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Procº nº 155/99
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA. I
1. Por apenso à acção ordinária dita nº 122/94, que correu seus termos pelo Tribunal de Círculo da Figueira da Foz, deduziu A..., Ldª, contra AF... execução de sentença para pagamento de quantia certa, seguindo a forma de processo ordinário, visando obter a cobrança coerciva do montante de Esc.
26.367.000$00 em que foi condenado naquela acção ordinária, além de juros vencidos e vincendos, e requerendo, desde logo, a conversão em penhora de determinados bens arrestados, o que foi deferido por despacho de 11 de Junho de
1997.
Seguindo os autos seus termos, foi efectuada a penhora em determinados bens móveis que se encontravam na residência do executado e a penhora de um imóvel onde se sediava, quer aquela residência, quer um estabelecimento comercial.
2. O executado veio deduzir oposição à execução, sustentando que a penhora ordenada 'da casa e do recheio da mesma, bem como do estabelecimento comercial', ofendia a sua garantia de subsistência, bem como a do seu agregado familiar, sendo inconstitucional o disposto nos artigos 821º e 822º do Código de Processo Civil enquanto permite 'que o devedor seja privado, por efeito da penhora, destes bens considerados essenciais à garantia de uma vida minimamente digna'.
Por despacho de 18 de Maio de 1998 foi a oposição julgada improcedente.
Pode ler-se nesse despacho:-
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No entanto, este princípio geral [o princípio que se extrai dos artigos 821º do Código Civil e 601º do Código de Processo Civil, de harmonia com o qual pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora] tem excepções. Existem bens que não podem ser penhorados. Estão neste caso os bens inalienáveis por serem inseparáveis de uma pessoa como sejam o direito a alimentos (2008-1 CC), o direito de uso e habitação (art. 1488 CC), o direito de sucessão de pessoa viva etc (art. 2028º CC) etc.
No entanto, não são só os bens inalienáveis que são impenhoráveis. Outros bens existem que embora pudessem ser objectivamente penhoráveis não o são por determinação legal. Esses bens vêm elencados nos arts 822º e 823º, ambos do CPC.
A impenhorabilidade destes bens resulta da ‘consideração de certos interesses gerais ou de interesses vitais do executado que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente (...)
Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (objectos indispensáveis para a cama e vestuário, utensílios indispensáveis
à economia doméstica, géneros e combustível necessários a um mês de sustento: art. 822-1 als f) e g), e art. 823-1-c), que são indispensáveis ao exercício da profissão do executado, que constituem uma parte do rendimento do seu trabalho por conta de outrem ou que são indispensáveis ao seu sustento ou à sua personalidade moral ‘ (Prof. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra Editora, 1993, pág 184 e 185).
O autor acima referido defende ainda na nota 24 da pág 184 da mesma obra que a impenhorabilidade dos bens que são indispensáveis ao exercício da profissão não obsta à penhorabilidade do estabelecimento comercial e dos utensílios que são sua parte integrante.
No caso concreto, foi penhorado um prédio urbano onde o executado tem a sua habitação e onde está sediado o seu estabelecimento comercial.
Ora, da análise dos referidos artigos ressalta que em nenhuma das suas alíneas se enquadra a impenhorabilidade destes bens. Será, assim, a norma do art. 821º do CPC inconstitucional por permitir a penhora destes bens, valorados pelo executado como indispensáveis à sua sobrevivência?
Do exposto atrás, ressalta que o legislador não descurou os interesses do executado, salvaguardando da penhora os bens que valorou como indispensáveis à subsistência condigna do executado. No entanto, tal não significa a manutenção do nível de vida anterior deste. Os interesses do exequente, lesado pela conduta do executado, são igualmente de considerar e, na acção executiva, de considerar em primeiro plano.
A Constituição consagra no art. 65º o direito à habitação quando estabelece que ‘todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar’........................................................................................................
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No caso concreto, ressalta que pela penhora o executado não se vê arbitrariarmente despojado do prédio urbano onde tem a sua casa de morada de família. Pelo contrário, esse bem só foi penhorado por um facto que lhe é exclusivamente imputável - o não cumprimento das suas obrigações para com o executado.
Além destas considerações há que esclarecer que o direito à habitação não é de maneira nenhuma um direito a ter casa própria. Embora essa possa eventualmente ser uma meta a atingir, o facto é que uma parte considerável da população portuguesa vive em casas arrendadas, não podendo, por isso considerar que viva em condições degradantes. Há sim que assegurar um mínimo de rendimentos ao exequente que lhe permitam pagar uma renda; não há que lhe assegurar a manutenção de casa própria em detrimento dos interesses dos seus credores.
Quanto à penhora do imóvel onde está instalado o estabelecimento comercial poderia entender-se que esta punha em perigo o direito ao trabalho reconhecido pelo art 58º da CRP ou, eventualmente, o direito à iniciativa privada, reconhecido no art. 61º do mesmo diploma.
No entanto há que fazer duas considerações:
- Por um lado o direito ao trabalho não é evidentemente absoluto e não é o direito a um concreto posto de trabalho. É sim um direito que se impõe ao Estado tendente a que este fomente políticas de pleno emprego e compense aqueles que o não têm através do correspondente subsídio de desemprego. Por outro lado, o direito à iniciativa privada consiste apenas ‘na liberdade de iniciar uma actividade económica (direito à empresa, liberdade de criação de empresa) e, por outro lado, na liberdade de gestão e actividade da empresa’
(Prof Gomes Canotilho, obra citada em anotação ao art. 61º). Não significa que o direito a ter uma empresa, ou, no caso concreto, um estabelecimento comercial se sobreponha aos interesses dos credores se verem pagos através dos estabelecimentos comerciais dos respectivos créditos. Aliás, se assim fosse, por-se-ia em perigo o próprio giro comercial, uma vez que sempre estivessem em causa comerciantes os credores se veriam, eventualmente, impossibilitados de conseguir a penhora dos bens de maior valor, precisamente os seus estabelecimentos comerciais.
- Há ainda a considerar que no presente caso não foi penhorado o estabelecimento comercial. Foi sim penhorado o imóvel onde este está instalado. Note- -se que o estabelecimento comercial é independente do imóvel onde se encontre, nada impedindo que o executado o reorganize noutro sítio.
Para concluir, note-se que seria a impossibilidade de penhorar os bens em apreço que poderia, ela sim, ofender o princípio constitucional da proporcionalidade pela ofensa ao direito de propriedade do exequente.
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Ora, como atrás foi explanado, não se pode considerar que a penhora do prédio onde estão instalados o estabelecimento comercial e a casa da morada de família do executado seja ofensiva daquele mínimo indispensável à sobrevivência condigna do executado. A impenhorabilidade destes bens poderia, ela sim, constituir uma violação do direito à propriedade privada do exequente e credor.
Por todo o exposto, por não se vislumbrar qualquer inconstitucionalidade das normas invocadas e por a presente oposição à penhora não abranger bens essenciais à vida digna do executado e do seu agregado familiar terá a oposição à penhora de improceder.
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Deste despacho recorreu o executado para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Na alegação que produziu, concluiu o então recorrente, inter alia:
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C) Na verdade, ao permitir a penhora da casa e do recheio da mesma, bem como do estabelecimento comercial, os artºs 821º., nº. 1 e 822º. do Cod. Proc. Civil são inconstitucionais, pois permitem a penhora dos bens indispensáveis ao exercício da actividade comercial do executado, de que depende a sua sobrevivência e a da família seu cargo, dado que não existe qualquer rendimento suplementar de mais qualquer membro do agregado familiar, que no mencionado estabelecimento comercial aplica todo o seu trabalho.
D) Acresce que, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, plasmado no artº. 1º. da Constituição da República, está necessariamente incluído o direito de cada pessoa a usufruir de uma habitação dotada de um mínimo de dignidade (cfr. também o artº. 65º., da Constituição), bem como o direito a perceber um rendimento que garanta uma sobrevivência minimamente condigna de si mesmo e do agregado familiar que economicamente dela depende.
E) Por isso, as normas que permitem que o devedor seja privado, por efeito da penhora, destes bens considerados essenciais à garantia de uma vida minimamente digna, são manifestamente inconstitucionais, tanto mais que, ao executado, devido à circunstância de ser ‘pessoa de humilde condição social’, como se provou nos autos principais, não é possível arranjar outra habitação, nem qualquer outra fonte de rendimento pessoal e familiar.
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Por acórdão de 15 de Dezembro de 1998, negou a Relação de Coimbra provimento ao recurso.
Para tanto, disse-se nesse acórdão, no que ora releva:-
'................................................................................................................................................................................................. II) OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL No douto despacho impugnado se indicaram, de forma proficiente e clara, os motivos por que não se verifica, no caso concreto, a pretendida inconstitucionalidade material das normas constantes dos arts. 821º, nº 1 e
822º, ambos do Código de Processo Civil. Seria, pois, ocioso repetir aqui a mesma argumentação, aliás assente em doutrina já elaborada pelo Tribunal Constitucional. Nesta conformidade, e tal como permite o art. 713º, n.º 5 do Código de Processo Civil, este Tribunal adere integralmente à fundamentação e decisão expressas na
1ª instância, sem necessidade de mais considerações com vista a demonstrar a sem razão e improcedência das conclusões da alegação de recurso
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É deste aresto que, pelo executado, e uma vez que foi entendido não poder haver recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. despacho lavrado em
26 de Janeiro de 1999 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra), vem interposto o presente recurso, fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e com vista à apreciação da conformidade ou não conformidade com a Lei Fundamental do disposto nos artigos
821º e 822º do Código de Processo Civil.
3. Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si produzida concluindo:-
'A) Dos depoimentos prestados nos autos resulta provado que o ora recorrente tem a sua habitação no prédio penhorado e é nesse prédio exerce a sua actividade comercial, sendo ainda nele que o agregado familiar do executado composto pela sua mulher e por dois filhos reside no primeiro andar, não tendo mais qualquer outro local para onde possa passar a residir e, por fim, que o estabelecimento comercial e os bens nele existentes são os únicos meios de que o ora recorrente dispõe para obter os meios necessários à alimentação, educação e subsistência do seu mencionado agregado familiar. B) Face aos factos provados, a penhora ordenada nos presentes autos constitui uma ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artº. 1º. da Constituição da República Portuguesa, mesmo após a alteração constante da Lei Constitucional nº. 1/97, de 20 de Setembro, dado que ‘a todo o cidadão é garantido a percepção de uma prestação ... que lhe possibilite uma subsistência condigna...’- Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional de 3 de Julho de 1991, publicado no DR, IIA. Série de 2/12/91, pág. 12.270. C) Na verdade, ao permitir a penhora da casa e do recheio da mesma, bem como do estabelecimento comercial, os artºs. 821º., nº. 1 e 822º. do Cod. Proc. Civil são inconstitucionais, pois permitem a penhora dos bens indispensáveis ao exercício da actividade comercial do executado, de que depende a sua sobrevivência e a da família seu cargo, dado que não existe qualquer rendimento suplementar de mais qualquer membro do agregado familiar, que no mencionado estabelecimento comercial aplica todo o seu trabalho. D) Acresce que, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, plasmado no artº. 1º. da Constituição da República, está necessariamente incluído o direito de cada pessoa a usufruir de uma habitação dotada de um mínimo de dignidade (cfr. também o artº. 65º. da Constituição), bem como o direito a perceber um rendimento que garanta uma sobrevivência minimamente condigna de si mesmo e do agregado familiar que economicamente dela depende. E) Por isso, as normas que permitem que o devedor seja privado, por efeito da penhora, destes bens considerados essenciais à garantia de uma vida minimamente digna, são manifestamente inconstitucionais, tanto mais que, ao executado, devido à circunstância de ‘ser pessoa de humilde condição social’, como se provou nos autos principais, não é possível arranjar outra habitação, nem qualquer outra fonte de rendimento pessoal e familiar. F) A questão da constitucionalidade das referidas normas dos artºs. 821º., nº. 1 e 822º. do Cod. Proc. Civil foi suscitada nas instâncias e já se encontravam esgotados os meios de recurso dos tribunais comuns, atento a dupla decisão desfavorável, proferida nos referidos autos e face ao disposto no artº. 754º., nº. 2 do Cod. Proc. Civil, que torna inadmissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. G) Por isso, deve ser declarada a inconstitucionalidade do artº. 821º., nº. 1 do Cod. Proc. Civil e do artº. 822º. ainda do mesmo diploma legal, quando a penhora abrange bens essenciais à vida digna do executado e do seu agregado familiar, constitucionalmente protegida, como é de lei e de
J U S T I Ç A!
De seu lado, a recorrida não apresentou qualquer alegação.
Cumpre decidir. II
1. Como deflui das transcritas «conclusões» da alegação do recorrente, questiona o mesmo a conformidade constitucional das normas ínsitas no nº 1 do artº 821º e no artº 822º, ambos do Código de Processo Civil, enquanto permitem a penhora da casa do executado e do respectivo recheio e, bem assim, do estabelecimento comercial.
Todavia, e talqualmente ressalta do que acima ficou relatado, aqueles normativos não foram interpretados e aplicados numa dimensão tão ampla quanto aquela a que se reporta a alegação do recorrente.
Efectivamente, a penhora a que se assistiu nos vertentes autos incidiu sobre determinados bens móveis existentes na residência do executado e que foram considerados como não indispensáveis ao asseguramento de um mínimo de condições de vida condignas do executado e seu agregado familiar, e sobre um imóvel onde se situava aquela residência e um estabelecimento comercial, uma e outro pertença do executado, o que vale por dizer que aqueles nº 1 do artº 821º e artº 822º foram interpretados e aplicados no sentido de ser permitida a penhora, quer de determinados bens móveis sitos na residência do executado e desde que não indispensáveis a um mínimo de sobrevivência condigna dele e seu agregado familiar, quer do imóvel onde essa residência e um estabelecimento comercial se sediam.
Assim sendo, torna-se evidente que, in casu, a apreciação que este Tribunal deverá levar a efeito será a que consiste em saber se é, ou não, conflituante com a Constituição - designadamente por ofensa do princípio da dignidade da pessoa humana, prescrito no seu artigo 1º, e do direito de cada pessoa ter para si e para a sua família uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto, direito esse postulado pelo nº 1 do seu artigo
65º - o conjunto normativo que se extrai da conjugação dos preceitos constantes do nº 1 do artº 821º e da alínea f) do artº 823º, enquanto entendido no sentido de a penhora poder recair sobre bens móveis que se encontrem na residência do executado e que não sejam imprescindíveis à sua economia doméstica e sobre o imóvel onde essa residência e um estabelecimento comercial se situem.
2. Tais preceitos rezam do seguinte modo:- Artigo 821º Objecto da execução
1 - Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda. Artigo 822º Bens absoluta ou totalmente impenhoráveis
São absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial:
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f) Os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado, salvo se se tratar de execução destinada ao pagamento do preço da respectiva aquisição ou do custo da sua reparação;
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Para efeitos de compreensão do nº 1 do artº 822º, acima transcrito, não poderá deixar de se fazer apelo a que o diploma civil básico estatui no seu artº 601º, como princípio geral de garantia do cumprimento das obrigações, o de que por tal cumprimento respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sendo que aqui se não colocam quaisquer situações ligadas, quer a regimes especialmente estabelecidos em consequência de separação de patrimónios, quer a convenções estabelecidas entre credor e devedor e estando em causa matéria subtraída à disponibilidade das partes, por forma a ser limitada a responsabilidade do segundo a algum dos seus bens, quer a bens, sujeitos a registo, deixados ou doados com a cláusula de exclusão de responsabilidade por dívidas do beneficiário anteriores à liberalidade e, não tendo sido efectuado o registo daquela cláusula antes do registo da penhora ou, tratando-se de bens não sujeitos a registo, se o direito dos credores não for anterior à liberalidade
(cfr. artºs 602 e 603º do Código Civil; cfr., sobre o tema, Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial e Obrigações - ideias preliminares gerais, in Boletim do Ministério da Justiça, números 75º e 77º).
2.1. Começando por fazer incidir a atenção sobre o conjunto normativo sub specie quando reportado à permissão da penhora recair sobre bens móveis que se encontrem na residência do executado e que não sejam imprescindíveis à sua economia doméstica, antecipar-se-á, desde já, que o mesmo, na perspectiva deste Tribunal, não constitui ferimento do princípio fundamental em que se esteia a República Portuguesa e que é o de a mesma se basear na dignidade da pessoa humana, tal como se prescreve no artigo 1º da Constituição.
A este respeito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 58 e 59) que a dignidade da pessoa humana fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais - ... - mas também à organização económica (princípio da igualdade da riqueza e dos rendimentos, etc.). E, continuam esses autores:-
'....................................................................................................................................................Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitu- cional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a no caso dos direitos sociais, ou invocá-la para construir uma «teoria do núcleo da personalidade» individual, ignorando-a quando se trata de garantir as bases da existência humana.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Não é esta a primeira vez que este Tribunal faz a impostação do problema de saber se, tendo em linha de conta, por um lado, os direitos do credor e, por outro, a própria pessoa do devedor, ponderando a dignidade que, como ser humano, lhe deve ser reconhecida, a nossa Lei Fundamental sairá beliscada quando normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional permitem (ou podem ser interpretadas como permitindo) a penhora sobre bens que não sejam indispensáveis a uma subsistência condigna do executado.
Ponderou-se, verbi gratia, no Acórdão nº 349/91 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 2 de Dezembro de 1991) que o 'credor goza de um direito à satisfação do seu crédito, podendo, no caso de recusa de cumprimento do devedor, exigir a realização executiva do seu crédito, à custa do património do devedor'. Esse direito, enquanto direito de conteúdo patrimonial, referiu-se no citado aresto, 'é tutelado pelo artigo 62º, nº 1 da Constituição, que encerra a garantia (institucional e individual) da propriedade privada', constituindo o artº 601º do Código Civil 'uma expressão, a nível da legislação ordinária, da tutela constitucional do direito do credor'.
Perante esta perspectivação, é figurável que este direito possa vir a colidir com outros «interesses» do devedor, designadamente não se ver privado dos bens que existam na sua residência e na de sua família.
A questão assume acuidade justamente quando se desenhe uma privação de bens (levada a efeito pela penhora) que recaia sobre muitos dos que ali se encontrem. Será que, nessas condições, tendo em vista a tutela que há-de decorrer do que se postula no artigo 1º da Constituição (cfr., sobre 'o direito
à sobrevivência construído a partir do direito à vida', Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 1983, 89) - e que, indubitavelmente, se há-de perspectivar como um valor supremo - é lícito, sem mais, asseverar-se que o direito do credor, tal como acima ficou desenhado, terá de soçobrar totalmente perante o segundo?
A essa questão responde o Tribunal, aliás na senda do que já se fez no citado Acórdão nº 349/91, em termos de considerar que só será constitucionalmente lícito o sacrifício do direito do credor se isso 'for necessário à salvaguarda do direito fundamental do devedor a uma sobrevivência com um mínimo de qualidade', pelo que, para além desse patamar, 'já não será constitucionalmente ilegítimo o sacrifício do direito do credor'.
Ora, a norma que se contém nas disposições conjugadas do nº 1 do artº 822º e da alínea c) do artº 823º, ambos do Código de Processo Civil, não deixa de representar, a nível de direito ordinário, a consagração de uma forma de composição do conflito ou da colisão entre o direito do credor em receber a prestação que lhe seria devida pelo devedor relapso e o direito deste último a ver mantida na sua esfera de disponibilidade um conjunto de bens que lhe permitam, bem como ao seu agregado familiar, desfrutar de um mínimo de sobrevivência condigna.
Tal como se configura aquela forma de composição do conflito de que tratamos, não é a mesma passível , entende-o o Tribunal, de um juízo de censura no prisma de desconformidade com a Lei Fundamental.
Na verdade, uma norma que, ao intentar resolver o conflito entre os dois direitos em causa, sacrificasse totalmente o interesse do credor, ao não permitir tentar satisfazer o seu crédito dada a impossibilidade de serem penhorados bens existentes na residência permanente do executado/devedor e que não se apresentassem como imprescindíveis à sua economia doméstica, postar-se-ia como uma consagração desajustada, por desproporcionada, de 'distribuição dos custos do conflito' (para se utilizarem as palavras de Vieira de Andrade, ob. cit., 233), já que, para além de estar garantido o mínimo de sobrevivência do executado e, por isso, estar assegurado o conteúdo mínimo desse direito, nenhuma relevância seria dada ao direito do credor, baseado que está este, como se viu, num outro direito fundamental, qual seja o consagrado no nº 1 do artigo 62º da Constituição.
2.2. Isto posto, volvamos a atenção para a questão de saber se o conjunto normativo em apreço, quando entendido no sentido de permitir a penhora de um imóvel onde se situe a casa de habitação do executado e seu agregado familiar e também um estabelecimento comercial por aquele detido ou explorado, viola quaisquer normas ou princípios constitucionais, nomeadamente, para além do princípio da dignidade da pessoa humana, na vertente de garantia de percepção de prestações que lhe possibilitem uma existência condigna, o direito que todos têm de haver para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto (cfr. nº 1 do artigo 61º da Lei Fundamental).
No tocante à penhora do imóvel onde também se situa a habitação do executado (bem como a da sua família), é por demais evidente que desse acto processual não resulta que um e outra fiquem despojados da sua habitação ou arbitrariamente dela privados.
Na verdade, no caso, a realização coactiva da prestação devida pelo executado e exigida judicialmente, e de que uma fase de concretização, num dado momento, se obteve pela realização da penhora, incidiu sobre um direito (o de propriedade) detido pelo mesmo executado sobre um imóvel onde se sedia a sua residência. Neste contexto, torna-se claro que a habitação em causa, tomada qua tale (ou seja, desligada da titularidade do direito real de propriedade sobre o imóvel onde essa habitação se situa), não foi afectada ou, mais propriamente, pela penhora, o executado e sua família não foram privados da respectiva habitação, podendo, pois, manterem-se no imóvel.
Em anotação ao direito consagrado no nº 1 do artigo 65º da Lei Fundamental, Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., 344 e 345), expendem que o mesmo 'apresenta, tal como vários outros direitos sociais, uma dupla natureza', consistente, 'por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de «direito negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos «direitos, liberdades e garantias»'; e, '[p]or outro lado o direito à habitação consiste no direito de obtê-la, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas
à realização de tal objectivo', apresentando-se, neste sentido, 'como verdadeiro e próprio «direito social»', que 'implica determinadas obrigações positivas do Estado (...), ou seja, 'um direito positivo que justifica e legitima a pretensão dos cidadãos a determinadas prestações', por cujo 'incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das obrigações constitucionais aqui indicadas constitui uma omissão inconstitucional'.
Tendo havido, por banda do ora recorrente, incumprimento das obrigações que livremente assumira, e nascendo por isso, para o credor, o direito de exigir judicialmente esse cumprimento, executando o património daquele (cfr. artigos 817º e 601º do Código Civil) - direito este que, como já se viu, não deixa de se basear no nº 1 do artigo 62º da Constituição - não poderá, de todo, falar-se em que a penhora do imóvel onde se situa a habitação do executado constituiu, por si, uma arbitrária privação da falada habitação que, aliás, como igualmente se fez notar, nem sequer ocorreu por via da realização da mera penhora sobre o imóvel. A estas considerações há, ainda, que aditar, por um lado, que o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que modo primordial ou a título principal, para o «direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão» e, por outro, que o 'mínimo de garantia' desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento 'em condições compatíveis com os rendimentos das famílias') é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado, disponibilizando (verbi gratia) 'os meios que facilitem o acesso à habitação própria (fornecimentos de terrenos urbanizados, créditos bonificados, acessíveis à generalidade das pessoas, direito de preferência na aquisição de casa arrendada, etc.) e de controlo e limitação das rendas (tabelamento das rendas, subsídios públicos às famílias mais carecidas, criação de um parque imobiliário público com rendas limitadas, etc.)' (cfr. autores a obra por último citados, 345 e 346).
O que se afiguraria como desproporcionado era que, no balanceamento do direito do credor a ver satisfeitas coercivamente - como no caso acontece - as obrigações assumidas pelo devedor (direito esse, repete-se, ancorado no nº 1 do artigo 62º da Constituição), e de um eventual «direito» deste último a conservar a titularidade do direito de propriedade de um imóvel onde se situa a sua habitação, o primeiro fosse postergado em nome do segundo, (sendo mesmo certo, aliás, que, ainda que não ocorra uma tal postergação, o «direito a continuar a habitar» o imóvel não é retirado imediatamente ao mencionado devedor com a penhora).
Daí que se conclua que o conjunto normativo em apreciação, enquanto entendido como permitindo a penhora do imóvel onde o devedor e sua família têm a sua habitação, se não apresente como conflituante com o disposto no nº 1 do artigo 65º do Diploma Básico.
2.3. Resta a análise da questão consistente em saber se é constitucionalmente insolvente o aludido conjunto normativo enquanto interpretado por forma a permitir a penhora de um imóvel onde se sedie um estabelecimento comercial, cuja exploração constitui o modo de vida do executado e com o qual provê ao seu sustento e do respectivo agregado familiar.
Segundo o recorrente, essa interpretação feriria o princípio da dignidade da pessoa humana, por isso que o executado ficaria sem bens indispensáveis ao exercício da sua actividade comercial, assim não lhe sendo permitido perceber um rendimento que proviesse a uma sobrevivência minimamente condigna.
Neste particular, sublinha-se mais uma vez que, in casu, a penhora em causa não recaiu sobre o estabelecimento comercial, mas sim sobre o imóvel onde o mesmo se encontrava instalado. Daí resultará, ineludivelmente, que não é objecto do vertente recurso a questão de saber se o conjunto normativo em crise
é ou não incompatível com a Constituição enquanto permite, por exemplo a penhora da totalidade dos bens de um estabelecimento comercial cuja exploração constitui a única actividade do executado e com a qual ele provê à sua subsistência.
O que este Tribunal tem de equacionar é se a penhora incidente sobre um imóvel onde um estabelecimento comercial se situa - e cuja exploração constitui o único modo de vida do executado - contende com a possibilidade de percepção de um rendimento que represente um mínimo de sobrevivência digna, possibilidade essa que, mesmo que para quem entenda que se não funda desde logo no direito ao trabalho, na vertente do exercício de uma actividade profissional, como pressuposto do direito à sobrevivência ou de realização da pessoa humana, há-de resultar seguramente do princípio da dignidade desta.
Ora, quanto a esta questão, torna-se indiscutível que a penhora de um imóvel onde um estabelecimento comercial se encontra instalado não vai impedir necessariamente o executado, que da sua exploração faz único modo de vida, de continuar a exercer o seu giro comercial, ainda que tal penhora venha a acarretar a mudança de local do estabelecimento.
Não se nega que o «aviamento» do estabelecimento, ao qual não é alheio o local onde o mesmo se sedia, constitua parte, por vezes até importante, da própria rentabilidade do mesmo. Simplesmente, uma diminuição de rentabilidade que não vai acarretar de modo inexorável a impossibilidade do respectivo funcionamento e, no que ora releva, não vá afectar a percepção, por esse funcionamento, de um mínimo de rendimento por forma a permitir uma sobrevivência digna do executado, não pode, de todo em todo, ser considerado como algo que contende com o princípio da dignidade humana.
Consequentemente, o conjunto normativo ora em análise e a dimensão de que se trata no presente ponto não se podem considerar como contrários aos preceitos que constam ou aos princípios que defluem da Constituição. III
Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em
15 unidades de conta. Lisboa, 24 de Novembro de 1999- Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida