Imprimir acórdão
Processo n.º 342/2012
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A A., S.A., com os demais sinais dos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão, da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer das questões de constitucionalidade apontadas no seu requerimento de interposição de recurso.
2. Refutando esta decisão de não conhecimento do objeto do recurso, assim argumentou a reclamante:
A INVOCAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA APLICADA NO ACÓRDÃO DE 13 DE MARÇO DE 2012 DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Conforme resulta do requerimento de interposição de recurso, pretende a requerente que seja sindicada a constitucionalidade da norma, extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, al. c), 402.º, 403.º, 410.º, 419.º e 425.º, designadamente, n.º 4, do Código de Processo Penal («CPP») e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104º do RGIT e 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP, segundo a qual sendo suscitada e decidida em 1ª instância a questão da prescrição do procedimento criminal com base num determinado fundamento fáctico- jurídico, pode o Tribunal de recurso conhecer dela e decidi-la com base em outro fundamento fáctico-jurídico processualmente autónomo, sendo irrelevante que sobre este último não tenha recaído contraditório nem decisão em 1ª instância.
Na douta decisão sumária cita-se a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, salientando, mesmo nos casos em que está em causa uma determinada dimensão normativa, a necessidade de «que a dimensão normativa que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido previamente controvertida perante o Tribunal a quo e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido» (p. 3 da decisão).
É certo que em Portugal não existe ação de constitucionalidade ou recurso de amparo. Só a suscitação da inconstitucionalidade de um preceito, seu segmento ou de uma determinada dimensão normativa com relevo para a decisão da causa perante a jurisdição ordinária permite que, confrontado o tribunal com a questão de constitucionalidade normativa, se venha a recorrer da sua decisão para o Tribunal Constitucional.
Ora, esse confronto é colocado perante o Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que sem recurso a fórmulas sacramentais que exprimam a norma subjacente à decisão, mas, antes, com recurso à descrição do modelo decisório que tem um pressuposto normativo incompatível com a Constituição.
Tal sucede precisamente nos pontos 49 e 50 do requerimento de arguição de nulidade do Acórdão de 15 de dezembro de 2011, transcrito na página 5 da decisão sumária, onde se pode ler:
«Proceder de outro modo - isto é, conhecer e decidir questões não constantes da fundamentação da decisão recorrida (porque irrelevantes na perspetiva da solução jurídica adotada por esta) - implica que o Tribunal de recurso conhece de questões de que não pode conhecer (art. 379º, nº 1, al. c,), aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo Código).
E ao fazê-lo, conhece delas em 1ª instância, chamando a si um poder de decisão (isto é, de conhecimento e decisão em 1ª instância) que funcionalmente lhe não pertence e, além disso, suprimindo um nível de contraditório que deve preceder a decisão e um nível de apreciação jurisdicional da questão»
6. Ou seja:
a. Proceder de modo diverso do resultante da doutrina exposta por SIMAS SANTOS/LEAL-HENRIQUES e DAMIÃO DA CUNHA;
b. Modo diverso esse consistente em conhecer e decidir questões não constantes da fundamentação da decisão recorrida (porque irrelevantes na perspetiva da solução jurídica adotada por esta) - in casu, uma questão de prescrição;
c. Chamando a si um poder de decisão que lhe não pertence;
d. Suprimindo um nível de contraditório que deve preceder a decisão;
e. E [suprimindo] um nível de apreciação jurisdicional da questão.
7. Analisando os diversos segmentos do requerimento de arguição de nulidade, nessa parte:
a. O segmento (a) indica de modo genérico e abstrato o modo de proceder em que é possível enquadrar a decisão do Tribunal arguida de nula. E genérico e abstrato, primeiro, porque é um modo identificado a partir de considerações doutrinais genéricas e abstratas; e, depois, porque ainda é delimitado face a essas considerações doutrinárias simplesmente pela negativa;
b. O segmento (b) formula sinteticamente e de forma geral e abstrata - aliás, ao modo típico de uma previsão normativa - a categoria jurídica a que é recondutível esse modo de proceder;
c. O segmento (c) é argumentativo, traduzindo apenas a desconformidade com a lei que o requerente entende aplicável (que não a norma a que alternativamente recorreu o Tribunal da Relação de Lisboa);
d. O segmento (d) resulta da aplicação de uma determinada dimensão normativa, exceto no subsegmento que deve preceder a decisão (que traduz apenas a desconformidade com a lei que o requerente entende aplicável);
e. O segmento (e) resulta da aplicação de uma determinada dimensão normativa e consequência do segmento (d).
8. Ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa foi confrontado com a violação da Constituição resultante de o tribunal proceder de um modo - conhecer e decidir em 1ª instância questão não constante da decisão recorrida (da decisão da 1ª instância) - quanto à contagem do prazo de prescrição, suprimindo um nível de contraditório e uni nível de apreciação jurisdicional da questão (segmentos (a), (c) e (d) do ponto 50 do requerimento de arguição de nulidade do Acórdão de 15 de dezembro de 2011).
9. Ora, essa confrontação traduz uma evidente identificação de um evidente critério normativo geral e abstrato.
10. Nem sequer se pode dizer que se trata de um critério que se tem de descobrir por um processo de abstração, em processo lógico que mais não faz do que traduzir o critério normativo utilizado pelo Tribunal.
11. Em absolutamente nenhum dos seus segmentos - do primeiro ao último - marcam nele presença quaisquer contornos de caso concreto: todos eles correspondem à formulação de categorias gerais e abstratas — pelo que se está perante um puro critério normativo.
12. E tão-pouco no juízo que sobre ele se pede ao Tribunal Constitucional se pretende uma decisão senão sobre a constitucionalidade desse critério normativo geral e abstrato e não que sindique a correção da decisão da matéria de facto, ou da determinação, interpretação ou aplicação de qualquer norma ao caso concreto, no seu circunstancialismo.
13. E tal critério normativo (o que foi aplicado ao caso concreto) corresponde a uma norma segundo a qual sendo suscitada e decidida em 1ª instância a questão da prescrição do procedimento criminal com base num determinado fundamento fáctico-jurídico, pode o Tribunal de recurso conhecer dela e decidi-la com base em outro fundamento fáctico-jurídico processualmente autónomo, sendo irrelevante que sobre este último não tenha recaído contraditório nem decisão em 1ª instância.
14. Ou, se se preferisse, mais literalmente, por referência ao ponto 50 (49 e 52) do requerimento de arguição de nulidade, corresponde a uma norma segundo a qual o tribunal pode conhecer e decidir em a instância questão não constante da decisão recorrida (da decisão da 1ª instância) quanto à contagem do prazo de prescrição, suprimindo um nível de contraditório e um nível de apreciação jurisdicional da questão.
15. Critério normativo que tinha sido aplicado - de surpresa - no Acórdão de cuja nulidade se reclamava, critério com base no qual se arguiu essa mesma nulidade, critério, enfim, contra cuja aplicação foi confrontado de forma por demais clara e evidente o Tribunal da Relação de Lisboa na arguição de nulidade.
16. Aliás a perceção desse confronto, tendo-o em conta justamente como um dever-ser normativo, é por demais evidente no próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de março de 2012 (p. 16):
«Como se impunha que este Tribunal se pronunciasse sobre se os crimes estavam ou não prescritos, que era o “thema decidendum” segundo as conclusões do recurso, o que também é do conhecimento oficioso e não apenas sobre a aplicabilidade do n.º 3, do artigo 21º, do RGIT, sendo que, quando o Tribunal para decidir as questões colocadas pelo recurso utiliza razões ou fundamentos não constantes da decisão recorrida ou não invocados pelos intervenientes processuais, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade» (destaques nossos).
«Assim, não foram extravasados os poderes de cognição deste Tribunal da Relação, pelo que o acórdão censurado também não enferma do vício de excesso de pronúncia, não ocorrendo violação de normas que regulam a diferenciação de competência funcional para julgamento e para conhecimento dos recursos, do princípio do contraditório e do direito ao duplo grau de jurisdição inerente ao direito ao recurso como momento das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas.»
17. E isto, note-se, sendo irrelevante para a decisão desse Tribunal o caráter abstrato ou concreto do problema de inconstitucionalidade que lhe era colocado.
18. Assim, o que está e sempre esteve em questão não é o juízo sobre um caso concreto, nos seus contornos individuais e concretos - a não ser, claro! na medida em que, como é exigido para a admissão do recurso pelo Tribunal Constitucional, para exigir que ele tenha sido aplicado pela decisão recorrida.
19. Mas a aplicação a um caso concreto não destitui uma norma do seu caráter normativo.
20. O que está e sempre esteve em questão é, antes, o juízo sobre uma dimensão normativa - que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional - que foi qua tale, isto é, enquanto dimensão normativa geral e abstrata, aplicada de surpresa no Acórdão reclamado de nulidade, que, podendo ser eventualmente aplicada numa decisão sobre essa nulidade, foi previamente controvertida perante o Tribunal a quo e constituiu ratio decidendi do juízo proferido.
21. Acrescente-se, ainda, o seguinte: como se disse, em absolutamente nenhum dos seus segmentos o critério normativo em causa apresenta quaisquer contornos de caso concreto, correspondendo todos eles à formulação de categorias gerais e abstratas, pelo que se está perante um puro critério normativo.
22. A isso não obsta - como é geralmente reconhecido - o facto de esse critério não se encontrar legalmente formulado.
23. É que a jurisprudência encontra normas, ainda que implícitas, no sistema precisamente no exercício do seu múnus constitucional de aplicação do Direito.
24. Ou seja, se é verdade, que a aplicação a um caso concreto não destitui uma norma do seu caráter normativo, também é certo que a descoberta de uma norma por interpretação não lhe retira esse mesmo caráter, ou não fosse a interpretação, afinal, a única forma de descoberta das normas, sejam elas expressões declarativas dos preceitos, sejam elas expressões heurísticas da teleologia de um sistema normativo ou dos seus segmentos.
25. Só assim faz sentido a fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, tanto nos casos em que as mesmas resultam de modo evidente de urna aproximação declarativa aos preceitos, como nos casos das normas implícitas, ou das encontradas nos processos de integração de lacunas (cfr., sobre o problema das “normas implícitas” como objeto idóneo de fiscalização da constitucionalidade, Rui MEDEIROS, A força expansiva do conceito de norma no sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade, in Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, p. 187 ss., para o qual também remete o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008).
26. Mesmo que assim se não entendesse e se procedesse à distinção entre realidades típicas não configuradas pelo legislador e categorias normativas fixadas por lei, sempre se terá de entender que o critério atrás formulado não pode deixar de ser considerado «um critério normativo, dotado de elevada abstração e suscetível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas» (cfr., por exemplo, Acórdãos do Tribunal Constitucional TC n.ºs 412/2003, 110/2007; ver ainda, Acórdãos n.ºs 183/2008,543/2008 e 486/2009).
27. Perante o caráter geral e abstrato - ou, sem conceder, típico - do critério invocado, em todos os seus momentos e segmentos, a sua assunção como tal pelo próprio Acórdão recorrido, perante o juízo de cariz geral e abstrato que é pedido ao Tribunal Constitucional, só é possível não admitir o recurso , apesar de todos os protestos em contrário - mediante uma postura meramente formal de exigência de fórmulas tabeliónicas ou sacramentais de redação dos critérios normativos arguidos de inconstitucionais.
28. E esquecer que o princípio pro actione, como vertente do direito de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, da Constituição e, sobre ele Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, pp. 439 ss.) - que o Tribunal Constitucional tem exigido - com toda a razão - aos demais Tribunais, não pode estacar à sua porta.
29. Pelo que entende a reclamante que deve ser admitido o recurso quanto à invocada inconstitucionalidade da norma aplicada no Acórdão de 13 de março de 2012 do Tribunal da Relação de Lisboa.
II. A Invocação DA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA APLICADA NO ACÓRDÃO DE 15 DE DEZEMBRO DE 2012 DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
30. Conforme resulta do requerimento de interposição de recurso, pretende ainda a requerente que seja sindicada a constitucionalidade da norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de “execução continuada (que se não confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa”, a determinação do prazo de prescrição aplicável à conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato, determine este um regime mais favorável ou menos favorável.
31. Como se refere no requerimento de interposição de recurso para esse venerando Tribunal, no momento em que foi interposto o recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação, compulsadas interrupções e suspensão, não era ainda relevante saber se se aplicava o RJIFNA em alternativa ao critério utilizado na primeira instância.
32. Na verdade, hierarquizando a lei sobre prescrição, aplicável no tempo, de acordo com o critério da lei mais favorável, será, agora, de preferir:
a. O critério prescricional em que se fundou o tribunal de primeira instância (artigo 21.º, n.º 3, do RGIT); caso assim não se entendesse,
b. O critério prescricional que resulta do RJIFNA; e, por último,
c. O critério prescricional propugnado pelo Ministério Público no seu recurso da decisão da primeira instância.
33. Ora, como bem assinala o Venerando Juiz Conselheiro Relator, um critério alternativo ao artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, estava já propugnado pelo Ministério Público no seu recurso, mais concretamente, a aplicação das disposições dos números 1 e 2 do artigo 21.º do RGIT, pelo que a ora reclamante podia prever a sua aplicação.
34. Mas o ponto na invocação desta inconstitucionalidade não é esse.
35. É que a aplicação alternativa do RJIFNA nunca havia sido suscitada ou conjecturalmente negada por nenhum sujeito processual e, após (e só após), o recurso do Ministério Público é que se coloca a questão da inconstitucionalidade da aplicação de uma critério normativo tão abrangente que obsta à aplicação do próprio RJIFNA, ainda que concretamente mais favorável.
36. Na verdade, admitindo que se considera o critério do Tribunal da Relação, iniciando, para um primeiro segmento, a contagem de prazo da prescrição em 30 de agosto de 2001 (cfr. p. 58 do Acórdão de 15 de dezembro de 2011), a prescrição verificar-se-ia com toda a certeza apenas em 29 de fevereiro de 2012.
37. Ou seja, dez anos e meio depois, considerando um prazo de prescrição, no RJIFNA, de 5 anos, a que acresce metade (dois anos e meio) e o prazo de suspensão (3 anos).
38. Pelo que não só a questão não fora ainda colocada pelo Ministério Público, como era impossível à ora reclamante então prever que o critério adotado pelo Tribunal da Relação de Lisboa não se limitasse a preferir a aplicação dos números 1 e 2 do artigo 21.º do RGIT, mas fosse mais longe, assumindo um critério que pressupõe de aplicação da lei no tempo, reportando-se ao último ato.
39. O que estava até então em causa era a escolha de regime no contexto do RGIT e não a aplicação da lei no tempo, no confronto entre o RJIFNA e o RGIT.
40. Pelo que, não estando o assunto em discussão, uma norma que fixa um critério de prescrição que obsta, no caso concreto, à aplicação do instituto, na prática, afasta a aplicação da lei mais favorável que entretanto viesse a produzir efeitos, ainda que preteritamente vigente.
41. No caso, afastou o RJIFNA.
42. Ora, tal critério de indiferença perante a aplicação da lei mais favorável no tempo é surpreendente (tal a afronta à regra constitucional) e não podia ser antecipado porque não era ainda questão no momento da resposta ao recurso.
43. Só perante o Acórdão de dezembro, a escolha de atos, no mesmo, para contagem de prazo e a assunção de um critério de contagem que exclui qualquer outro regime, entretanto aplicável, é que a ora reclamante poderia ter a perceção da norma aplicada e do seu alcance, sendo certo que o interesse em agir em relação à mesma (resultante da primeira prescrição operada pelo RJIFNA, em fevereiro de 2012, seguindo o critério de aferição do início de contagem assumido pelo Tribunal da Relação) só se vem a verificar após o seu último ato sujeito a decisão definitiva na jurisdição ordinária - o requerimento de nulidade (entrado em janeiro de 2012) do Acórdão de dezembro de 2011.
44. Pelo que, das duas uma:
a. Ou se considera que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de dezembro de 2011 não aplicou uma norma - fixando o correspondente dispositivo para o tribunal de 1.ª instância – que impeça a aplicação do RJIFNA e, portanto, que impeça uma nova decisão de prescrição (pelo menos relativamente a algumas alegadas sequências de atos) pelo tribunal de primeira instância logo que os autos baixem;
b. Ou se considera que tal norma foi efetivamente aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, nesse caso, o interesse em agir superveniente autoriza a invocação da inconstitucionalidade perante a surpresa de uma norma que extravasa a sua aplicação para além do que era o interesse em agir no momento concreto da decisão.
45. Ficar algures no meio seria inadmissível porque permitiria o trânsito em julgado de uma decisão que não esteve em discussão nos autos até ao Acórdão de dezembro de 2011 e que só se consolidou e, sobretudo, confirmou (colocada a questão da aplicabilidade do RJIFNA) após o requerimento de nulidade do Acórdão.
46. Seria, no fundo, impedir a ora reclamante de requerer a aplicação do RJIFNA, simultaneamente, por chegar cedo demais e chegar tarde demais.
47. Pelo que deve considerar-se admissível a invocação da inconstitucionalidade nos moldes adotados pela ora reclamante, com efetiva concretização da formulação abstrata da norma apenas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, pelas razões referidas, desde logo, nos pontos 42 a 46 do mesmo requerimento, dada a inexigibilidade da antecipação.
48. Tudo sem prejuízo da avaliação da materialidade da invocação, no modo geral preteritamente possível, conforme explicado nos pontos 19 e seguintes do seu requerimento de interposição de recurso para esse Venerando Tribunal.
3. O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento, aduzindo, para tanto, os seguintes fundamentos:
“(...)
1. A., SA vem reclamar para a conferência da Decisão Sumária n.º 298/12, pedindo a revogação da mesma e, em consequência, o prosseguimento do recurso de inconstitucionalidade (fls. 938 e 950).
2. O recurso de inconstitucionalidade, esse, foi interposto do “Acórdão de 13 de março de 2012, e bem assim, (…) do Acórdão de 15 de dezembro de 2011” (fls. 841).
3. A douta Decisão Sumária decidiu “não conhecer do objeto do (….) recurso”, no tocante a qualquer uma das duas “normas” compostas ad hoc para integrarem o objeto do recurso de constitucionalidade.
Quanto ao requerimento de arguição de nulidade do acórdão de 15 de dezembro de 2011, em virtude de, nessa peça processual, não ter sido “suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa” (fls. 896).
Quanto ao acórdão de 15 de dezembro de 2011, igualmente em virtude de não ter sido deduzida nenhuma questão de constitucionalidade normativa, no momento processualmente adequado (“resposta ao recurso” interposto pelo Ministério Público) e, mais, em virtude de não ser imprevisível a aplicação do artigo 21.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT na decisão recorrida (fls. 899 e 900).
II
(Acórdão de 15 de dezembro de 2011)
4. Sobre o ora reclamante, como condição de admissibilidade do recurso e no momento “processualmente adequado”, impendia o ónus de suscitar a “questão normativa de inconstitucionalidade” (LOFPTC, art. 72.º, n.º 2). O “momento processualmente adequado” era, no caso, a peça processual de “resposta” à motivação do recurso. Pois, por via de regra e ressalvada superveniência de fundamento inopinado, os incidentes pós-decisórios já não são idóneos para levantar as ditas questões.
5. Ora, como bem se refere na decisão reclamada, nas suas alegações e respetivas conclusões, o ora reclamante não suscitou nunca qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Por outras palavras, não identificou uma contradição entre certa norma, fragmento de norma ou interpretação normativa efetivamente aplicada, como razão de decidir, no despacho de 15 de dezembro de 2010, proferido no Proc. n.º 11/02.1TELSB-A, da 5.ª Vara Criminal de Lisboa, e um princípio ou norma Constitucional (CRP, art. 277.º, n.º 1). Aliás, uma vez que o despacho então recorrido lhe era favorável, não seria mesmo expectável que o fizesse. Como se comprova, de modo insofismável, simplesmente lendo a conclusão n.º II, a fls. 648: “Em nenhum dos seus passos essenciais, a argumentação vertida na motivação de recurso procede, mostrando-se pelo contrário inteiramente de manter o despacho ora sem razão recorrido.”
6. Por outra parte, é manifesto que o acórdão em apreço não aplicou “uma norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de “execução continuada (que não se confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa, a determinação do prazo de prescrição aplicável à conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato’, determina este um regime mais favorável ou menos favorável”.
É, pois, uma “norma” ad hoc, confecionada para abrir a via do recurso de constitucionalidade ? sendo certo que não se alega, nem comprova, que esta proposição tenha correspondência verbal nas previsões legais referidas e, aliás, não vêm identificadas as redações dos diplomas em causa que são de tomar em consideração.
7. Com efeito, a análise normativa, levada a cabo do acórdão, girou em torno do artigo 21.º do RGIT (Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal), nomeadamente dos seus n.ºs 1 e 2 (por se ter ajuízado que o tipo legal em fraude fiscal não dependia de liquidação), e dos artigos 118.º, 119.º e 121.º do Código Penal (em matéria de prescrição do procedimento criminal).
8. Sendo assim, como igualmente bem se resolveu na decisão sumária reclamada, também não procede o argumento da inopinada da escolha da norma do caso e do tema da análise jurídica da decisão recorrida (prescrição, liquidação, processo penal tributário, crime de fraude fiscal), pois era precisamente esse o tema que decorria da motivação do recurso do Ministério Público e em cuja impugnação o ora reclamante abundou, na sua douta resposta (p. ex. conclusões n.ºs I a XXIX, fls. 648 a 654).
III
(Acórdão de 13 de março de 2012)
9. Também quanto a este aresto, como condição de admissibilidade do recurso e no momento “processualmente adequado”, sobre o ora reclamante impendia o ónus de suscitar a “questão normativa de inconstitucionalidade” (LOFPTC, art. 72.º, n.º 2). O “momento processualmente adequado” (salvo superveniência de questão imprevisível) era, no caso, o requerimento de 11 de janeiro de 2012, que vem arguir a nulidade do aludido acórdão (fls. 739 a 754).
10. Ora, também aqui, como igualmente bem se refere na decisão reclamada, o ora reclamante não suscitou nunca qualquer “questão de inconstitucionalidade normativa”.
Por outras palavras, não identificou uma contradição entre certa norma, fragmento de norma ou interpretação normativa efetivamente aplicada, como razão de decidir, no dito acórdão, e um princípio ou norma Constitucional (CRP, art. 277.º, n.º 1).
11. O que faz, verdadeiramente, é censurar o conteúdo da decisão, que não de uma norma escolhida para integrar o discurso justificatório da decisão. Isso é patente, por exemplo, destas passagens: “ (…) Artsº 2 e 29 da Constituição” (critério constitucional que, aliás, o Acórdão reclamado violou” (…) implica que o Tribunal de recurso conhece de questões de que não pode conhecer (…) E, ao fazê-lo, conhece delas em 1ª e única instância, chamando a si um poder de decisão (isto é, de conhecimento e decisão em 1ª instância) que funcionalmente lhe não pertence e, além disso, suprimindo um nível do contraditório que deve preceder a decisão e um nível de apreciação jurisdicional da questão (…) Com isso se violando (….) o princípio legal e constitucional do contraditório (arts. 327º, do CPP, e 32º, nº 5, da Constituição) e ainda – pela via de uma restrição arbitrária e desproporcional – o direito ao duplo grau de jurisdição inerente ao direito ao recurso como momento das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas (arts. 13º, 18º e 32º, nº 1, da Constituição) (n.ºs 44 e 49 a 50).
12. Acresce, que acórdão em apreço não aplicou, no caso, qualquer “norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, alínea b), 119.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 120.º, n.º 1, alínea b), e 2 e 3, 121.º, n.º 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de ‘execução continuada (que não se confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa’, a determinação do prazo de prescrição aplicável à ‘conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato’, determina este um regime mais favorável ou menos favorável”. Esta é uma formulação ad hoc, confecionada para abrir a via do recurso de constitucionalidade sendo certo que não se alega nem comprova que esta proposição tenha correspondência verbal nas previsões legais referidas e, aliás, não vêm, sequer, identificadas as redações dos diplomas em causa que são de tomar em consideração.
Pois, na verdade, a análise normativa levada a cabo do acórdão apenas se cingiu à análise do artigo 379. º (Nulidade da sentença) do CPP, nomeadamente na perspetiva da correção da fundamentação e do excesso de pronúncia (fls. 803 a 807).
13. Portanto, como bem se refere na decisão sumária reclamada, o reclamante não alega nem demonstra, como lhe competia, que o acórdão em apreço “aplicou uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada, pela parte, durante o processo de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecera” (LOFPTC, arts. 70.º, n.º 1, al. b), e 72.º, n.º 2).
(...)”.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
“(...)
1. A., S.A., com os demais sinais dos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de março de 2012 e de 15 de dezembro de 2011, pretendendo ver sindicada, quanto ao primeiro, a constitucionalidade da “norma, extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), 402.º, 403.º, 410.º, 419.º e 425.º, designadamente, n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP) e, bem assim, dos artigos 15.º, 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT e 118.º, n.º 1, alínea b), 119.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 120.º, n.º 1, alínea b) e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do CP, segundo a qual sendo suscitada e decidida em 1.ª instância a questão da prescrição do procedimento criminal com base num determinado fundamento fáctico-jurídico, pode o Tribunal de recurso conhecer dela e decidi-la com base em outro fundamento fáctico-jurídico processualmente autónomo, sendo irrelevante que sobre este último não tenha recaído contraditório nem decisão em 1.ª instância”; e, quanto ao segundo, a constitucionalidade da “norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, alínea b), 119.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 120.º, n.º 1, alínea b), e 2 e 3, 121.º, n.º 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de ‘execução continuada (que não se confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa’, a determinação do prazo de prescrição aplicável à ‘conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato’, determina este um regime mais favorável ou menos favorável”.
2. O recurso foi admitido pelo tribunal a quo, sendo que tal decisão, em face do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, não vincula o Tribunal Constitucional. Assim, uma vez que o presente caso se enquadra na hipótese delineada no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se nos termos e com os seguintes fundamentos.
3. O presente recurso vem igualmente interposto ao abrigo da alínea b), do artigo 70.º, n.º 1, da LTC.
Assim sendo, o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, aí previsto, há de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Decorre, assim, do referido preceito que a questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada em termos adequados, claros e percetíveis, durante o processo, de modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal matéria.
O sentido daquele pressuposto tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal Constitucional.
Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de setembro de 1994, escreveu-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, ou seja, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”.
No Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República II Série, de 10 de janeiro de 1995, mais se considerou que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão».
Neste domínio, há assim que acentuar que nos processos de fiscalização concreta a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado (nesta linha de pensamento, podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de junho de 1995, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de outubro de 2000, e sobre o sentido de tal requisito, José Manuel Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 40 e 72), razão pela qual as partes, ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental, impendendo sobre elas um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspetiva, quanto à sua conformidade constitucional.
Por outro lado, nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR, II Série, de 7 de setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sendo no entanto necessário, em tal hipótese, que a dimensão normativa que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido previamente controvertida perante o Tribunal a quo e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de dezembro de 1998 e o Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Para tais efeitos, importa, pois, colocar o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada, havendo de concretizar-se o sentido desse preceito de modo a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual é o preceito e com que sentido ele não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição, assim se exigindo que, em sede de recurso, a questão de constitucionalidade seja concretizada de modo claro, direto e objetivo (cf. Acórdão n.º 1210/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Em suma, «“suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao ato de aplicação do Direito – concretizado num ato de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal ato ou decisão (cf. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 618/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996)» – cf. o Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais aí se remete.
Vertendo estes criteria para o caso sub judicio, constata-se que a Recorrente não suscitou nenhuma das questões de constitucionalidade que agora aporta a este Tribunal, nem se verifica, in casu, o circunstancialismo excecional que permite a admissão do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, sem que tal ónus seja cumprido.
Vejamos.
Quanto à norma “extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), 402.º, 403.º, 410.º, 419.º e 425.º, designadamente, n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP) e, bem assim, dos artigos 15.º, 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT e 118.º, n.º 1, alínea b), 119.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 120.º, n.º 1, alínea b) e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do CP, segundo a qual sendo suscitada e decidida em 1.ª instância a questão da prescrição do procedimento criminal com base num determinado fundamento fáctico-jurídico, pode o Tribunal de recurso conhecer dela e decidi-la com base em outro fundamento fáctico-jurídico processualmente autónomo, sendo irrelevante que sobre este último não tenha recaído contraditório nem decisão em 1.ª instância”, invoca a Recorrente que tal inconstitucionalidade fora suscitada “no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão de 15 de dezembro de 2011 (cfr. n.º 51...)”.
Do referido requerimento constam, inter alia, as seguintes menções:
“(...)
48. DAMIÃ0 DA CUNHA explica, a partir das consequências do dever de fundamentação para a estrutura dos recursos:
«Se o recurso pode ter por fundamento qualquer questão que o tribunal devesse conhecer, é evidente que o tribunal de recurso deverá poder conhecer de todas as questões, desde que atinentes ao objeto do recurso. Mas conhece delas até onde os seus poderes lho permitam. [...]
Merece, aqui uma breve referência, a seguinte consideração: o que o tribunal de recurso pode conhecer é, exatamente, aquilo que juridicamente é imposto que o tribunal a quo dê a conhecer, por via da fundamentação da sentença. Ora, nesse dever de fundamentação, o que está em causa é a resolução de questões, quer no seu aspeto jurídico, quer na questão de facto (com a referência às provas que foram juridicamente relevantes para a decisão). Pelo que, o tribunal de recurso, podendo conhecer das questões (de todas as questões), só delas efetivamente conhece quando as possa reconhecer na sentença e as possa «valorar» como bem (ou mal) decididas – assim, a validade da decisão da aceitabilidade da mesma na sua recíproca ligação entre questão de direito e questão de facto. Discutir questões, é não só discutir questões jurídicas e questões de facto, mas, ao mesmo tempo, a sua inter-relação, na medida em que as duas «dimensões» estão presentes no âmbito da fundamentação; por outro lado, para que o tribunal de recurso possa conhecer tais questões, é necessário que elas estejam presentes na decisão judicial, é só perante o conhecimento das mesmas, é que o tribunal pode decidir da validade da decisão. Mas [...] nem sempre o tribunal de recurso pode conhecer de todas as questões relevantes – porque nem sempre o tribunal a quo dá a conhecer tudo, mas só o que foi estritamente relevante para a decisão –, como nem sempre estará habilitado a decidir” (O caso julgado parcial - questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória, Porto, Publicações Universidade Católica, 2002, pp. 578-579).
49. Proceder de outro modo – isto é, conhecer e decidir questões não constantes da fundamentação da decisão recorrida (porque irrelevantes na perspetiva da solução jurídica adotada por esta) – implica que o Tribunal de recurso conhece de questões de que não pode conhecer (art. 379º, nº 1, al. c), aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo Código).
50. E, ao fazê-lo, conhece delas em 1ª e única instância, chamando a si um poder de decisão (isto é, de conhecimento e decisão em 1ª instância) que funcionalmente lhe não pertence e, além disso, suprimindo um nível do contraditório que deve preceder a decisão e um nível de apreciação jurisdicional da questão.
51. Com isso se violando, a um tempo, a diferenciação da competência funcional para julgamento e para conhecimento dos recursos (arts. 12º e ss. do CPP), o princípio legal e constitucional do contraditório (arts. 327º, do CPP, e 32º, nº 5, da Constituição) e ainda – pela via de unia restrição arbitrária e desproporcional – o direito ao duplo grau de jurisdição inerente ao direito ao recurso como momento das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas (arts. 13º, 18º e 32º, nº 1, da Constituição).
52. Não pode haver dúvidas que foi isso que sucedeu no presente caso quanto à contagem do prazo de prescrição no caso, na circunstância de considerar não aplicável o artigo 21.º, n.º 3, do RGIT.
(...)”.
Dessas considerações não resulta, no entanto, suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa nos termos suso explicitados.
Aí apenas se controverte a própria decisão judicativa reclamada, assacando-lhe, reta via, a violação dos parâmetros constitucionais, sem que se tenha equacionado ou suscitado, sub species constitutionis e fora do estrito campo da aplicação do direito, a validade de qualquer norma, incluindo, a fortiori, aquela que a Recorrente erigiu em objeto do presente recurso de constitucionalidade.
Mutatis mutandis, também quanto à “norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, alínea b), 119.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 120.º, n.º 1, alínea b), e 2 e 3, 121.º, n.º 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de ‘execução continuada (que não se confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa’, a determinação do prazo de prescrição aplicável à ‘conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato’, determine este um regime mais favorável ou menos favorável”, não podem considerar-se cumpridos os requisitos de admissibilidade do recurso interposto.
No que concerne a esta parte do recurso, referida ao Acórdão de 15 de dezembro de 2011, alega a Recorrente, pela argumentação que se transcreve, ter suscitado igualmente a citada questão de constitucionalidade. Diz-se, quanto a essa matéria, no requerimento de recurso:
“(...)
23. A inconstitucionalidade acabada de invocar foi devidamente suscitada pela ora RECORRENTE.
24. Antes de mais, a ora RECORRENTE desde o início alegou que ao crime único imputado nos autos que, de acordo com a acusação e a pronúncia, incluiu operações ocorridas do domínio temporal de vigência entre o RJIFNA e o RGIT, se deve aplicar, por imposição constitucional dos princípios que regem a aplicação da lei no tempo, a lei mais favorável.
25. Na verdade, porque as operações em causa nos presentes autos – e imputadas como um só e único crime – decorreram, em parte significativa ainda na vigência do RJIFNA e, noutra parte, na do RGIT, a questão das imposições constitucionais em matéria de aplicação da lei sobre prescrição no tempo questão foi suscitada pela ora RECORRENTE, logo no requerimento em que invocou a prescrição em 1a instância, no qual se pode ler:
«[Como] é, há muito, doutrina firme, “quando uma lei nova vem modificar, no sentido de o aumentar ou de o diminuir, o prazo previsto pela lei antiga”, “quer do ponto de vista jurídico-constitucional (CRP, art. 29º-4, in tine), quer do ponto de vista jurídico-penal ordinário (‘art. 2º-4), a solução só pode ser a de aplicar sempre o mais curto dos prazos em conflito, de acordo com a máxima da aplica cão do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente” (Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, II, Lisboa, Aequitas/Edit. Notícias, pp. 704-705; no mesmo sentido, amplamente, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2ª ed., 1997, pp. 261, 263 ss.; com mais indicações, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Lisboa/S. Paulo, Verbo, 2ª ed., 2001, p. 289; JOSÉ MOUTINHO, A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português, in Direito e Justiça, VIII, 1994, pp. 111 ss.).» (nº 224; sublinhado feito agora).
26. Aliás, posição essencialmente semelhante assumiu, quanto à questão da aplicabilidade do art. 21º, nº 3, do RGIT no tempo, o Despacho do Tribunal Criminal de Lisboa, de 15 de dezembro de 2010, no qual se pode ler:
«Esta norma, de importância extrema na situação dos autos, deve ser aplicada ainda que algumas das operações em causa tenham ocorrido no domínio do RJIFNA, por força do princípio constitucional de aplicação da lei penal retroactivamente mais favorável, ínsito nos Arts° 2 e 29 da Constituição, sendo por isso absolutamente irrelevantes, para o que os autos interessa, quaisquer disposições que em sentido contrário tenham vindo a lume – nomeadamente, o Art° 45 nº 5 da LGT, introduzido em 2006 – para as mesmas serem inaplicáveis às operações em causa, precisamente pela exigência constitucional de aplicação, no tempo, da lei penalmente mais favorável ao arguido» (p. 8; sublinhado nosso).
27. A ora RECORRENTE, na sua resposta ao recurso desse Despacho, insistiu na posição anteriormente assumida, asseverando
«[Como] é, há muito, doutrina firme, “quando uma lei nova vem modificar, no sentido de o aumentar ou de o diminuir, o prazo previsto pela lei antiga”, “quer do ponto de vista jurídico-constitucional (CRP, art. 29º-4, in fine), quer do ponto de vista jurídico-penal ordinário (art. 2º-4), a solução só pode ser a de aplicar sempre o mais curto dos prazos em conflito, de acordo com a máxima da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente” (Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, II, Lisboa, Aequitas/Edit. Notícias, pp. 704-705; no mesmo sentido, amplamente, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2ª ed., 1997, pp. 261, 263 ss.; com mais indicações, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Lisboa/S. Paulo, Verbo, 2ª ed., 2001, p. 289; JOSÉ MOUTINHO, A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português, in Direito e Justiça, VIII, 1994, pp. 111 ss.).» (nº 263.º; sublinhado feito agora).
28. Por seu turno, nas conclusões da sua resposta afirmava o seguinte:
«XXII. Por força dos princípios legais e constitucionais que regem a aplicação da lei penal no tempo (arts. 2º do CP e 29º da Constituição), é aplicável ao caso dos autos, por ser mais favorável, o complexo normativo formado pelos arts. 21º, nº 3, do RGIT, e 45º da LGT, na redação que dada pelo diploma que aprovou o RGIT.
XXIII. Não obstando a essa aplicação que parte significativa das operações em causa nos presentes autos tenha tido lugar ainda no domínio do RUFNA (retroatividade da lei penal mais favorável)» (sublinhados feitos agora).
29. Em suma, foi expressa, clara, genérica, inequívoca, reiterada por parte da ora RECORRENTE a afirmação de que ao crime único imputado nos autos que, de acordo com a acusação e a pronúncia, incluiu operações ocorridas do domínio temporal de vigência entre o RJIFNA e o RGIT, se deve aplicar, por imposição constitucional dos princípios que regem a aplicação da lei no tempo, a lei mais favorável.
(...)”.
Mais acrescenta, quanto ao facto de as suas alegações se referirem à aplicação do artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, o seguinte discurso:
“(...)
30. É certo – e não se nega – que ela foi feita a propósito ou a pretexto da aplicação do artigo 21.º, n.º 3, do RGIT ao caso dos autos.
31. No entanto, e em primeiro lugar, esse facto é logo à partida irrelevante se não se reconhecer a inconstitucionalidade atrás invocada, pois então tem de se considerar – como o Tribunal recorrido justamente fez – que a questão da prescrição (seja qual for o seu concreto fundamento fáctico-jurídico – e tenha este ou não autonomia processual no sentido apontado) é sempre uma e a mesma.
32. E, assim sendo, essa questão será também necessariamente a referência da invocação da inconstitucionalidade, não tendo esta invocação de estar vinculada a um concreto fundamento fáctico-jurídico – cuja relevância, por outro lado se nega, reconduzindo-os a meros argumentos ou razões.
33. Sob pena de se permitirem as mais chocantes denegações de justiça.
34. E de se esquecer que o fundamental é que o Tribunal tenha sido colocado pelo RECORRENTE perante a questão de constitucionalidade e a tenha decidido.
35. Assim sucedeu inequivocamente no caso dos autos.
36. Por outro lado, e em segundo lugar, mesmo que assim se não entenda, a leitura dos trechos acabados de transcrever mostra à evidência que a invocação da imposição constitucional da aplicação da lei mais favorável de entre as duas que vigoraram no arco temporal da atuação criminosa imputada à RECORRENTE é feita – como não poderia deixar de ser – em termos absolutamente genéricos relativamente às leis aplicáveis em matéria de prescrição e dos respetivos prazos.
37. Basta, aliás, para o efeito, relembrar os termos da invocação: “[Como] é, há muito, doutrina firme, “quando unia lei nova vem modificar, no sentido de o aumentar ou de o diminuir, o prazo previsto pela lei antiga”, “quer do ponto de vista jurídico-constitucional (CRP, art. 29º-4, in fine), quer do ponto de vista jurídico-penal ordinário (art. 2º-4), a solução só pode ser a de aplicar sempre o mais curto dos prazos em conflito, de acordo com a máxima da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
38. Aliás, lida a decisão recorrida – como importa sempre fazer – à luz dos seus fundamentos e considerando o contraditório que precedeu e que informou, é evidente que não pode deixar de ter sido na sequência da invocação da ora RECORRENTE (e justamente para a afastar) que o Acórdão afirma que no caso de crimes de execução continuada, a “sucessão de leis não pode ser perspetivada em termos de aplicação da lei penal mais favorável “.
39. Ou seja: a invocação genérica feita, como tal foi assumida e ponderada na decisão recorrida, embora de forma errónea, porque no sentido do respetivo afastamento mediante a admissão de uma zona livre, não coberta pelo princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável (artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição).
40. Mas mais:
41. A RECORRENTE, tanto no seu requerimento inicial de invocação da prescrição (mais exatamente, no capítulo IV. 2. - «DA APLICAÇÃO DA REDUÇÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO AO PRAZO DE CADUCIDADE AO CASO DOS AUTOS» – arts. 223 ss.), como na sua resposta ao recurso do Ministério Público (mais exatamente, no capítulo «9. DA APLICAÇÃO DA REDUÇÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO AO PRAZO DE CADUCIDADE AO CASO DOS AUTOS», arts. 262.º a 288.º, e nas conclusões XXII e XXIII) aplicou essa invocação aos vários aspetos da sucessão de leis que eram relevantes perante a situação factual então existente.
42. Só não fez inicialmente – e esta a terceira razão para ter, em qualquer caso a invocação por mais que suficientemente feita – a direta referência a uma questão sobre a qual não tinha recaído a decisão em 1ª instância e que, aliás, no momento em que foi interposto o recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação, compulsadas interrupções e suspensão, não era ainda relevante: a de saber se se deveria aplicar, em alternativa à não aplicação do artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, o prazo de prescrição previsto no CP (artigo 118.º, n.º 1, alínea b)) ou o prazo que decorreria da aplicação do RJIFNA (que, como se sabe, consagrava uma regra geral de prescrição de 5 anos - artigo 15.º).
43. Ligação essa que foi feita, de qualquer forma, logo que a RECORRENTE teve oportunidade para tanto, no requerimento de janeiro de 2012 (cfr. nºs 44 e 53).
44. Não se pode, pois, seja com que base for, dizer que faltou no processo a suscitação da questão de constitucionalidade – que foi feita da forma mais explícita e geral possível –, mas, quando muito, apenas, a sua direta e explícita ligação a um problema que estava ausente da decisão da 1ª instância e que só era relevante perante uma situação fáctica que ainda não existia à data.
45. Não era possível nem exigível, em face da questão temática colocada perante o Tribunal de 1ª instância, e da situação factual então existente, antecipar questões irrelevantes, seja em que perspetiva for.
46. Aliás, é de entender que, ainda que a suscitação não tivesse sido feita (e aplicada) nos termos genéricos em que foi, tendo a ora RECORRENTE suscitado a questão da aplicação da lei no tempo perante as todas as alternativas decisórias configuráveis, em face da realidade processual, ao tempo estaríamos mutatis mutandis perante uma situação em que não era possível cumprir o disposto no artigo 75.º-A da LTC, o que não obsta à admissão do presente recurso, conforme jurisprudência constante desse alto Tribunal.
(...)”.
Como é consabido, decorre do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, que o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, apenas pode ser interposto pela parte que suscitou a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Transpondo essa exigência para o caso dos autos e atentas as indicações já relevadas sobre os requisitos do presente recurso, o momento processualmente adequado para a suscitação da questão de constitucionalidade não podia deixar de ser o da resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público para a Relação de Lisboa, assim se possibilitando a pronúncia dessa instância de recurso sobre tal questão.
Porém, compulsado o teor dessa resposta e o das conclusões – fls. 582 a 587 v. –, aí formuladas pela Recorrente, não se encontra aí suscitada, à semelhança do que se referiu no excurso antecedente, qualquer questão de constitucionalidade normativa, tendo-se a Recorrente abstido de, nesse momento processual, controverter a validade de qualquer norma face à Constituição.
De facto, dizer-se que “por força dos princípios legais e constitucionais que regem a aplicação da lei penal no tempo (arts. 2º do CP e 29º da Constituição), é aplicável ao caso dos autos, por ser mais favorável, o complexo normativo formado pelos arts. 21º, nº 3, do RGIT, e 45º da LGT, na redação que dada pelo diploma que aprovou o RGIT” (conclusão XXII) e que não obsta “a essa aplicação que parte significativa das operações em causa nos presentes autos tenha tido lugar ainda no domínio do RJIFNA (retroatividade da lei penal mais favorável)” (conclusão XXIII), não traduz a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Para tal, como é manifesto, não basta que as partes alicercem os seus argumentos de mérito e as pretensões daí emergentes em determinados parâmetros constitucionais, sendo apodítico, isso sim, que formulem um juízo de inconstitucionalidade em torno de uma norma jurídica que, padecendo, na perspetiva das partes, desse vício, não pode ser aplicada pela instância decidente, à qual se impõe a prévia sindicância do critério contestado face à norma normarum.
Por outro lado, improcedem as razões aduzidas pela Recorrente com o objetivo de justificar as razões pelas quais apenas se referiu, nas peças anteriores à prolação do Acórdão recorrido, à norma do artigo 21.º, n.º 3, do RGIT.
Em primeiro lugar, cumpre começar por referir, concluindo em juso como em suso, que mesmo relativamente à norma do artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, não fora suscitada qualquer questão de constitucionalidade.
Depois, em segundo lugar, não pode a Recorrente considerar-se objetivamente surpreendida pelo facto do Tribunal recorrido não ter aplicado essa norma, mas as disposições dos n.os 1 e 2 desse artigo 21.º, do RGIT, e, por força destas, o regime constante do Código Penal, porquanto esse juízo já constava da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público e das suas conclusões, no qual se considerou ser “indubitável que o art.º 21.º, n.º 3, do RGIT, não tem aplicação no caso em apreço, devendo ser convocados os dispositivos regra, fixados nos n.º 1 e 2 do mesmo artigo, pelo que, no caso concreto, em face da pena de 5 anos de prisão prevista para o crime de fraude fiscal qualificada, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos”.
Ora, como se disse, recaindo sobre as partes um dever de prudência técnica na antevisão do direito suscetível de ser aplicado, estas não se encontram dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de as suas posições poderem ser refutadas pelos Tribunais, nem de, em consequência, suscitar a questão de constitucionalidade tendo em conta a possibilidade de indeferimento do peticionado.
In casu, a Recorrente, face aos elementos constantes dos autos e, principaliter, perante o entendimento lavrado no recurso do Ministério Público, teve ensejo para suscitar a inconstitucionalidade da norma que foi aplicada como ratio decidendi pelo Tribunal da Relação, que, em bom rigor, acaba por consubstanciar oposto do que a Recorrente havia sustentado.
4. Termos em que, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do presente recurso.
(...)”.
Vejamos.
5. Apesar do esforço argumentativo subjacente à presente reclamação, a mesma não logra controverter o sentido e os fundamentos pelos quais se decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade.
Quanto à primeira parte da reclamação – referida à “norma, extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, al. c), 402.º, 403.º, 410.º, 419.º e 425.º, designadamente, n.º 4, do Código de Processo Penal («CPP») e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104º do RGIT e 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP” –, a verdade é que a questão de constitucionalidade em causa não foi adequadamente suscitada durante o processo.
Da própria decisão reclamada constam os motivos pelos quais assim se concluiu e que afastam a procedência do discurso aduzido pela reclamante. Aí se disse, entre o mais, quanto ao adequado cumprimento do ónus de suscitação prévia das questões de constitucionalidade:
“(...) nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR, II Série, de 7 de setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sendo no entanto necessário, em tal hipótese, que a dimensão normativa que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido previamente controvertida perante o Tribunal a quo e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de dezembro de 1998 e o Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Para tais efeitos, importa, pois, colocar o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada, havendo de concretizar-se o sentido desse preceito de modo a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual é o preceito e com que sentido ele não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição, assim se exigindo que, em sede de recurso, a questão de constitucionalidade seja concretizada de modo claro, direto e objetivo (cf. Acórdão n.º 1210/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Em suma, «“suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao ato de aplicação do Direito – concretizado num ato de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal ato ou decisão (cf. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 618/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996)» – cf. o Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais aí se remete.
(...)”.
Ora, nenhuma destas exigências foi cumprida pela reclamante.
Perscrutado o teor da peça processual relevante para o efeito, não se vislumbra que aí se tenha controvertido sub species constitutionis a norma erigida em objeto do recurso. Efetivamente, no discurso expendido nessa sede a reclamante não suscitou a constitucionalidade da “norma, extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, al. c), 402.º, 403.º, 410.º, 419.º e 425.º, designadamente, n.º 4, do Código de Processo Penal («CPP») e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104º do RGIT e 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP, segundo a qual sendo suscitada e decidida em 1ª instância a questão da prescrição do procedimento criminal com base num determinado fundamento fáctico- jurídico, pode o Tribunal de recurso conhecer dela e decidi-la com base em outro fundamento fáctico-jurídico processualmente autónomo, sendo irrelevante que sobre este último não tenha recaído contraditório nem decisão em 1ª instância”, colocando, et pour cause, o Tribunal recorrido perante o dever de conhecer dessa questão específica, tendo-se limitado a censurar a própria decisão do tribunal à qual assacou a violação dos parâmetros legais e constitucionais.
A propósito, cumpre esclarecer que o ónus de suscitação das questões de constitucionalidade, atenta a sua teleologia funcional e considerados os poderes de cognição deste Tribunal, não se afigura compatível com uma mera suscitação “implícita” a partir do sentido de uma decisão jurisdicional e que pudesse considerar-se satisfeito apenas quando se refere que um determinado tribunal decidiu indevidamente à luz da Constituição. Nesses casos, como este Tribunal tem reiterado constantemente, não pode considerar-se suscitada uma questão de constitucionalidade, por antonomásia, normativa.
Em segundo lugar, quanto à constitucionalidade da “norma extraída por interpretação, da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, designadamente, n.º 4, 3.º, 30.º, 118.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, 121.º, n.º 1, als. a) e b), 2 e 3, do CP e, bem assim, dos artigos 15.º e 23.º do RJIFNA, 21.º, 103.º e 104.º do RGIT, segundo a qual nos crimes de ‘execução continuada (que se não confunde com a figura do crime continuado) dominada por uma só resolução criminosa’, a determinação do prazo de prescrição aplicável à conduta dos arguidos terá de ser feita de harmonia com o diploma legal em vigor ao tempo em que foi praticado o último ato, determine este um regime mais favorável ou menos favorável”, a reclamante contesta a decisão reclamada por considerar que não lhe era exigível ter suscitado essa questão em momento prévio ao da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
Também aqui sem razão.
Na decisão sumária posta em crise explicitou-se o critério segundo o qual se ponderou inexistir no presente caso concreto uma situação de excecional inexigibilidade do cumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade.
Esse juízo não é posto em causa pela presente reclamação. Pelo contrário, o raciocínio argumentativo que a reclamante agora invoca quanto às vicissitudes da contagem do prazo de prescrição podia ter sido perfeitamente desenvolvido na resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, como se deixou consignado na decisão reclamada.
De facto, considerando o thema decidendum daquele e as questões aí configuradas – maxime quanto à aplicação do regime legal que veio a ser sufragada pela Relação –, e sem obnubilar os argumentos equacionados pela reclamante na sua resposta e os elementos de facto que não podia deixar de conhecer, não se encontrava esta impossibilitada de antecipar a questão de constitucionalidade, não apenas na parte atinente ao critério segundo o qual se determinaria o prazo prescricional, mas também na respeitante ao cômputo desse mesmo prazo, mais especificamente, quanto ao facto do prazo de prescrição começar a correr a partir do dia da prática do último ato, por se estar perante um crime de execução continuada e de projetar esses elementos em sede de aplicação da lei no tempo.
Para tanto, bastaria à reclamante ter prevenido a possibilidade de procedência do recurso do Ministério Público e da improcedência dos seus argumentos, equacionando o quadro de soluções possíveis a partir da aplicação do disposto no artigo 21.º, n.º 1 e 2, do RGIT, ao caso concreto. O que, manifestamente, não foi feito.
III. Decisão
6. Termos em que, em face de tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 12 de junho de 2012. – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos