de jurisdição, aqueles artigos, na interpretação que deles é feita pelo Acórdão recorrido, frustram o disposto no n.º 1 do art.º 32º da C.R.P. e estão por isso viciados de inconstitucionalidade material.
13º - A indicação das provas, a que se refere o art.º 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal tem, também, como objectivo assegurar uma efectiva avaliação, pelo tribunal de recurso, do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do tribunal a quo em matéria de facto.
14º - Assim, torna-se exigível, nessa indicação, referir o teor das declarações e dos depoimentos ou, pelo menos, 'a razão crítica do tribunal para os aceitar ou para os proferir em detrimento de eventuais provas divergentes', e isto, pelo menos, para garantir uma aplicação mínima das garantias de defesa.
15º - O artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que 'só a ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal [...] acarreta a nulidade da decisão', viola também, na sua conjugação com o artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do mesmo Código, o princípio do duplo grau de jurisdição, decorrente do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
16º - O entendimento pressuposto no Acórdão recorrido do que é a motivação não garante, com suficiência, o recurso da matéria de facto, em violação do princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal, que deriva também do art.º 11º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do art.º 14º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os quais foram igualmente violados.'
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 21 de Janeiro de 1999
(fls. 1162 e seguintes), negou provimento ao recurso. Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada em matéria de fundamentação, o Supremo Tribunal de Justiça formulou as seguintes considerações:
'A Relação, na fundamentação do acórdão em que julgou em 1ª instância, e seguindo o que dispõe o art.º 374º, n.º 2 CPP, enumerou os factos provados e os não provados, expôs com suficiente minúcia os motivos de facto e de direito em que baseou a decisão e indicou as provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Nessa indicação, especificou – quanto à matéria do despacho de pronúncia – os depoimentos das testemunhas [...] que – disse – 'depuseram sobre a matéria factual em causa da qual tinham conhecimento e que depuseram por forma a convencer no sentido da factualidade apurada'; os documentos de fls. 50, 51, 52,
53, 56, 97, 98, 151, 152, 230 a 235, 497 a 504 e 360 a 363 também contribuíram para a prova da factualidade apurada. Quanto à matéria da contestação, mencionou os depoimentos de 14 testemunhas aí identificadas, que – disse – depuseram sobre a factualidade em questão, da qual tinham conhecimento, por forma a convencer no sentido que ficou apurado e realçado em tal matéria. Também contribuíram para a prova da factualidade em causa os documentos de fls. 62, 63, 64, 152 e 153 e ainda os documentos com os n.º s 1 a 6, juntos pelo arguido no requerimento de abertura de instrução, e a documentação de fls. 441 a 447. O recorrente entende que esta motivação da decisão em matéria de facto viola os art.ºs 97º, n.º 4 e 374º, n.º 2 CPP, ferindo de nulidade o acórdão. Mas não tem razão. Em primeiro lugar, o acórdão não se limitou à mera indicação das provas, tendo especificado que as testemunhas demonstraram ter conhecimento dos factos e depuseram por forma a convencer o tribunal da verdade material que veio a ser proclamada. Em segundo lugar, a lei não exige a indicação dos meios de prova em relação a cada um dos factos que o tribunal tenha considerado provados, nem mesmo que o tribunal indique e fundamente as razões pelas quais considerou ou não considerou como verdadeiros determinados depoimentos ou declarações. Constitui jurisprudência constante deste STJ que o referido n.º 2 do art.º 374º não pode ser entendido no sentido de que exige que o julgador exponha pormenorizadamente todo o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção de dar como provado ou não provado determinado facto ou que faça apreciação crítica das provas em ordem a permitir a sua reapreciação pelo tribunal de recurso. Só a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal integra violação do art.º 374º, n.º 2 e a consequente nulidade do art.º 379º, a) do CPP, considerando-se satisfeita a exigência daquele artigo pela simples indicação dos meios de prova (v. acórdãos deste STJ de 15/7/89, rec. n.º 40094, de 6/3/91, rec. n.º 40874, de 16/3/94, rec. n.º
45759 e de 15/5/94, rec. n.º 46279). Tal interpretação do princípio da fundamentação das decisões dos tribunais
(consagrado no art.º 205º, n.º 1 da CRP) respeita não só a lei ordinária como a lei constitucional, defendendo o Tribunal Constitucional que este princípio tem um alcance programático, ficando devolvido ao legislador o seu preenchimento, isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão (v. ac. deste STJ no rec. n.º
48101). De resto, nunca o art.º 374º, n.º 2 pode ser interpretado sem se atender ao disposto no art.º 365º, n.º 3 CPP, que apenas obriga cada um dos membros do tribunal colectivo ou do júri a indicar, sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção. Assim, a 'indicação dos meios de prova' de que fala o art.º 374º, n.º 2 não pode o relator do acórdão fazê-la senão por referência às provas que lhe são indicadas por cada membro do tribunal no seu voto; não pode substituir-se a cada um desses membros, plasmando a sua visão do valor de cada um desses meios de prova. No que toca à invocada violação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, deve dizer-se que expressam princípios programáticos de
'direito ao recurso' perante uma instância nacional, princípio esse que cada Estado pode preencher de maneira não necessariamente coincidente e que (v. ac. do TC n.º 340/90, de 19/12/90) está devidamente assegurado no nosso CPP, não se vendo que a indicação dos meios de prova efectuada pela Relação tenha de alguma forma prejudicado o referido direito, designadamente no que concerne ao reexame do caso pelo STJ, dentro dos limites que a este são fixados pelos art.ºs 433º e
410º, n.º 2 CPP, cuja constitucionalidade tem sido reafirmada pelo Tribunal Constitucional (v. DR, II Série, de 2/6/93 e 29/10/93).'.
4. J... interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 1176), ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 97º, n.º 4, 374º, n.º 2, 410º, n.º
2, e 433º, todas do Código de Processo Penal, por violação – além das normas e princípios constitucionais indicados nas motivações e conclusões constantes das alegações do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça – do direito de recurso e de defesa consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição (cfr. artigos 3º a 6º do requerimento de interposição do recurso), do artigo 11º, n.º
1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do artigo 14º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. artigo 7º do requerimento de interposição do recurso). O recurso foi admitido por despacho de fls. 1183.
5. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações (fls. 1186). Nas suas alegações (a fls. 1187 do processo), o recorrente transcreveu, na
íntegra, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, proferido no processo n.º 456/95, e repetiu as conclusões das alegações produzidas junto do Supremo Tribunal de Justiça. Concluiu pedindo que fosse 'julgada inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º
2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição' (cfr. conclusão final). Nas contra-alegações (a fls. 1241 do processo), o Ministério Público concluiu, dizendo que:
'1º - É inconstitucional – como se decidiu no acórdão nº 680/98 deste Tribunal – a interpretação normativa do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de
1987 (na sua redacção anterior à vigência da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), segundo a qual a fundamentação das decisões penais proferidas acerca da matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova produzidos em audiência e considerados relevantes pelo tribunal, não exigindo uma explicitação substancial do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais e do direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa do arguido;
2º - Não se conforma com as exigências definidas naquele acórdão a interpretação daquela norma que se basta com a enumeração dos meios probatórios – testemunhais e documentais – relevantes, completada com a afirmação, puramente conclusiva, de que as testemunhas conheciam a matéria de facto a que foram ouvidas e depuseram em termos que o tribunal considerou credíveis;
3º - A estrutura colegial do tribunal que, em 1ª instância, procedeu ao julgamento do processo não obsta a que seja viável alcançar, quanto à motivação da decisão de facto, uma base mínima e comum a todos os juízes, na qual haja assentado a decisão (colegial) condenatória proferida;
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com a inconstitucionalidade da interpretação normativa realizada nos autos.'
II
6. Decorre das alegações apresentadas pelo recorrente junto do Tribunal Constitucional que o objecto do presente recurso se restringe à norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, por si só ou conjugada com a das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, numa certa interpretação (cfr. conclusão final). Embora o recorrente o não explicite, está apenas em causa uma certa interpretação dessa norma à luz da redacção do Código de Processo Penal de 1987 anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto. Efectivamente, apesar de a decisão recorrida ser posterior à data de entrada em vigor desta Lei – 1 de Janeiro de
1999 –, ao Supremo Tribunal de Justiça não competia fundamentar a decisão sobre a matéria de facto nos termos previstos naquele n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, mas apenas sindicar o cumprimento, pelo Tribunal da Relação
(que, no presente caso, julgou em 1ª instância), daquele mesmo preceito legal. Ora, ao tempo em que o Tribunal da Relação se pronunciou (4 de Fevereiro de
1998) não estava ainda em vigor a alteração introduzida no n.º 2 do artigo 374º por aquela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
7. É o seguinte o teor da norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada
(na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, como ficou referido):
'Artigo 374º
(Requisitos da sentença)
[...]
2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
[...]'.
É igualmente suscitada a insconstitucionalidade desta norma, quando conjugada com a das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, cujo teor é o seguinte, também na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto:
'Artigo 410º
(Fundamentos do recurso)
[...]
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
[...] b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova.
[...]'.
8. O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987 numa determinada dimensão normativa, pois entende que tal norma é inconstitucional, por si só ou conjugada com as alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, 'na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal', por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição e do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição (cfr. conclusão final das alegações apresentadas pelo recorrente junto do Tribunal Constitucional).
9. Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
· que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de uma norma (ou de uma determinada interpretação de uma norma);
· que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade. Estes pressupostos encontram-se preenchidos. Por um lado, o recorrente suscitou, logo nas alegações do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação da norma constante do n.º
2 do artigo 374º, por si só ou conjugada com a das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, e, por outro lado, a norma com essa interpretação foi aplicada na decisão recorrida, como claramente resulta da parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça antes transcrito, onde de modo expresso se refere que o tribunal não está vinculado a proceder à 'apreciação crítica das provas'.
10. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade suscitada no presente processo.
10.1. No acórdão n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, proferido no proc. n.º
456/95 (Diário da República, II Série, n.º 54, de 5 de Março de 1999, p. 3315 ss) – invocado pelo recorrente nas suas alegações –, depois de explicitar o sentido e alcance da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, em geral, o Tribunal Constitucional afirmou que:
'[...] a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais [...]'
Relativamente à interpretação atribuída à norma do n.º 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987 na decisão sob recurso no caso então em apreciação – coincidente com a que foi feita no presente processo e que aliás corresponde à que o próprio Supremo Tribunal de Justiça afirma ser a sua jurisprudência constante (cfr. fls. 1170 v. dos presentes autos) –, o Tribunal Constitucional ponderou:
'Vistas as coisas a esta luz, parece impossível compatibilizar o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pelo tribunal recorrido quanto à fundamentação da decisão da matéria de facto, com as exigências constitucionais de fundamentação decorrentes da Constituição.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a referida disposição do Código de Processo Penal no sentido de a fundamentação das decisões em matéria de facto se bastar com a «simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância», acrescentando, com citação de decisões do mesmo Tribunal, que «só a ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constitui violação do artigo
374º, nº 2, do CPP, o que acarreta a nulidade da decisão por força do artigo
379º do mesmo Código». Tal interpretação é coerente com o entendimento, também adoptado no acórdão recorrido, de que a função da fundamentação neste âmbito reside tão-só em possibilitar «o controlo da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência», mas contradiz as bases em que assenta teleologicamente o dever constitucional de fundamentar.'
O Tribunal decidiu então 'julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição [...]'.
10.2. No mesmo acórdão nº 680/98, depois de recordar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a questão da conformidade constitucional da norma do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal e desta norma em conjugação com a do artigo 433º do referido Código – citando, designadamente, o recente acórdão nº 573/98 (Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 1998), em que, por maioria, o Plenário se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade de tal solução normativa –, o Tribunal reconheceu, todavia:
'[...] num sistema que circunscreve [...] os poderes de apreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, o aspecto central do qual depende a possibilidade efectiva – embora limitada – de reapreciação da matéria de facto é a imposição de um dever de fundamentação da decisão em matéria de facto com intensidade suficiente [...]'.
O Tribunal Constitucional, considerando que a interpretação do nº 2 do artigo
374º adoptada na decisão então recorrida inviabilizava na prática o direito ao recurso ou a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrados no nº 1 do artigo 32º da Constituição, decidiu 'julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal
[...], quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição'.
11. É essa jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos mais amplos constantes do acórdão nº 680/98 – para os quais se remete –, reafirma-se que é inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição. III
12. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, que deverá ser reformada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 23 de Novembro de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida