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Proc. nº 346/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – M. S. foi condenado como autor material de cinco crimes de ofensas corporais, p. e p. pelo artigo 142º do Código Penal, na redacção de
1982, e um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, na redacção de 1995, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada proferida em 30 de Abril de 1998, tendo-lhe sido aplicada – operando o cúmulo jurídico – a pena única de três anos de prisão (cfr. fls. 243 a 265).
O arguido requereu apoio judiciário para fazer face às despesas inerentes à interposição de recurso da sentença condenatória (cfr. fls. 269 a
277 e 275 a 279 a 282).
Por decisão de 06.07.98, foi concedido o benefício de apoio judiciário ao arguido, na modalidade de dispensa de preparos e custas (cfr. fls.
302).
Em 24.09.98, o arguido interpôs recurso da sentença condenatória de
30 de Abril de 1998 para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. fls. 303 a 317).
Admitido o recurso em 1ª instância, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19.01.99, decidiu não tomar conhecimento do recurso '... por ter sido o mesmo interposto fora do prazo legal' (cfr. fls. 321 a 326).
Após notificação deste acórdão, o arguido requereu a reforma do mesmo (cfr. fls. 329 a 339 e 340 a 345), pedido que foi indeferido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.03.99 (cfr. fls. 348 a 351).
Dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, interpôs recurso para este Tribunal alegadamente ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alíneas b) e i) da Lei nº. 28/82, de 15.11 (cfr. fls. 355 a 357).
Admitido o recurso, foi o seu objecto limitado pelo relator a uma determinada interpretação do artigo 24º, nº. 2 do Decreto-Lei nº. 387-B/87, de
29.12, cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitara (cfr. fls. 359).
O recorrente apresentou alegações, tendo concluído:
'A) – o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou o preceituado no nº. 2 do art. 24º do Dec-Lei nº. 387-B/87 de 29 de Dezembro no sentido de que o prazo em curso nos presentes autos para apresentação do recurso da douta sentença proferida em 30 de Abril de 1998 se suspendeu em 8 de Março daquele ano mercê da apresentação do pedido de apoio judiciário de fls. ..., reiniciando-se tal contagem quando da notificação da respectiva decisão em 10 de Junho, sendo certo que há que contar o prazo entretanto decorrido, motivo pelo qual o recurso interposto da aludida sentença se considerou extemporâneo;
B) – ora, dispondo o artigo em questão, que se encontra inserido no capítulo V – 'Apoio Judiciário' -, e sob a epígrafe 'Consequência imediata do pedido de apoio judiciário', que 'o prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido interrompe-se por efeito da sua apresentação e reinicia-se a partir da notificação do despacho que dele conhecer' (sic);
C) – há que interpretar o mesmo recorrendo não só à nossa doutrina e jurisprudência (vide, por todos o Acórdão da própria Relação de Lisboa de 3 de Outubro de 1991 in BMJ 410º-863), mas igualmente fazendo apelo aos elementos sistemático, histórico e literal do citado normativo, pelo que, parafraseando Salvador da Costa in 'Apoio Judiciário', 2ª edição, pág. 175, 'O elemento literal da referida disposição, enquanto expressa que o prazo 'voltará a correr de novo' (sic), contém um mínimo verbal consubstanciador da solução de que aquele prazo voltará a correr por inteiro', entendimento este que aliás saiu deveras reforçado com a alteração introduzida pela Lei nº. 46/96 de 3 de Setembro;
D) – de resto, interpretar tal preceito legal de forma diversa da ora propugnada pelo Recorrente, mormente aquela que consta dos Acórdãos em questão, viola de forma grave os princípios constitucionalmente consagrados da legalidade, da certeza jurídica (no exercício dos respectivos direitos processuais), das garantias de defesa do arguido (em recorrer com recurso ao instituto do apoio judiciário), da universalidade, da igualdade dos cidadãos perante a lei, e do acesso ao direito e aos tribunais (que constitui a ratio do artigo em apreço) – vide gratiae arts. 2º, 3º, 9º b), 12º, 13º, 18º, 20º e 32º;
E) – por outro lado, e porque o Recorrente praticou o acto em questão através de correio registado, vale, neste caso, como data do acto processual a da efectivação do registo postal – vide nº. 1 do art. 150º do Cód. Proc. Civil ex-vi art. 4º do Cód. Proc. Penal -, elemento este que consta dos autos e como tal deve ser conhecido oficiosamente pelo Tribunal de Recurso;
F) – acresce ainda que, tendo o Recorrente sido surpreendido por uma decisão desfavorável que lhe cerceou qualquer oportunidade processual de se defender, contrariando aquela uma anterior decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, foi incontornavelmente violado o princípio constitucional da proibição da indefesa ou da falta de oportunidade processual, o qual constitui um dos pilares do Estado de Direito Democrático – vg. Art. 2º da Lei Fundamental – e que exige que a justiça seja exercida como uma actividade contraditória com vista à harmonização do sistema jurídico.
Termos em que, e nos melhores de direito que Vossas Excelências Venerandos Senhores Juízes Conselheiros doutamente suprirão, requer-se mui respeitosamente seja concedido provimento ao recurso sub judice, declarando-se, consequentemente, a inconstitucionalidade da interpretação do nº. 2 do art. 24º do Dec-Lei nº. 387-B/87 de 29 de Dezembro pela qual pugna o Tribunal da Relação de Lisboa, por violação dos princípios da legalidade, da certeza jurídica, das garantias de defesa do arguido, da universalidade, da igualdade dos cidadãos perante a lei, do acesso ao direito e aos tribunais e da proibição da indefesa ou da falta de oportunidade processual, considerando-se o recurso de fls. 303 a
317 v. oportunamente interposto, com que se fará justiça.'
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, concluindo:
'1º - Não viola os princípios constitucionais das garantias de defesa, do direito ao recurso e do acesso aos tribunais a interpretação normativa do nº. 2 do artigo 24º do Decreto-Lei nº. 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção emergente da Lei nº. 46/96, de 3 de Setembro (cujo acerto não compete obviamente a este Tribunal sindicar) e que se traduz em considerar que a dedução de pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de custas, apenas suspende o prazo em curso, de interposição do recurso da sentença condenatória pelo arguido, não implicando a inutilização (e o posterior reinício e integral contagem) do período temporal já decorrido até ao momento da formulação daquela pretensão.
2º - Na verdade – e embora tal interpretação normativa seja menos favorável do que a que se traduzisse em qualificar o pedido de apoio judiciário como facto interruptivo do prazo em curso – entendemos que ela não posterga o núcleo essencial das garantias de defesa, já que nada precludia ao arguido o exercício do direito de impugnação da sentença condenatória, acto que não dependia directamente da decisão do incidente de apoio judiciário – e tendo o arguido, mesmo na interpretação da decisão recorrida, beneficiado ainda do período situado entre 10 de Julho de 1998 e 19 de Setembro de 1998 para interpor tempestivamente o seu recurso.
3º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Cumpre decidir.
2 – O objecto do recurso cinge-se, tal como resulta do despacho de fls. 359, à norma do nº. 2 do artigo 24º do Decreto-Lei nº. 387-B/87, na interpretação que dela se fez no acórdão recorrido, excluídas que foram as inconstitucionalidades arguidas no recurso interposto para a Relação e que nesta, pelo tipo de decisão proferida, – não conhecimento do recurso por extemporaneidade da sua interposição – não foram nem podiam ser apreciadas.
Na verdade e quanto às normas – suposto que a normas se reportava a arguição de inconstitucionalidade – referidas nas alegações para a Relação não constituíram elas fundamento do decidido, soçobrando, assim, um dos princípios de admissibilidade do recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº.
28/82.
3 - A interpretação da norma do artigo 24º nº. 2 do DL nº. 387-B/87 feita no acórdão de fls. 321 e segs. foi a seguinte: a dedução do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento das custas, apenas suspende o prazo de interposição de recurso da sentença condenatória, não implicando a inutilização do período temporal já decorrido até ao momento da formulação do pedido.
Não pode o Tribunal Constitucional, limitados os seus poderes de cognição à apreciação de questões de constitucionalidade, pronunciar-se sobre a justeza, no plano do direito infra-constitucional, de uma tal interpretação.
O que ao Tribunal cumpre fazer é julgar se a norma em causa, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, infringe comandos constitucionais.
E a resposta – adiante-se – é seguramente negativa.
Impõe-se, desde já, um reparo à alegação do recorrente no que concerne à invocação dos preceitos violados, em particular à matéria das conclusões D) e F).
Sustentando o recorrente que o artigo 24º nº. 2 do DL nº. 387-B/87 deveria ser interpretado no sentido de o pedido de apoio judiciário interromper
(e não suspender) os prazos que estiverem em curso, voltando depois a contar-se esses prazos, na totalidade, depois de notificada a decisão sobre aquele pedido, toda a lógica da arguição de inconstitucionalidades assenta no pressuposto de que aquela é a interpretação correcta, daí decorrendo e no confronto com ela, as violações dos princípios 'da legalidade, da certeza jurídica, (...) das garantias de defesa do arguido (...), da universalidade, da igualdade dos cidadãos perante a lei e do acesso ao direito e aos tribunais (...)'.
Ou seja, implicando a interpretação do acórdão da Relação um relativo encurtamento dos prazos no confronto com a extensão que, no entendimento do recorrente, a lei lhe conferia, é esse encurtamento que, surpreendendo o recorrente, lhe retirou a oportunidade de interpor, em tempo, o recurso para a Relação – e daí, a violação, designadamente, das garantias de defesa do arguido e do acesso ao direito e aos tribunais.
Por outro lado, sendo convicção do recorrente de que a sua interpretação é a única correcta, tal leva-o a dizer violados os princípios da
'legalidade' e da 'certeza jurídica'.
Não seria, em bom rigor, a norma do artigo 24º nº. 2 do DL nº.
387-B/87, na interpretação dada no acórdão da Relação, que o recorrente questionou, confrontando-a com a Constituição – como se impunha para efeitos do recurso de constitucionalidade – mas os efeitos que ela produziu na sua estratégia de defesa, num quadro normativo que interpreta de forma diversa e em termos que julga serem os únicos correctos no plano da legislação ordinária.
Esta seria, aliás, uma razão que conduziria ao não conhecimento do objecto do recurso, só agora nitidamente justificada pelo teor das alegações apresentadas – a impugnação dirige-se à decisão e não à norma interpretada e aplicada, parecendo configurar-se um 'recurso de amparo', que não é admitido no nosso ordenamento jurídico.
Mas, por se admitir que alguma dúvida subsista sobre este entendimento, não se deixará de conhecer da questão de inconstitucionalidade da norma em causa.
Já o mesmo não acontecerá quanto à matéria da conclusão F) que sintetiza o que o recorrente desenvolve a fls. 370.
Na verdade, aqui não subsistem dúvidas de que o recorrente se não reporta a qualquer norma mas ao facto de não ter sido ouvido previamente sobre a questão da tempestividade do recurso; é, pois, claramente uma censura dirigida à decisão judicial que nada, aliás, tem a ver com a questão de constitucionalidade da norma do artigo 24º nº. 2 do DL nº. 387-B/87.
A norma citada, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, corresponde à que constava, inequivocamente, do preceito, na sua versão originária: o pedido de apoio judiciário suspende os prazos que estiverem a correr até à notificação da decisão que o deferir ou indeferir.
Não se vê que uma tal norma ofenda qualquer norma constitucional, designadamente a que garante o acesso à justiça (artigo 20º nº. 1) e a que assegura, em processo criminal, todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32º nº. 1), não deixando de ter em conta as circunstâncias do caso (incidência do procedimento de apoio judiciário, no decurso do prazo de interposição de recurso de sentença condenatória).
Não se questionando a amplitude do prazo de interposição de recurso em termos de garantir ao arguido a possibilidade de, com a necessária ponderação, impugnar uma decisão condenatória, o que, no limite, os comandos constitucionais poderiam impedir era que a pendência do procedimento de apoio judiciário pedido pelo arguido, encurtasse aquele prazo de modo a comprometer uma defesa eficaz do arguido.
Visando o apoio judiciário impedir que a carência económica das partes (no caso, o arguido) para suportar os custos da defesa dos seus direitos e interesses em tribunal obste a essa mesma defesa, impõe-se também que, por vias travessas, o pertinente procedimento não acabe por onerar o requerente com uma diminuição das suas garantias de defesa, v.g. com o aludido encurtamento dos prazos.
Mas se se impõe que o requerente de apoio judiciário não seja prejudicado também se não exige que ele saia beneficiado (p. ex. com o alargamento dos prazos) abrindo a porta a pedidos temerários de apoio judiciário, apenas com o fim de conseguir esse benefício.
Comporta-se, pois, numa concepção racional e constitucionalmente admissível do instituto a inutilização, no cômputo do prazo que estiver a correr, do período – e só deste – que decorre entre o pedido de apoio judiciário e a notificação da respectiva decisão.
Isto, obviamente, sem embargo de o legislador ordinário poder adoptar medidas garantísticas mais favoráveis, como, p. ex., estabelecendo a interrupção dos prazos que estejam a correr tal como, numa interpretação plausível e sustentada pelo recorrente, decorrerá da norma do artigo 24º nº. 2 do DL nº. 387-B/87 na sua versão actual.
De todo o modo, estando em causa a norma, com a diferente interpretação dada no acórdão recorrido, ela – repete-se – não ofende a Constituição.
Como bem salienta o Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal:
'Na verdade – e embora tal interpretação normativa seja menos favorável do que a que se traduzisse em qualificar o pedido de apoio judiciário como facto interruptivo do prazo em curso – entendemos que ela não posterga o núcleo essencial das garantias de defesa, já que nada precludia ao arguido o exercício do direito de impugnação da sentença condenatória, acto que não dependia directamente da decisão do incidente de apoio judiciário – e tendo o arguido, mesmo na interrupção da decisão recorrida, beneficiado ainda do período situado entre 10 de Julho de 1998 e 18 de Setembro de 1999 para interpor tempestivamente o seu recurso.'
Sufragando o entendimento de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª edição, pág. 202, relativo
às garantias de defesa, no sentido de que a expressão 'todas as garantias de defesa' engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação', fácil se torna concluir que a interpretação da norma em apreço a que procedeu o Tribunal da Relação de Lisboa em nada conflitua com a salvaguarda constitucional de tais garantias de defesa, visto não ter sido minimamente beliscada a possibilidade de o arguido, ora recorrente, impugnar com a necessária ponderação, a decisão condenatória que lhe era desfavorável.
De resto, conhecida a sua própria carência económica, nada impedia o recorrente de pedir, logo no primeiro dia do prazo de interposição de recurso, o apoio judiciário, deixando, desde logo também, de correr aquele prazo.
Em suma, não se mostram violados os princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, a cobrar nos termos do artigo 54º do DL nº.
387-B/87, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida