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Processo nº 512/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. P..., com os sinais identificadores dos autos, veio, 'ao abrigo do disposto nos arts. 76º, nº 4, e 77º e ss., da Lei nº 28/82, de 15Nov (Lei do Tribunal Constitucional - LTC)', apresentar reclamação para este Tribunal Constitucional
'do douto despacho do TCA de 29JUN00 (fls ), de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, com fundamento em ‘a decisão recorrida o não admitir e por o recorrente carecer de legitimidade para a sua interposição’', invocando, em síntese, o que se segue (sem deixar de dizer que
'não desconhece o Reclamante o recurso de constitucionalidade só pode interpor-se de decisões que apliquem norma jurídica cuja questão de tenha sido suscitada durante o processo, constituindo verdadeiro pressuposto de admissibilidade do recurso – cfr. 70º, nº 1, al. b), 71º, nº 1, 72º, nº 2, e
75º-A, nº 2, todos da LTC'):
'11. (...) no caso em apreço, tendo as normas cuja interpretação normativa se afigura inconstitucional sido apenas aplicadas quando já não havia possibilidade de o Tribunal que as aplicou tomar conhecimento de tal situação,
12. Por se tratar da última instância de recurso (cfr. Art. 103º, nº 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, e arts. 40º, al. a), e 51º, nº 1, al. m), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais),
13. E por, tratando-se de decisão do TCA sobre as suscitadas nulidade e reforma de acórdão proferido em sede de recurso jurisdicional, haver ficado precludido o seu poder jurisdicional sobre a matéria,
14. Não é legítimo exigir, até por ser impossível, que o Reclamante tivesse suscitado a questão de inconstitucionalidade em momento anterior'.
2. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se pela manifesta improcedência da reclamação, por o reclamante não ter especificado 'no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta interposto qual a interpretação normativa dos preceitos do CPC que considera ter sido realizada pelo tribunal e que, na sua óptica, padece de inconstitucionalidade (...) não se mostrando, deste modo, suscitada – no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta – uma questão de inconstitucionalidade normativa, em termos procedimentalmente adequados.' E argumenta assim no Parecer:
'Na verdade, está perfeitamente sedimentado na jurisprudência deste TC que os recursos de fiscalização concreta podem incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de determinadas interpretações normativas, realizadas pelo tribunal ‘a quo’ aquando da dirimição de um caso concreto – recaindo, porém, sobre o recorrente o ónus de as especificar, delimitando, em termos claros e precisos, o objecto do recurso e a exacta questão que pretende fazer sindicar por este Tribunal. No caso dos autos, é evidente que tal ónus não se mostra adequadamente cumprido, limitando-se o recorrente a delimitar o objecto do recurso que interpôs através da indicação de vários preceitos do CPC – que obviamente em si mesmos considerados, não violam qualquer preceito ou princípio constitucional – sem, todavia, especificar minimamente qual a interpretação ou sentido a tais preceitos atribuído e que, segundo o recorrente, padeceria da alegada inconstitucionalidade'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir. A certidão junta aos autos, a requerimento do reclamante, revela a seguinte sequência processual:
3.1. O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa rejeitou o pedido de intimação para passagem de documentos formulado por P..., ora reclamante, contra o Ministro das Finanças, com fundamento em não ser o 'requerente titular do interesse legítimo previsto no artº 64º, nº 1 do CPA'. Inconformado, interpôs o requerente recurso para o Tribunal Central Administrativo, tendo em 6 de Abril de 2000 sido proferido Acórdão que negou provimento ao recurso interposto, por entender inexistir 'qualquer violação, por parte da sentença recorrida, das disposições contidas nos artºs 20º, 48º, 52º, nº 3 e 268º, nºs 1 e 4, todas da CRP'. Notificado deste aresto, o requerente arguiu a nulidade do mesmo, nos termos dos artigos 668º, n.º 1, alínea d), e 716º do Código, requereu a sua reforma, nos termos dos artigos 669º e 716º, do mesmo Código de Processo Civil, e interpôs recurso por oposição de julgados, nos termos do artigo 24º, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e do artigo 103º, n.º 1, alínea a), da Lei do Processo nos Tribunais Administrativos, dizendo o seguinte:
'1. Da nulidade do acórdão O recorrente, argui a nulidade do acórdão dos autos, alegando, em síntese, que o mesmo é nulo por, tendo o mesmo sustentado que o § 4º do artº 57º do RSTA é aplicável a todos os processos, nomeadamente ao pedido de intimação em causa, não se pronunciou sobre a arguida nulidade da decisão do TACL por inobservância do disposto no nº 1 do artº 54º da LPTA. (...)
2. Da reforma do acórdão Quanto à reforma do acórdão, o recorrente pretende, em síntese (fls. 465 a 474), que o tribunal considere, agora, através de um segundo julgamento, que ‘o requerente comprovou, invocou e alegou os factos necessários e suficientes para demonstrar que é titular do «interesse atendível exigido pelo artº 64º do CPA, na obtenção dos elementos pretendidos»’, concluindo que ‘ocorreu manifesto lapso dos julgadores na qualificação jurídica dos factos’, e ainda que, ‘constam do processo documentos e elementos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida e que os julgadores, por lapso manifesto, não tomaram em consideração’'.
3.2. Por decisão de 18 de Maio de 2000, o Tribunal Central Administrativo indeferiu o pedido de nulidade e de reforma do Acórdão por entender não se verificarem os requisitos constantes dos artigos 668º, n.º 1, alínea d) e 669º, n.º 2, alíneas a) e b). Inconformado, o reclamante pretendeu interpor recurso de constitucionalidade desta decisão, 'ao abrigo do disposto nos arts. 70º, n.º 1, al. b), 72º, n.º 1, al. b), 75º, da Lei n.º 28/82, de 15NOV' (Lei do Tribunal Constitucional), para
'apreciação da interpretação normativa dada aos arts. 668º, n.º 1, al. d), e art. 669º, n.º 2, als. a) e b), assim como do art. 690º, todos do CPC, que se afigura inconstitucional por violação dos princípios do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva, consignados, designadamente, nos arts. 20º, n.ºs
4 e 5, e 268º, n.º 4, da Lei Fundamental. Não se indica a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade, em virtude de só agora, em sede de arguição de nulidade por omissão de pronúncia, por decisão insusceptível de recurso ordinário, ter o Tribunal a quo efectuado a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é suscitada (...)'.
Convidado pelo relator no Tribunal Central Administrativo a indicar a peça processual em que suscitara a questão de constitucionalidade, o recorrente veio remeter para o que dissera na passagem do requerimento de recurso transcrita.
3.3. Por despacho de 29 de Junho de 2000, o relator no tribunal a quo decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade 'por a decisão recorrida o não admitir e por o recorrente carecer de legitimidade para a sua interposição', considerando que 'até à interposição do recurso para o TC, o recorrente não suscitou qualquer inconstitucionalidade que o tribunal a quo tivesse de conhecer, nem este aplicou no acórdão recorrido qualquer norma arguida de inconstitucional pelo recorrente'. Lê-se nesse despacho:
'Porém, o acórdão recorrido – a fls. 502 a 505 – não aplicou norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artº 70º, nº 1-b) da Lei do TC); também o recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade ora levantada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dele conhecer (artº 72º, nº 2 da Lei do TC); e, tendo o recorrente sido notificado para indicar a peça processual em que suscita a inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo TC, veio esclarecer que ‘seja tomado em consideração o teor do penúltimo parágrafo do seu requerimento de interposição do recurso’, onde precisamente o recorrente havia dito que 'não se indica’ tal peça por ‘só agora (...), ter o tribunal a quo efectuado a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é suscitada (...)’'.
É este o despacho reclamado.
4. Destinam-se as reclamações 'de despacho que indefira o requerimento de recurso ou retenha a sua subida' (artigo 77º da Lei do Tribunal Constitucional) ao Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, por este Tribunal, de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade. Mais do que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos pressupostos ou requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor. O recurso que o ora reclamante intentou interpor foi fundado no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que prevê o recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Constituem requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n. º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, das normas constitucionalmente impugnadas, a impugnação da sua constitucionalidade durante o processo, e o esgotamento dos recursos ordinários.
Como se sabe e resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal Constitucional (art.ºs 280º e 70º, respectivamente, para a fiscalização concreta) 'no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas' (v., entre outros, os Acórdãos n.ºs 90/85 –- publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 663 e seguintes
– -129/86 e exposição prévia do relator – Diário da República, II Série, de 20 de Novembro de 1986 – 388/87 – Diário da República, II Série, de 15 de Dezembro de 1987 – 162/88 – Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 1988 – -
373/89 e exposição prévia do relator – Diário da República, II Série, de 1 de Setembro de 1989 – e, mais recentemente, o Acórdão n.º 18/96 – Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996; e, na doutrina Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, pág.
821). Salientava-se já no Acórdão n.º 199/88 (Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989 e Acórdãos, 12º vol., pág. 593), a propósito da suscitação da questão de constitucionalidade normativa, que:
'este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.'
E no Acórdão n.º 123/89 (Diário da República, II Série, de 29 de Abril 1989 e Acórdãos, 13º vol., pág. 659) repetiu-se que:
'[...] Ao suscitar a questão de inconstitucionalidade há-de deixar-se claro
‘qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.’
É que a este Tribunal, tal como vem decidindo de forma reiterada e uniforme, só cumpre proceder ao controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, ou seja, de actos do poder normativo, e não de actos jurídicos de índole diversa, maxime de sentenças judiciais.[...]'
Ou seja:
'[...] Para que seja possível conhecer do recurso interposto com fundamento no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, é pois, antes de mais, necessário que ao suscitar durante o processo uma questão de inconstitucionalidade fique claro qual a norma jurídica cuja conformidade constitucional se contesta ou [...] qual o sentido ou dimensão normativa dessa norma que se considera violar a Constituição.' (Acórdão n.º 391/89, Diário da República, II Série, de 14 de Setembro de 1989).
Ou, como se escreveu no Acórdão n.º 367/94 (Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994):
'Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.'
Mas neste caso, acrescentava-se,
'[...]esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.'
5. Ora, no presente caso, o recorrente, no requerimento do recurso que tentou interpor, limitou-se a dizer pretender a
'apreciação da interpretação normativa dada aos arts. 668º, n.º 1, al. d), e art. 669º, n.º 2, als. a) e b), assim como do art. 690º, todos do CPC, que se afigura inconstitucional por violação dos princípios do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva, consignados, designadamente, nos arts. 20º, n.ºs
4 e 5, e 268º, n.º 4, da Lei Fundamental. Não se indica a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade, em virtude de só agora, em sede de arguição de nulidade por omissão de pronúncia, por decisão insusceptível de recurso ordinário, ter o Tribunal a quo efectuado a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é suscitada (...)'
Como se vê, e correctamente notou o Ministério Público neste Tribunal, o ora reclamante não enunciou ou especificou neste requerimento a dimensão interpretativa das normas do Código de Processo Civil em causa que considera ter sido efectuada e aplicada pelo tribunal a quo, e que padeceria de inconstitucionalidade. Sobre ele recaía, porém, como se disse, o ónus de o fazer, para delimitar em termos claros e precisos, o objecto do recurso e a exacta questão de constitucionalidade normativa –correspondente a uma certa interpretação das normas em causa que não foi enunciada – que pretendia fazer sindicar por este Tribunal. Aliás, nem mesmo depois de convidado pelo relator no Tribunal Central Administrativo a indicar a peça processual em que suscitara a questão de constitucionalidade, o recorrente veio precisar o sentido desta, limitando-se a remeter para o que dissera na passagem do requerimento de recurso transcrita quanto à tempestividade da suscitação da inconstitucionalidade, mas sem enunciar a interpretação dos preceitos em questão que pretendia ver apreciada. A mera indicação de vários preceitos do Código de Processo Civil referentes às causas de nulidade da sentença ou ao esclarecimento e reforma da decisão, sem porém, se especificar minimamente a interpretação ou sentido a tais preceitos atribuído, e que, segundo o próprio recorrente, padeceria da alegada inconstitucionalidade – limitando-se a referir uma 'interpretação normativa dada' a tais preceitos – , não é, porém, bastante para suscitar, de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa. Se o recorrente pretendia que este Tribunal apreciasse a conformidade constitucional dos preceitos em causa numa certa interpretação, que lhes teria sido 'dada', então incumbia-lhe, como vimos, o ónus de a enunciar ou especificar
– o que não fez.
Pode, pois, concluir-se como no Acórdão n.º 178/95 (Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 e Acórdãos, 30º vol., pág. 1109):
'[...]impunha-se que os reclamantes tivessem indicado – o que não fizeram – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que eles têm por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.' Por, como vimos, não se ter suscitado no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta uma questão de constitucionalidade normativa em termos procedimentalmente adequados, falta um pressuposto de admissibilidade de tal recurso, pelo que a presente reclamação tem que ser indeferida.
6. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa