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Processo nº 434/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (3ª Secção), proferiu o Relator Decisão Sumária, em que não se tomou conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes C., Limitada, sociedade comercial com sede em Lisboa, e A., por se considerar não se mostrar preenchido o requisito específico da alínea g), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro (o de ser aplicada norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional). Nessa Decisão Sumária retratou-se a situação dos autos nestes termos:
'1. C., Limitada, sociedade comercial com sede em Lisboa, e A.., com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do art. 70º, nº 1, al. h) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção introduzida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (3ª Secção), de 21 de Abril de 1999, que manteve a condenação deles constante da decisão de 22 de Junho de 1998, do Tribunal Colectivo da 9ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, dado no acórdão recorrido 'ser aplicada a norma constante do art. 374º, nº 2, do Cód. Proc. Penal na vertente julgada inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, proferido no proc. nº 456/95 da 2ª Secção' (e posteriormente os recorrentes vieram esclarecer que a alínea do nº 1 do artigo 70º em que se funda o recurso é a alínea g), 'segundo a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais...que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional' e que 'não obstante o Acórdão recorrido revelar o cuidado de transcrever, em termos expressos e taxativos, a expressão vertida no Acórdão do Tribunal Constitucional invocado como sendo aquele cuja declaração de inconstitucionalidade recaiu, facto é que os autos revelam que a fundamentação não se encontram efectivamente vazada na decisão proferida em 1ª Instância, como aliás, profusa e abundantemente se suscitou nas alegações de recurso para esse Supremo Tribunal de Justiça').
2. É facto que no citado acórdão nº 680/98, publicado no Diário da República, II Série, nº 54, de 5 de Março de 1999, foi decidido julgar ' inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no nº
1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º, também da Constituição', querendo, assim, significar-se que num sistema legal que circunscreva 'os poderes de apreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, o aspecto central do qual depende a possibilidade efectiva – embora limitada – de reapreciação da matéria de facto é a imposição de um dever de fundamentação da decisão em matéria de facto com intensidade suficiente'.
Ora, o acórdão recorrido, relativamente à questão de saber se 'a decisão carece de fundamentação de facto e de direito', deu a resposta seguinte:
'É inegável que a decisão enumera descriminadamente os pontos provados e não provados. E indica claramente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal bem como revela os motivos da sua convicção.
Seguidamente aponta o enquadramento jurídico dos factos na previsão legal que considera integrada.
Daí que a decisão se revela fundamentada, quer de facto, quer de direito, de acordo com o art. 374 nº 2 do C.P.Penal.
E, assim, não pode concluir-se que a decisão seja nula por falta da fundamentação face ao disposto no art. 379 a) do Código mencionado.
Improcede, por isso, tal conclusão dos Recorrentes'.
E, mais à frente, posta a questão de saber se estarão ou não 'provados factos que integram o crime por que foram condenados os arguidos?', o Supremo explicitou desta forma:
(...)
Daí que se possa constatar que no acórdão recorrido se explanou a interpretação que nele foi feita dos factos e através da qual se pode perceber qual o processo cognoscitivo que levou à sua decisão.
Cumprida assim, minimamente, a exigência da explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal, tem de concluir-se que a norma em causa não foi aplicada no acórdão recorrido com a interpretação que, segundo o acórdão nº
680/98, é inconstitucional, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais e por violação do direito ao recurso'
(...)
2. Dela veio apresentar reclamação, 'nos termos do art. 78º-A, nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro', a sociedade recorrente C. Limitada, com o seguinte discurso:
'2. Ora, num primeiro passo, cabe aferir se, de facto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça cumpriu a obrigação ou exigência de explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal.
A própria decisão reclamada, qualifica, com cabal oportunidade, depois da transcrição parcial daquele acórdão, como minimamente cumprida tal exigência. Ora, em sede de fundamentação, o cumprimento mínimo não significa, de modo algum, um cumprimento bastante ou satisfatório, suficiente para que se consiga efectivamente aceitar ter sido observado o preceituado no art. 374º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, com a interpretação que lhe foi conferida pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 680/98.
Tanto mais que é consabido que a deficiência ou obscuridade da fundamentação equivale á sua absoluta ausência ou falta.
3. Lógico é que a falta de fundamentação, por demais gritante, que se descortina atrozmente no que concerne à decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância reflecte-se na incoerência fundamentadora do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que, desde logo, não tendo assistido à produção de prova, nunca poderia suprir a absoluta ausência de fundamentação quanto à matéria de facto, alastrando-se aquela sentença de recurso o vício congénito da sentença proferida na 1ª Instância.
Tal é, aliás, objecto de sinalização na decisão ora reclamada.
4. Daí que, e entrando, desde já, no segundo aspecto suscitado por aquela, em sede de recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça da sentença proferida em 1ª Instância se tenha objectivado a questão da nulidade absoluta do aresto, sendo que a alegação de recurso constitui a sede própria para se suscitar e arguir as nulidades da sentença final proferida e objecto de recurso
- assim, art. 668º, do Cód. Proc. Civil.
5. Revelando-se, assim, secundário suscitar a questão de admissibilidade do recurso interposto à luz do disposto no art. 70º, nº 6, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional'
Para, em seguida, concluir assim:
'a) o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça não preenche minimamente os requisitos de fundamentação, como determinado no art. 374º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, com a interpretação que lhe foi dada pelo acórdão do Tribunal de Constitucional nº 680/98;
b) sendo que a aparência fundamentadora nele contida não constitui mais do que uma tentativa de superação de uma absoluta omissão ocorrida na decisão da 1ª Instância, objectivamente impossível de ocorrer;
c)aliás, tal foi denunciado logo nas alegações de recurso apresentadas na decisão do Tribunal Criminal de Lisboa, em termos de viabilizar a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, atenta a norma invocada no requerimento de interposição de recurso'.
3. Respondeu à reclamação o Ministério Público nos seguintes termos:
'1º Objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo arguido é o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça – e não a decisão da 1ª instância.
2º Daí que apenas cumpra a este Tribunal sindicar o critério normativo usado pelo Supremo Tribunal de Justiça para interpretar a norma constante do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal – e não sindicar se, ao contrário do que afirma o Supremo Tribunal de Justiça, tal decisão se mostra ou não satisfatória ou “substancialmente” motivada ou fundamentada, no que concerne ao decidido sobre a matéria de facto.
3º Ora, do teor e literalidade do acórdão proferido pelo Supremo não decorre efectivamente que, no caso dos autos, este se tenha fundado na interpretação normativa do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal fulminada pelo acórdão nº 680/98, já que, de forma clara, se entendeu que o dever de fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto se não basta com uma mera e estrita indicação ou arrolamento das provas que suportam a formação da livre convicção do colectivo.
4º Em suma: saber se o Supremo Tribunal de Justiça aplicou, de forma correcta e coerente, à apreciação da decisão de 1ª instância, o critério normativo e interpretativo que especificou quanto à norma constante do citado artigo 374º, nº 2, do Código de Processo penal – e que manifestamente se afasta da interpretação julgada inconstitucional pelo acórdão nº 680/98 – é obviamente matéria que transcende os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional e os quadros do recurso de constitucionalidade fundado na alínea g) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, cujos pressupostos obviamente se não verificam.
5º Pelo que deverá ser julgada improcedente a presente reclamação'.
4. Vêm os autos à conferência, para decidir.
A reclamante não logra abalar a fundamentação da Decisão Sumária, que, por isso,
e no essencial, deve manter-se.
Na verdade, e partindo do fundamento do recurso de constitucionalidade - o da alínea g), do nº 1, do artigo 70º, e não o nº 6 deste artigo, que por lapso é indicado pela reclamante, e nem sequer existe na Lei nº 28/82 -, o que importava e importa saber é se teria sido aplicada norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e concluiu-se que não. Concluiu-se, pois, que não foi aplicada a norma do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, no acórdão recorrido, exactamente com o sentido ou com a interpretação que, segundo o acórdão nº 680/98, é inconstitucional.
Isto mesmo procurou demonstrar-se na Decisão Sumária, em termos que não interessa estar aqui a repetir, e que a reclamante não contrariou.
E mais: na já citada decisão da primeira instância não se detecta uma simples enumeração dos meios de prova utilizados nessa instância, mas há ainda uma explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, feita nestes termos:
'Serviram para se formar a convicção do Tribunal Colectivo o que resultou da inquirição a cada um dos arguidos - que prestou declarações - e às testemunhas, ouvidas em audiência, sobre factos de que possuíam conhecimento directo, e constituíam o objecto do processo, M., J., JM, MM - ofendidos, e 'demandantes' na medida do peticionado pelos, respectivos, estabelecimentos, que se reportaram
às vicissitudes ocorridas quanto às verbas, a mais, cobradas, que culminaram, após tentativas de resolução do problema, com as queixas apresentadas -, AS - assistente, que, em declarações, relatou o quanto a si ocorrido, e 'supra' referenciado -, O. - actual técnico oficial de contas, e que, como técnico auxiliar especialista elaborou o relatório de fls. 98 a 152, cujo teor corroborou -, MO - com funções na secretaria da 'C.' -, G. - empregada em estabelecimento do arguido A.. -, ML. - funcionária da C. -, MC - gerente do centro comercial, e amigo do arguido A., AP, técnico de contas, e colaborador e amigo do arguido A. -, MF, A.., CM - lojistas no referido centro comercial, e que relataram o que, quanto a eles, foi acordado com a 'C.' e o arguido A.., no tocante a rendas, e outras verbas a pagar -, e E. - conhecido do arguido AB -, bem como o teor de fls. 98 a 153 (relatório pericial) -, 7 a 10, 36 e 244 a 248
- cópias dos contratos de promessa - 177 a 186, 188 a 199, 201 a 212, 214 a 217, e 229 a 234 - relativos a recibos -, 25 a 27, 241, 259 a 360, 743 a 791, e 897 a
951 - tudo documentos referenciados na pronúncia, e sobre os quais se pronunciaram, na medida em que deles tinham conhecimento, os arguidos, o perito e as testemunhas ouvidas em audiência'
Para o reclamante revela-se 'secundário suscitar a questão de admissibilidade do recurso interposto à luz do disposto no art. 70º, nº 6, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional' (quer referir-se o nº 1, g), e não o nº 6, que não consta da Lei), mas isso é que é principal e não secundário. E, para tanto, ter-se-ia que demonstrar o que, afinal, e no entendimento da Decisão Sumária, se não demonstrou: a aplicação, no acórdão recorrido, lido à luz da decisão da 1ª instância, da norma em causa com a interpretação que, segundo o acórdão nº
680/98, é inconstitucional.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e não se toma conhecimento do recurso, condenando-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em quinze unidades de conta.
Lisboa, 7 de Dezembro de 1999- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida