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Processo nº 645/96 Requerente: Procurador-Geral da República Relator: Conselheiro Sousa e Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. O Procurador-Geral da República, ao abrigo do artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e) da Constituição, veio requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo
31º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 9/87, de 26 de Março e, consequencialmente, das normas dos Decretos Legislativos Regionais, nºs 10/87/A, de 24 de Junho, e 19/94/A, de 7 de Julho.
Como fundamento do seu pedido, o Procurador-Geral da República alega, em síntese, o seguinte:
- o artigo 233º, nº 5 da Constituição [versão anterior à revisão constitucional de 1997] impõe que a definição do estatuto dos titulares dos
órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas conste dos respectivos Estatutos Político-Administrativos;
- a definição do estatuto dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas integra, assim, a reserva de lei estatutária (reserva de estatuto), tal como o Tribunal Constitucional já teve ocasião de afirmar no Acórdão nº
637/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32, pp. 139 ss.);
- ora, sustenta o Procurador-Geral da República, tomando como base a argumentação desenvolvida no citado Acórdão nº 637/95 - , mesmo a ser constitucionalmente legítima, dentro de certos limites, a delegação de competência a favor da Assembleia Legislativa Regional para legislar naquela matéria, ela sempre seria inválida 'na medida em que o exercício da mesma ficaria sujeita a um critério, o do interesse específico regional avaliado pelo
órgão legislativo regional, para adaptação do estatuto remuneratório, parâmetro que se revelaria in casu constitucionalmente ilegítimo, dado o órgão de onde proviria a determinação desse interesse';
- nestes termos, conclui-se que o artigo 31º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 9/87, de 26 de Março, ao dispor que 'a Assembleia Legislativa Regional adaptará, em função do interesse específico da Região, o estatuto remuneratório dos deputados à Assembleia da República aos deputados àquela Assembleia', viola as disposições conjugadas dos artigos 164º, alínea b), 228º, nºs. 1 a 4, e 233º, nº 5 da Constituição [versão anterior à revisão constitucional de 1997];
- finalmente, o Decreto Legislativo Regional nº 10/87/A, ao estabelecer o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos da Região Autónoma dos Açores, e o Decreto Legislativo Regional nº 18/94/A, que o alterou, são 'consequência imediata' da norma do artigo 31º do Estatuto, pelo que, 'desde logo, se pode afirmar que o juízo de inconstitucionalidade daquela norma se alarga por identidade de razão a todas as normas destes diplomas legais'.
2. Nos termos dos artigos 54º e 55º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional, foram notificados para se pronunciarem, querendo, o Presidente da Assembleia da República e o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores: o primeiro, ofereceu o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República contendo os trabalhos parlamentares relativos à Lei nº
9/87, de 26 de Março; o segundo, defendeu a não inconstitucionalidade do artigo
31º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 9/87, de 26 de Março, e, bem assim, dos Decretos Legislativos Regionais nºs. 10/87/A, de 24 de Junho, e 18/94/A, de 7 de Julho (sustentando, na esteira da declaração de voto do Conselheiro Bravo Serra no referido Acórdão nº 637/85, em síntese, que a adaptação estatuída nesse artigo 31º 'visa mais uma equiparação ou uma correspondência entre as remunerações dos deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e as remunerações dos Deputados do que uma verdadeira adaptação', pelo que, no fundo, se limita 'a estabelecer um princípio programático, em termos do valor das remunerações dos deputados da Assembleia Legislativa Regional dos Açores').
II - Fundamentos
3. O artigo 31º do Estatuto Político- Administrativo da Região Autónoma dos Açores provém da versão originária deste Estatuto, que é a Lei nº
39/80, de 5 de Agosto, tendo-se mantido inalterado na primeira revisão desta Lei pela Lei nº 9/87, de 27 de Janeiro que publicou em anexo todo o Estatuto. Tem o seguinte teor :
A Assembleia Legislativa Regional adaptará, em função do interesse específico da Região, o estatuto remuneratório dos deputados à Assembleia da República aos deputados àquela Assembleia .
O objecto do pedido é ainda integrado 'consequencialmente' por
'todas as normas' do Decreto Legislativo Regional nº 10/87/A, de 24 de Junho, o qual, depois de referir, transcrevendo-o, o citado artigo 31º, acrescenta que,
'assim', aprova o Estatuto remuneratório dos titulares dos cargos políticos da região, ao abrigo da alínea a) do artigo 229º da Constituição, na versão anterior à revisão de 1997, a qual estabelecia a competência das regiões autónomas para 'legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas a competência própria dos órgãos de soberania'. O objecto do pedido abrange igualmente, nos mesmos termos, todas as normas do Decreto Legislativo Regional nº 18/94/A, de 7 de Julho, que alterou os artigos
5º, nº 1 e 6º do anterior Decreto Legislativo Regional nº 10/87/A, ambos relativos apenas aos deputados à Assembleia Legislativa Regional.
4. Ora importa referir, que o artigo 31º - tal como, de resto, também o artigo 54º - do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 9/87 - foi expressamente revogado pelo artigo 3º da Lei nº 61/98 de 27 de Agosto, que procedeu à segunda alteração desse Estatuto. Em seu lugar, o artigo 2º da Lei nº 61/98 aditou à lei estatutária (a Lei nº 39/80, de 5 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/87, de 26 de Março) um artigo 63º-A do seguinte teor: Artigo 63º-A1 - Na Região, são titulares de cargos políticos dos órgãos de governo próprio os Deputados à Assembleia Legislativa Regional e os membros do Governo Regional. 2 - Aos titulares dos órgãos de governo próprio da Região é aplicado o Estatuto Remuneratório dos Titulares de Cargos Políticos, constante da legislação nacional. 3 - Os preceitos dos diplomas mencionados no número anterior que não forem expressamente modificados pelo presente Estatuto aplicam-se integralmente na Região. 4 - O Presidente da Assembleia Legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional têm estatuto remuneratório idêntico ao do Ministro da República. 5 - Os Deputados à Assembleia Legislativa Regional percebem mensalmente um vencimento correspondente ao dos Deputados à Assembleia da República, deduzido da percentagem de 3,5%. 6 - Os Vice-Presidentes do Governo e os Secretários Regionais têm remuneração idêntica à dos Secretários de Estado e os Subsecretários Regionais à dos Subsecretários de Estado. 7 - Os Vice-Presidentes da Assembleia têm direito a um abono mensal para despesas de representação no montante de 25% do respectivo vencimento. 8 - Os presidentes dos grupos parlamentares têm direito a um abono mensal para despesas de representação no montante de 20% do respectivo vencimento. 9 - Os vice-presidentes dos grupos parlamentares, os presidentes das comissões parlamentares, os secretários da Mesa e os relatores das comissões têm direito a um abono mensal para despesas de representação no montante de 15% do respectivo vencimento. 10 - Os restantes Deputados não referidos nos nºs. 7, 8 e 9 têm direito a um abono mensal para despesas de representação no montante de 10% do respectivo vencimento, desde que desempenhem o respectivo mandato em regime de dedicação exclusiva. 11 - Os titulares de cargos políticos que se desloquem para fora da ilha em serviço oficial têm direito, em alternativa, e de acordo com a sua vontade, a uma das seguintes prestações: a) Abono de ajudas de custo diárias igual ao fixado para os membros do Governo; b) Alojamento em estabelecimento hoteleiro, acrescido do montante correspondente a 50% ou 70% das ajudas de custo diárias, conforme a deslocação se efectue no território nacional ou no estrangeiro. 12 - Os titulares de cargos políticos que se desloquem, em serviço oficial, dentro da ilha da sua residência têm direito a um terço da ajuda de custo fixada nos termos da alínea a) do número anterior, desde que a distância entre a sua residência e o local dos trabalhos exceda 5 km. 13 - O tempo de exercício de qualquer cargo político nos órgãos de governo próprio da Região acresce ao exercido como titular de cargo político nos órgãos de soberania. Esta norma – que passou a constituir o artigo 68º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na versão e numeração resultantes da Lei nº 61/98 – veio, pois, regular directamente o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos da Região, e substituir a devolução que nessa matéria se procedia para diplomas legislativos regionais.
É indiscutível, pois, que ela operou uma revogação tácita global dos Decretos Legislativos Regionais nºs. 10/87/A, de 24 de Junho, e 18/94/A, de 7 de Julho.
De harmonia com reiterada jurisprudência do Tribunal, e como se sabe, a circunstância de a norma sub judice se encontrar revogada não é suficiente, por si só, para se deixar de conhecer do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade - e nomeadamente para concluir pela inutilidade desse conhecimento (assim, desde logo, o Acórdão nº 17/83, Acórdãos cit., 1, pp. 95 ss.). No entanto - e como também é jurisprudência conhecida do Tribunal-, não basta que a norma já revogada haja produzido um qualquer efeito, para que tenha de entrar-se na apreciação do pedido da sua declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (neste sentido, entre outros, o Acórdão nº 116/97, Acórdãos cit., 36, pp. 79 ss.). Para tanto é necessário que tal apreciação se revista de um interesse jurídico relevante. Como se escreveu, a este propósito, no Acórdão nº 238/88 (Acórdãos cit, 12, 282 s.): 'há-de (...) tratar-se de um interesse com ‘conteúdo prático apreciável’, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, ‘seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de
índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade’ (...) para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo'. 'Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade' - afirmou-se ainda nesse Acórdão (no mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão nº 465/91, Acórdãos cit, 20, pp.285 ss.). Por outro lado, e de todo o modo, é ainda jurisprudência conhecida do Tribunal que não existe um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável
- no conhecimento do pedido quando a situação for tal que, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, os seus efeitos sempre viriam a ser limitados, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 282º da CR (vejam-se por exemplo, os Acórdãos nºs 238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90, 465/91, 308/93,
398/93, 804/93, 186/94, 57/95, 121/95, 497/97 e 625/97 (Acórdãos cit, 12, pp.286 s., 13-I, pp.332 ss., 26, pp.56 s., 27, pp.168 s., 30, pp.156 ss., 30, pp.303 ss., Diário da República, II série, de 10-10-1997, pp. 12489 s., de 10-12-1997, p. 15222, respectivamente).
Ora, à luz desta orientação jurisprudencial, bem firmada, afigura-se claro que não deve conhecer-se do pedido formulado no presente processo, em razão da sua inutilidade superveniente. E isso justamente porque uma eventual declaração de inconstitucionalidade, que nele viesse a ser proferida, seria desprovida de quaisquer efeitos. Com efeito, numa situação semelhante à suscitada no presente processo, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 637/95 (publicado também em Acórdãos cit. vol. 32, p. 139), decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 28º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho, com fundamento na violação das disposições conjugadas dos artigos 164º, alínea b), 228º, nºs 1 a 4, e 233º, nº 5, da CR, e, ainda, de todas as normas do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/M, de 5 de Fevereiro, por violação daqueles artigos e também do art. 229º, nº 1, alínea a), da Constituição. Refira-se, contudo, que o Tribunal decidiu limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, determinando que os mesmos apenas se produziriam a partir da data da publicação desse Acórdão no Diário da República. Fê-lo, nos termos do nº 4 do artigo 282º da CR, com os seguintes fundamentos: 'No presente processo, considera-se que a segurança jurídica exige que os efeitos de inconstitucionalidade sejam limitados, produzindo-se apenas a partir da publicação deste acórdão, a fim de evitar que tenha de haver reposição por terceiros de prestações remuneratórias percebidas de boa fé'. Esta razão permanece substancialmente válida no presente caso.
Assim sendo, como o Tribunal - mesmo que reiterasse a orientação do Acórdão nº 637/95 e concluísse por uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral - sempre haveria de limitar os efeitos desta, por razões de segurança jurídica, entende-se que não existe interesse na apreciação do pedido.
III - Decisão
5. Face ao exposto, decide-se não tomar conhecimento do pedido. Lisboa, 16 de Fevereiro de 2000 José de Sousa e Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa