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Processo nº 220/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio, 'ao abrigo da alínea b), do nº 1, do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15/11, na redacção introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26/02' e invocando ainda 'o disposto no art. 75ºA, da Lei nº 28/82, de 15/11, na redacção introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 25/02', 'interpor recurso com efeito suspensivo, para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Maio de 1999, que decidiu que, tendo sido interposto recurso de acórdão final proferido pelo Tribunal colectivo, «se o recorrente quiser abordar matéria de facto, nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P., terá de interpor recurso para o Tribunal da Relação, como é regra geral, nos termos do art. 427º do C.P.P. - cfr. o art. 428º, nº 1 do mesmo diploma - sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão», não tendo, por isso, determinado a remessa dos autos ao Tribunal da Relação que, no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, era o competente para conhecer do recurso'. E acrescenta o seguinte no respectivo requerimento:
'Entende-se, salvo o muito respeito devido, que o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - ao afirmar a competência do Tribunal da Relação e não conhecendo, por isso, do recurso, mas considerando precludido o direito por, entretanto, ter ocorrido o trânsito em julgado do acórdão da 1ª instância, não dando assim cumprimento ao disposto no art. 33º, nº1, do C.P.P. - fez uma interpretação dos arts. 427º, 428º, nº 1, 432º, al. d), todos do C.P.P., que afronta as garantias de defesa e o acesso ao direito, violando o disposto nos arts. 32º, nº 1, e 20º, nº 1, ambos da C.R.P. Deste modo, pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade dos aludidos arts.
427º, 428º, nº 1, 432º, al. d), quando interpretados no sentido de que a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão final proferido pelo Tribunal colectivo, no qual se invoque a existência de vício a que alude o art. 410º, nº 2, do C.P:P:, implica a irremediável preclusão de recurso para o Tribunal da Relação, por, entretanto, ter transitado o acórdão recorrido.
(...) Nos presentes autos, não pôde dar-se cumprimento ao preceituado na parte final do nº 2, do art. 75º-A, da Lei nº 28/82, de 15/11, na redacção introduzida pela Lei nº 85/89, de 07/09, pois é patente tratar-se de uma decisão surpresa que o Ministério Público, quando do visto a que se reporta o art. 416º do C.P.P., não podia previsível e razoavelmente antecipar'.
2. Tal recurso não foi admitido, por despacho do Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Outubro de 1999, mas, em processo de reclamação apresentada pelo Ministério Público, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, foi entendido no acórdão do Tribunal Constitucional nº 74/2000, a fls. 264 e segs. dos autos, que 'deve qualificar-se como 'decisão-surpresa', de conteúdo imprevisível para as partes, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça' e que não procede 'portanto a razão invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público no presente processo'
(daí ter sido decidido 'deferir a presente reclamação').
3. Admitido finalmente o recurso por despacho do mesmo Relator, de 17 de Março de 2000 (contendo, todavia, considerações descabidas quanto àquela decisão do Tribunal Constitucional e aproveitando para manifestar o Relator de modo inopinável a sua 'total discordância'), apresentou o Ministério Público alegações em que conclui:
'1 – A interpretação normativa dos preceitos que delimitam as competências para apreciação dos recursos penais pelas Relações e pelo Supremo Tribunal de Justiça
– dos quais decorre que só há recurso directo para o Supremo quando incida sobre decisões do colectivo e vise exclusivamente o reexame da matéria de direito – traduzida em considerar absolutamente irremediável e preclusivo o erro do recorrente na determinação do tribunal hierarquicamente competente para apreciar o recurso interposto – não admitindo, nem o suprimento oficioso de tal incompetência, nem facultando ao recorrente oportunidade processual para direccionar correctamente o recurso, e considerando que tal vício determina o não conhecimento 'in totum' das questões suscitadas (não reduzindo o objecto do recurso às 'questões de direito' suscitadas pelo recorrente) viola os princípios consignados nos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso'.
4. O desenho do caso foi feito já no citado acórdão nº 74/2000 nos termos que se transcrevem e se aproveitam:
'1. No Tribunal de Círculo de Portimão, responderam sob acusação do Ministério Público dois arguidos, um dos quais, P. R., foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203º e 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal, na pena de três anos de prisão, e de um crime previsto e punível pelo artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quarenta e cinco dias de prisão. Operado o cúmulo jurídico destas penas, o referido arguido foi condenado na pena única de três anos e vinte dias de prisão O arguido interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, entre outros fundamentos, nulidade do julgamento, por violação do artigo 343º, nº 4, do Código de Processo Penal, e insuficiência da matéria de facto provada, o que integraria o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
2.Por acórdão de 27 de Maio de 1999 (fls. 16 e seguintes dos presentes autos), o Supremo Tribunal de Justiça, atendendo à data de interposição do recurso (11 de Fevereiro de 1999), considerou aplicável ao caso o Código de Processo Penal, na redacção que resulta da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto . Assim, por entender que o recuso interposto não visava exclusivamente o reexame da matéria de direito, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não tomar dele conhecimento, com os seguintes fundamentos:
[...] nos termos do actual art. 432º, al. d), do C.P.P., recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito. Portanto, se o recorrente quiser abordar matéria de facto, nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no nº 2 do art. 410º do C.P.P., terá de interpor recurso para o Tribunal da Relação, como é regra geral, nos termos do art. 427º do C.P.P. – cfr. o art. 428º, nº 1 do mesmo diploma – sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão. Sucede que in casu, o recorrente além de colocar questões de direito, vem suscitar questões relacionadas com matéria de facto, que este Supremo Tribunal não pode sindicar. Assim, nas conclusões 3ª, 8ª, 9ª e 10ª, o recorrente vem questionar a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova produzida, e nas conclusões 7ª e 11ª aborda a insuficiência para a decisão da matéria facto provada, o que constitui o vício da decisão referido no art. 410º, nº 2, al. a), do C.P.P. A este último propósito, o recorrente pretende se ordene a repetição do julgamento – v. a conclusão 13ª – pretendendo, assim, que este Supremo Tribunal decrete o reenvio do processo, o que hoje lhe está vedado neste caso de recurso de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo. Ora, como estamos perante um destes casos, estava vedada a abordagem no recurso das questões de facto que referimos.' Ao acórdão foram apostas duas declarações de voto, do seguinte teor: 'com a declaração de que a apreciação do recurso deverá ser no Tribunal da Relação de
Évora'.
3.A representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça requereu a aclaração do acórdão 'em ordem ao esclarecimento das suscitadas dúvidas relativamente ao Tribunal da Relação para o qual, por competente para conhecer do presente recurso, devem os presentes autos ser remetidos'
(requerimento de fls. 21 a 23 destes autos). O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 7 de Outubro de 1999 (a fls. 19 e
19 v.), considerou que o requerimento apresentado pelo Ministério Público consubstanciava, não um pedido de aclaração, mas uma arguição de nulidade por omissão de pronúncia. Decidiu indeferir o requerido, fundamentando assim a decisão:
'Sucede que não ocorre tal nulidade, pois o acórdão não disse nem tinha que dizer nada sobre a dita apreciação do recurso.
[...] como o presente recurso foi indevidamente interposto para este Supremo Tribunal, é óbvio que este Tribunal dele não pode conhecer. E não há que remetê-lo para a Relação competente, pois, entretanto, transitou em julgado a decisão da 1ª instância, por dela não ter sido interposto, em tempo, recurso para a dita Relação. E não há lei que imponha tal remessa. Por outro lado, as declarações de voto apostas pelos Conselheiros Adjuntos não têm a virtualidade de alterar ou acrescentar algo ao decidido, pois não constam da parte decisória do acórdão. [...]'.
Nada mais interessa registar. O Ministério Público, nas suas alegações, traça correctamente os contornos da
'questão de constitucionalidade suscitada' quando diz o seguinte:
'A questão jurídico-constitucional objecto do presente recurso consiste em saber se será conforme com os princípios constitucionais das garantias de defesa
(artigo 32º, nº 1) e do acesso ao direito (artigo 20º, nº 1, da Constituição) a interpretação normativa dos preceitos que delimitam as competências para apreciação dos recursos penais pela Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos quais decorre que só há recurso directo para o Supremo quando incida sobre decisões do colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito – e que se traduz em considerar absolutamente irremediável e preclusivo o erro do recorrente, consistente em interpor recurso 'per saltum' quando, por estarem em causa vícios imputados à decisão sobre a matéria de facto, tal recurso deveria ter sido interposto para a Relação'. (e mais à frente precisa que 'A questão debatida nos presentes autos apresenta um claro paralelismo com a temática do nível de exigência formal com que é legítimo apreciar as peças processuais apresentadas pelo recorrente – estando agora em causa, não vícios imputáveis à sustentação e delimitação do recurso, mas um vício 'formal' associado à interpretação das regras que definem a competência em razão da hierarquia dos Tribunais da Relação e do Supremo, na área penal'). Para o Ministério Público recorrente 'tal interpretação normativa – rígida e absolutamente preclusiva – se revela incompatível com os referidos princípios constitucionais, traduzindo solução violadora do princípio da proporcionalidade, ao fazer corresponder a um simples lapso do recorrente na identificação do Tribunal 'ad quem' – até certo ponto desculpável, já que na nossa tradição jurídica, e até à última revisão do processo penal, esteve cometido ao Supremo a apreciação dos vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal – a irremediável preclusão do recurso deduzido contra decisão condenatória em pena privativa de liberdade'. E faz-se notar que inclusivamente no domínio do processo civil, não subordinado ao princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição, 'estão consagrados regimes que visam obviar a soluções de pura – e desproporcionada- justiça formal; assim:
- o requerimento de interposição do recurso não pode ser indeferido com o fundamento de ter havido erro na espécie de recurso: tendo-se interposto recurso diferente do que competia, mandar-se-ão seguir os termos do recurso que se julgue apropriado (artigo 687º, nº 3, do Código de Processo Civil); o interposto recurso 'per saltum' para o Supremo Tribunal de Justiça sem que nele se suscitem apenas 'questões de direito', competirá ao relator, se entender que as questões suscitadas pelo recorrente ultrapassam o âmbito da revista, determinar que o processo baixe à Relação, a fim de o recurso aí ser processado, nos termos gerais, como apelação (artigo 725º, nº 4 do Código de Processo Civil); o se o relator, por não se aperceber que as questões suscitadas ultrapassam o âmbito das puras 'questões de direito', invocáveis em recurso de revista, o admitir para ser como tal processado no Supremo Tribunal de Justiça – e não havendo reclamação para a conferência da parte que se considere prejudicada por tal decisão – o recurso é processado como revista, o que implica a preclusão – não do próprio recurso, mas apenas das questões que ultrapassam o
âmbito definido pelos artigos 721º, nºs 2 e 3 e 722º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – artigo 725º, nºs 5 e 6 do mesmo Código'. A hipótese sub juditio não merece outras e mais profundas considerações, registando-se apenas o que está escrito no recente acórdão nº 236/2000, inédito, e reflecte a linha de jurisprudência do Tribunal Constitucional
'São, com efeito, as garantias de defesa do arguido que explicam em grande parte a especificidade do processo penal ante o processo civil, e compreende-se que, por a inocência do arguido se presumir até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – sendo uma das suas garantias o próprio direito ao recurso de sentenças que imponham sanções penais (sobre o direito ao recurso em processo penal, cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 8/87, 31/87, 178/88, 474/94, publicados no Diário da República, I série, de 9 de Fevereiro de 1987, II série, de 1 de Abril de 1987, de 30 de Novembro de 1988 e de 8 de Novembro de 1994, respectivamente)' Com o que merece provimento o presente recurso (cfr. no mesmo sentido o acórdão deste Tribunal nº 284/2000, inédito).
5. Termos em que, DECIDINDO: a) Julga-se inconstitucional, por ofensa do nº 1 do artigo 32º da Constituição, o complexo normativo constituído pelos artigos 33º, nº 1, 427º, 428º, nº 2, e
432º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de
1ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao tribunal da relação; b) E, em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo ser reformado o acórdão recorrido em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 21 de Junho de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa