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Processo n.º 92/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Pelo Acórdão n.º 687/99, proferido nos presentes autos, o Tribunal Constitucional deferiu a reclamação apresentada pelo Ministério Público contra o despacho de não recebimento do recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, por alegada recusa de aplicação do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 184/89, de 12 de Junho, e do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que concedeu parcial provimento ao recurso do Estado – Ministério da Educação, representado pelo Ministério Público, da sentença do Tribunal do Trabalho de Torres Vedras proferida nos autos de acção sumária emergente de contrato de trabalho celebrado com AA..., e feito cessar unilateralmente pela direcção da Escola Primária da Marteleira, nos termos que melhor se descrevem nesse Acórdão. Interpretando o recorrido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no que concerne à alegada recusa de aplicação das normas impugnadas, escreveu-se no já citado Acórdão n.º 687/99 do Tribunal Constitucional:
'a) O contrato celebrado entre Autor[a] e réu (Estado) não obedeceu ao regime legal sobre contratação de pessoal para a Administração Pública (artigos 18º a
21º do Decreto-Lei n.º 427/89), designadamente por, sendo contrato a termo certo, se destinar a satisfazer necessidades permanentes de serviço; a. Sendo irregular a situação da A, deveria o Estado ter lançado mão do disposto nos artigos 37º e 38º do Decreto-Lei n.º 427/89; a. Estabelecido no artigo 294º do Código Civil o grau de desvalor do regime jurídico celebrado contra disposição legal de carácter imperativo – nulidade – o mesmo preceito ressalva os 'casos em que outra situação resulte da lei'; b. Dada esta ressalva, o contrato em causa não deve ser considerado nulo mas 'em situação irregular', solução que resulta do regime de transição e regularização do pessoal em situação irregular estabelecidos nos citados artigos
37º e 38º do DL n.º 427/89 e do disposto no artigo 53º da Constituição que proíbe os despedimentos sem justa causa; c. A não redução do contrato a escrito leva a considerá-lo como contrato sem termo, por força do artigo 42º do DL n.º 64-A/89, de 27 de fevereiro, aplicável nos termos do artigo 14º n.º 3 do DL n.º 427/89; d. Tratando-se, assim, de um contrato não nulo e sem termo, a sua rescisão unilateral por parte do R. é ilícita com as consequências previstas no artigo
13º do DL n.º 64-A/89.' Considerando que 'o Tribunal Constitucional vem pacificamente entendendo que o recurso previsto no artigo 70º , n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82 pode ser interposto por recusa implícita de aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade' o anterior aresto deste Tribunal concluiu que:
'a aplicação da norma do DL n.º 64-A/89 acaba por ter como pressuposto a recusa em aplicar um regime jurídico que, pela regra do artigo 294º do Código Civil e tendo em conta as únicas formas possíveis de contratação de pessoal na Administração Pública, postularia a nulidade do contrato, o que, na lógica condutora de todo o acórdão recorrido, ofenderia o princípio consagrado no artigo 53º da Constituição (princípio da segurança no emprego, com proibição de despedimento sem justa causa). Em suma, pois, decidir que é unicamente irregular o contrato a termo certo celebrado contra preceitos imperativos dos Decretos-Leis n.ºs 184/89 e 427/89 e que o mesmo se converte em contrato sem prazo pressupõe, em ambos os casos, a mesma recusa de aplicação do regime estabelecido naqueles diplomas legais, por violação da norma do artigo 53º da Constituição.'
2. Recebido o recurso no tribunal a quo em cumprimento do decidido por este Tribunal, escreveu-se nas alegações apresentadas pelo Ministério Público:
'Embora reportado a diferentes artigos de lei, dada a estrutura argumentativa do acórdão recorrido e a circunstância de o presente recurso ter na sua base uma recusa implícita de aplicação de normas, é manifesto que a questão jurídico-constitucional que lhe está subjacente é precisamente idêntica à que foi dirimida pelo Plenário deste Tribunal, no Acórdão n.º 683/99, em que se julgou inconstitucional, por violação do artigo 47º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 14º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º
427/89, na interpretação segundo a qual os contratos de trabalho a termo celebrados pela Administração se convertem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos a termo. Como é manifesto, o acórdão recorrido, ao decidir que é meramente irregular (e não nulo, por violar disposição legal imperativa, nos termos do artigo 294º do Código Civil) e ao concluir que o mesmo se deve converter em contrato de trabalho sem prazo (postergando a limitação que decorre da parte final do n.º 3 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 427/89, segundo a qual a aplicação subsidiária da lei geral sobre contratos a prazo não preclude as especialidades constantes de tal diploma) desaplicou necessariamente o dito princípio legal da taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, ínsito nas disposições legais que integram o objecto imediato do presente recurso, já que a convertibilidade decidida no acórdão impugnado se revela manifestamente contraditória com o princípio da estrita tipificação e do carácter excepcional dos referidos contratos a prazo na Administração (e com a manifesta inexistência legal da normal relação de trabalho sem prazo, face aos referidos preceitos legais).' Não foram apresentadas alegações por parte da recorrida. Cumpre agora decidir. II. Fundamentos
3. Como se decidiu no Acórdão n.º 417/95, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Novembro de 1995, 'a decisão deste Tribunal Constitucional (…) que revogou o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (…) fez caso julgado quanto à admissibilidade do recurso e quanto ao seu objecto.' Objecto do presente recurso de constitucionalidade será, portanto, a norma do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, e a norma do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, mas apenas na medida em que em relação a elas seja possível identificar um juízo de inconstitucionalidade, posto que implícito, formulado na decisão recorrida.
É a seguinte a redacção das normas cuja aplicação este Tribunal, em anterior Acórdão, considerou ter sido recusada na decisão recorrida: Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho:
'Artigo 9º
(Contrato de trabalho a termo certo)
1. O exercício transitório de funções de carácter subordinado de duração previsível que não possam ser desempenhadas por nomeados ou contratados em regime de direito administrativo pode excepcionalmente ser assegurado por pessoal a contratar segundo o regime de contrato de trabalho a termo certo.
2. O contrato referido no número anterior obedece ao disposto na lei geral do trabalho sobre contratos de trabalho a termo certo, salvo no que respeita à renovação, a qual deve ser expressa e não pode ultrapassar os prazos estabelecidos na lei geral quanto à duração máxima dos contratos a termo.
3. A contratação de pessoal nos termos do presente artigo obedece aos seguintes princípios: a. Publicidade da oferta de emprego; b. Selecção dos candidatos; c. Fundamentação da decisão; d. Publicação na 2ª Série do Diário da República, por extracto, dos dados fundamentais da contratação efectuada.'
Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro:
'Artigo 18ª
(Admissibilidade)
1. O contrato de trabalho a termo certo é o acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, com carácter subordinado, a satisfação de necessidades transitórias dos serviços de duração determinada que não possam ser assegurados nos termos do artigo 15º [isto é, mediante contrato administrativo de provimento].
2. O contrato de trabalho a termo certo pode ainda ser celebrado nos seguintes casos: a. Substituição temporária de um funcionário ou agente; b. Actividades sazonais; c. Desenvolvimento de projectos não inseridos nas actividades normais dos serviços; d. Aumento excepcional e temporário da actividade do serviço.
1. Para efeitos do número anterior, entende-se por actividade sazonal aquela que, por ciclos da natureza, só se justifica em épocas determinadas em cada ano.' Não há no presente processo que considerar o n.º 4 deste artigo, na sua actual redacção, segundo o qual 'O contrato de trabalho a que se refere o presente diploma não se converte, em caso algum, em contrato de trabalho sem termo.' É que tal n.º 4 foi aditado pelo Decreto-Lei n.º 218/98, de 17 de Junho, e este diploma ser posterior à cessação unilateral do vínculo laboral entre Autora e Réu.
4. Dispondo ambas as normas em questão sobre as condições em que podiam ser celebrados contratos de trabalho a termo para o exercício transitório de funções de carácter subordinado pela Administração Pública e não correspondendo a situação dos autos às condições nelas estabelecidas, entendeu-se que a desconsideração dessas normas correspondia à recusa da sua aplicação, respaldada no princípio constitucional da segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição. Nessa medida, como se escreveu nas conclusões das alegações produzidas neste Tribunal, pelo Ministério Público:
'O regime constante dos artigos 9º do Decreto-Lei n.º 184/89 e 18º do Decreto-Lei n.º 427/89 – interpretado como implicando a consagração do princípio da taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública e do carácter estritamente taxativo, residual e excepcional dos contratos de trabalho a prazo, celebrados com o Estado e outras pessoas colectivas públicas – configura-se como decorrência do princípio do acesso à função pública mediante concurso, afirmado pelo n.º 2 do artigo 47º da Constituição da República Portuguesa.' Ora, foram justamente o 'direito especial de igualdade' no acesso à função pública, previsto neste artigo 47º, n.º 2, bem como a dimensão objectiva, com fundamento institucional, da regra da igualdade e liberdade no acesso à função pública – com vista a reforçar a sua capacidade funcional e de prestação e a assegurar a transparência e democraticidade na composição da função pública –, que levaram o Tribunal Constitucional a considerar, no Acórdão 683/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Fevereiro de 2000) que:
'a forma de acesso à função pública pela conversão de contratos de trabalho a termo certo em contratos de trabalho por tempo indeterminado, sem concurso, seria independente de quaisquer razões materiais, ligadas à função a exercer, para além de violar o princípio da igualdade estabelecido no artigo 47º, n.º 2 da Constituição. Não deve, pois, ter-se por admissível.' Aí se considerou, ainda, que a conversão em contrato sem termo de um contrato com termo que ultrapasse os limites à sua renovação 'não se apresenta como único meio, ou, sequer, como disciplina indispensável, para o cumprimento pelo Estado do seu dever de proteger a segurança no emprego.' E, mais recentemente, pelo Acórdão n.º 368/00 (inédito), o Tribunal Constitucional veio a declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 14º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, na interpretação segundo a qual os contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado se convertem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração total fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 47º da Constituição.
5. Ora, se a anterior jurisprudência deste Tribunal já estabeleceu, embora com votos de vencido, que a conversão de contratos a termo certo, formalmente válidos, celebrados pela Administração Pública, em contratos sem prazo, devida à ultrapassagem do limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos a termo, não é imposta pelo princípio constitucional da estabilidade e segurança no emprego constante do artigo 53º da Constituição – e, mais, já estabeleceu que uma tal conversão é incompatível com a regra a igualdade no acesso à função pública consagrada no n.º 2 do artigo 47º da Constituição – então não pode invocar-se a primeira daquelas normas constitucionais para, como também se escreveu nas conclusões das alegações apresentadas pelo Ministério Público:
'considerar que é meramente irregular (e não nulo) o contrato a termo certo, celebrado para além da norma que tipifica as hipóteses em que a sua celebração e renovação são lícitas, e que o mesmo se pode converter em contrato de trabalho sem prazo (apesar de tal figura inexistir no que se refere às formas de constituição daquela relação de emprego público).' Dir-se-á, aliás, ainda, que a argumentação expendida nos citados Acórdãos n.ºs
683/99 e 368/00, para demonstrar que a conversão dos contratos de trabalho a termo certo em contratos de trabalho por tempo indeterminado violaria esse princípio de igualdade no acesso à função pública – sendo pois vedada pelo artigo 47º, n.º 2, da Constituição da República – é transponível para a conversão resultante de uma irregularidade do contrato a termo certo, consistente na sua celebração e renovação fora das hipóteses em que estas são lícitas (designadamente, por não se destinar ao exercício transitório de funções, e sim à satisfação de necessidades permanentes dos serviços). Tal conversão, que também conduziria a uma forma de relação jurídica de emprego público – o contrato de trabalho por tempo indeterminado – não prevista na lei, seria de igual modo violadora daquele princípio, e deve por isso considerar-se inconstitucional. Não só, pois, a sanção de nulidade do contrato, resultante das normas cuja apreciação está em causa nos presentes autos, não é constitucionalmente proibida, como, pelo contrário, se pode afirmar, na linha da jurisprudência resultante dos arestos citados, que a regra da igualdade no acesso à função pública, consagrada no artigo 47º, n.º 2, da Constituição da República, impede que da qualificação como mera irregularidade de tal contrato se extraia a conclusão da sua conversão em contrato por tempo indeterminado. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em consonância com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra (vencido, porque entendo que a fundamentação carreada ao acórdão nº
683/99, que não subscrevi, não podia conduzir a um juízo de não inconstitucionalidade) José Manuel Cardoso da Costa