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Proc. nº 773/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por despacho do Ministro do Comércio e Turismo, de 23 de Outubro de
1989, foi declarada de utilidade pública a expropriação a favor de AR... e R... do direito ao arrendamento que incidia sobre uma fracção autónoma de determinado prédio identificado nos autos, direito esse de que era titular D..., Lda., com sede na mesma fracção. No mencionado despacho, foi conferido o carácter urgente
à expropriação. Os expropriantes e também proprietários do referido prédio, AR... e R..., requereram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (7º Juízo Cível), em 23 de Fevereiro de 1990, a imediata adjudicação do direito ao arrendamento e da posse sobre a referida fracção autónoma, bem como a notificação aos expropriantes e expropriada do laudo da comissão arbitral, para efeitos de recurso. Por despacho de 6 de Março de 1990 (fls. 64), foi mandada notificar aos expropriantes e à expropriada a decisão arbitral, nos termos do artigo 70º, n.º
4, do Código das Expropriações de 1976, e foi adjudicada aos expropriantes a propriedade e posse do direito ao arrendamento da mencionada fracção autónoma.
2. Tanto os expropriantes como a expropriada interpuseram recurso da decisão arbitral, que havia fixado à expropriada a indemnização de 17.500.000$00
(fls. 50 a 52). Os primeiros pediram que a indemnização fosse fixada em quantia não superior a 5.000.000$00 (fls. 65 a 71) e a segunda pediu que a indemnização fosse fixada no montante de 55.216.180$00 (fls. 84 a 88). O Juiz do 7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, por sentença de 14 de Agosto de
1990 (fls. 165 e seguinte), fixou em 9.727.000$00 a indemnização a pagar pelos expropriantes AR... e R..., à expropriada D..., Lda..
3. A expropriada interpôs recurso de apelação da sentença proferida
(fls. 169); pelos expropriantes foi interposto recurso subordinado (fls. 171). O Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 18 de Abril de 1991 (fls. 189 e seguintes), ponderou que:
'[...] A justa indemnização visa ressarcir o prejuízo sofrido pelo expropriado e ela é alcançada fazendo funcionar os elementos aludidos no n.º 3 do artigo 36º [do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro], aos quais tem sido dada a seguinte interpretação: a) – as despesas a indemnizar são apenas as que respeitam à transferência e colocação de tudo aquilo que constitui o complexo comercial existente e não também o custo de uma nova instalação e do respectivo equipamento. b) – quanto aos prejuízos só são atendíveis os que resultarem do período de paralisação da actividade (quando necessário para a transferência) e serão calculados, em cada caso concreto, nos termos gerais de direito, ou seja ser-lhe-ão aplicáveis as regras dos artigos 564º e 566º do Código Civil.
É que não podemos esquecer que, ao fim e ao cabo, o que se trata de indemnizar é apenas o direito a esse arrendamento que caducou por força da expropriação. Ora, segundo o artigo 28º, n.º 1 do Código das Expropriações o prejuízo não se mede pelas despesas que o expropriado haja de suportar para obter a substituição da coisa expropriada por outra equivalente.'
Considerando que a sentença recorrida havia aderido ao laudo dos peritos do tribunal e da entidade expropriante – que não tiveram em conta o preceituado no artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações para determinar o valor da indemnização –, o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que a mesma sentença enfermava 'da nulidade existente no laudo daqueles peritos'. Nestes termos, decidiu:
– revogar a sentença do tribunal de 1ª instância, anulando-se o processo a partir de fls. 135 [isto é, a partir do relatório apresentado pelo perito da expropriada no tribunal recorrido], de modo que os peritos actuassem em conformidade com a lei;
– não tomar conhecimento do recurso subordinado.
4. Remetidos os autos ao Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (7º Juízo), realizou-se nova avaliação e, em 9 de Junho de 1995 (fls. 298 e seguintes), foi proferida sentença que, atendendo ao laudo dos peritos do Tribunal e dos expropriantes, constante de fls. 219 a 221, fixou a indemnização à expropriada no montante de 2.100.000$00. Lê-se no texto desta sentença, para o que aqui releva, que:
'[...] Das normas atrás enunciadas, aplicáveis ao caso dos autos, não parece resultar que as mesmas ofendam qualquer princípio constitucional. Deste modo, a indemnização à arrendatária há-de compreender as despesas relativas à nova instalação e aos prejuízos resultantes do período de paralisação da actividade, se necessário para a transferência, calculados nos termos gerais de direito. Ainda que acolhendo o entendimento sufragado pela jurisprudência [...], nos termos do qual nas despesas relativas à nova instalação se enquadram as resultantes do pagamento de uma nova renda mais elevada, o certo é que, no caso dos autos, a arrendatária transferiu-se para uma loja por si já arrendada e situada na mesma rua da cidade de Lisboa. Por isso, a arrendatária não tem direito a ser indemnizada por uma despesa que, efectivamente, não fez em resultado da expropriação. Daí que a indemnização se cinja, exclusivamente, às despesas com o transporte e ao prejuízo decorrente da paralisação da actividade com a transferência da mercadoria.'
5. Desta sentença do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa foi novamente interposto recurso de apelação por D..., Lda. (fls. 302); AR... e R... interpuseram recurso subordinado (fls. 304). Nas suas alegações (fls. 315 e seguintes), D..., Lda. veio dizer que:
'[...] entendeu-se na douta decisão recorrida que não ocorreu necessidade de nova instalação por a recorrente, privada do arrendamento expropriado, ter ficado cingida à única loja que lhe restou após a expropriação.
[...]
[...] a recorrente ficou pura e simplesmente privada de uma loja por expropriação do respectivo direito de arrendamento e o facto de que «passou a exercer a sua actividade ... noutra loja de que já era arrendatária» tem de ser interpretado nesse exacto sentido. Doutro modo, não poderia nunca ser indemnizado, por exemplo, um expropriado que, por não poder fazer face a uma renda comercial de valores actuais, passasse a vender os seus artigos em regime de ambulante. Certamente ninguém ousaria defender uma tal tese, que ressalvadas as devidas especificidades, não difere do caso dos autos. Por outro lado, a entender-se que «o pagamento de uma nova renda, naturalmente mais elevada», como refere o douto despacho de fls. 231, só releva se, à data da fixação da matéria de facto, o expropriado já tiver outorgado novo arrendamento, privados ficam da justa indemnização todos aqueles expropriados que não podem fazer face à transferência para outro local. Acresce que, tal entendimento implicaria que só em muito limitado número de casos pudesse ser tido em consideração na arbitragem o valor de uma nova renda dado que, tendo em conta a fase da realização da arbitragem não é comum que o expropriado já tenha logrado obter um novo local de arrendamento. E não pode, também certamente, excluir-se do direito a indemnização, pelo mesmo critério, o arrendatário expropriado que, eventualmente, opte pela compra de um local para sua instalação quer recorra ou não ao crédito bancário para o efeito. Em suma, é absolutamente injustificável a distinção, para efeitos de relevância do acréscimo de encargo de novo arrendamento, consoante o expropriado tenha ou não outorgado novo arrendamento ao tempo da fixação da matéria de facto. Ao julgar assim, a douta sentença recorrida faz recair sobre o expropriado em mais precária situação económica uma desproporcionada onerosidade, com violação dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade. Deste modo o n.º 3 do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro, na interpretação que dele fez a douta decisão recorrida enferma de inconstitucionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.' E termina as conclusões, dizendo que:
'[...] d) A recorrente, privada do arrendamento expropriado ficou com a sua actividade limitada à outra loja de que é inquilina. e) Só neste sentido pode ser interpretado o facto de «a arrendatária transferiu-se para uma loja por si já arrendada ...». f) O valor de uma nova renda tem de ser calculado segundo critérios de razoabilidade e equidade para efeitos de indemnização pela expropriação do direito ao arrendamento comercial. g) O entendimento de que só releva para efeitos de indemnização uma renda já efectivamente outorgada implica uma flagrante desigualdade entre os expropriados que estão em condições de fazer face de imediato ao encargo de uma nova renda e aqueles que só após a percepção da indemnização podem fazê-lo. h) O n.º 3 do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 845/76, na interpretação que dele fez a douta sentença recorrida é inconstitucional por violação do n.º 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
[...]'
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23 de Setembro de 1999 (fls. 335 e seguintes), decidiu:
'Atento o teor da sentença recorrida, cujos fundamentos se sufragam e para os quais se remete, em conformidade, aliás, com o acórdão desta Relação, proferido nos autos, de fls. 189 a 193, face ao preceituado no artigo 713º, n.º 5, do C.P.C., decide negar-se provimento aos recursos d[a] expropriada e d[os] expropriantes (subordinado), confirmando-se aquela sentença.'
6. D..., Lda. interpôs, do referido acórdão da Relação de 23 de Setembro de 1999, o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro, por violação do artigo
62º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. O recurso foi admitido por despacho de fls. 340.
7. A recorrente concluiu assim as alegações que apresentou no Tribunal Constitucional (fls. 342 e seguintes):
'a) É inconstitucional, por violação dos artigos 62º, n.º 2 e 13º da CRP a norma do n.º 3 do artigo 36º do Código das Expropriações de 1976 na medida em que o critério nele fixado, segundo a interpretação que dele fez o douto Acórdão recorrido, conduz a uma indemnização muito aquém do prejuízo sofrido pela expropriada ora recorrente. b) Assim é porque a restrição do preceito do n.º 3 do artigo 36º do CE de 1976 não permite que seja calculada uma indemnização correspondente à natureza e montante da perda do estabelecimento comercial, designadamente a perda de um local de exercício de actividade geradora de proveitos e susceptível de valorização. c) A restrição do n.º 3 do artigo 36º do CE de 1976, de encargos com a nova instalação, na interpretação do douto Acórdão recorrido, acarreta grave disparidade entre expropriados de menores recursos e expropriados de maiores recursos dado que estes podem desde logo fazer face aos encargos de uma instalação que substitua o local cujo arrendamento foi expropriado. d) Assim não o entendeu o douto acórdão recorrido que fez daquela norma uma interpretação restritiva entendendo que a indemnização em caso de expropriação do direito ao arrendamento comercial só pode ter em conta as despesas com a deslocação para outro local. e) Este entendimento é frontalmente contrário ao que dispõe o n.º 2 do artigo
62º da CRP. f) E ofende ainda o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP. Deve por conseguinte ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 36º, n.º 3 do Código das Expropriações de 1976 na interpretação que do mesmo fez o douto Acórdão recorrido.'
Por sua vez, os recorridos formularam as seguintes conclusões:
'1º Deve ser julgada procedente a questão prévia suscitada, visto o Acórdão recorrido não ter aplicado a norma do art. 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976, com o sentido alegadamente inconstitucional, como pretende a Sociedade Recorrente, uma vez que se limitou a aceitar a interpretação acolhida numa anterior decisão da Relação (proferida nos autos a fls. 189 a 193), não impugnada pela Recorrente e transitada em julgado, pelo que não chegou a interpretar e aplicar autonomamente essa disposição;
2º De facto, ao ter deixado transitar esse Acórdão de fls. 189 a 193, sem dele ter interposto recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, a Sociedade recorrente perdeu a oportunidade processual de o impugnar por ter deixado passar o momento processualmente adequado para o fazer (cfr. art. 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), tendo-se fixado a interpretação do art. 36º, n.º 3, do Código das Expropriações que deveria ser acatado pelos peritos e pelo Tribunal Cível de Lisboa;
3º A título subsidiário e por mera cautela, se se perfilhar o entendimento de que o Acórdão da Relação objecto de recurso acolheu a fundamentação da segunda sentença de primeira instância e que esta interpretou de forma diversa e autónoma o n.º 3 do art. 36º do Código das Expropriações, tem de sustentar-se que a norma com essa interpretação não é inconstitucional;
4º É que tem de atender-se a que não foi estabelecido, nessa interpretação, qualquer «tecto» indemnizatório ou limite inultrapassável, tendo-se adoptado um entendimento da norma em causa de harmonia com a jurisprudência cível dominante, em termos análogos aos consagrados no n.º 4 do art. 29º do Código das Expropriações de 1991 ou o n.º 4 do art. 30º do Código das Expropriações de
1999;
5º De facto, no quadro concreto apreciado pelas instâncias, a Sociedade recorrente que viu o seu direito de arrendamento ser objecto de expropriação mudou o seu estabelecimento sito no prédio em causa para nova loja que tinha na mesma rua e onde funcionava outro estabelecimento, em termos em que não teve de despender qualquer quantia de rendas de um novo arrendamento;
6º Foram, assim, objecto de indemnização as despesas com o transporte do recheio e prejuízos sofridos com a paralisação – arbitrados por prova pericial organizada nos termos do decidido pelo Acórdão de fls. 189 a 193, transitado em julgado – em termos de se ter alcançado, em concreto, o ditame da justa indemnização;
7º A indemnização arbitrada pelos Senhores Peritos e que teve acolhimento na douta sentença proferida, com vista a compensar o período de paralisação, foi fixada por evidente excesso em 1.600.000$00, quando, à data da expropriação –
1989 –, a única que importa ter em conta nestes autos, a ora recorrente declarava – fls. 27 – que o seu rendimento anual era tão só de 107.640$00, do que resulta uma indemnização correspondente ao rendimento que a recorrente teria em 15 anos de actividade;
8º Nesse sentido e no contexto fáctico provado e que serviu de enquadramento às decisões das instâncias, só aquelas despesas e prejuízos podiam ser indemnizados, pelo que sempre o Tribunal Constitucional se teria de situar nesse quadro fáctico concreto para apreciar a questão de constitucionalidade suscitada nos autos;
9º O art. 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976, com a interpretação acolhida na sentença de primeira instância proferida em 1995, não viola o n.º 2 do art. 62º da Constituição.'
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelos recorridos, a recorrente não respondeu.
II
8. O presente recurso tem por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro), por violação dos artigos 13º e 62º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Dispõe assim o artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976:
'Artigo 36º
[1. O arrendamento para habitação, comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, bem como o arrendamento rural, são considerados como encargos autónomos para o efeito de os arrendatários serem indemnizados pelo expropriante.]
[...]
3. Na indemnização respeitante a arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal atender-se-á às despesas relativas à nova instalação e aos prejuízos resultantes do período de paralisação da actividade, se necessário para a transferência, calculados nos termos gerais de direito.
[...] '
A recorrente pretende apenas a apreciação da inconstitucionalidade desta norma em determinada dimensão interpretativa: a de que a indemnização em caso de expropriação do direito ao arrendamento comercial só pode ter em conta as despesas com a deslocação para outro local, não atendendo 'à natureza e montante da perda do estabelecimento comercial, designadamente a perda de um local de exercício de actividade geradora de proveitos e susceptível de valorização'
(cfr. conclusão b) das alegações apresentadas junto deste Tribunal, fls. 342 e seguintes) e a de que 'a restrição do n.º 3 do artigo 36º do CE de 1976, de encargos com a nova instalação, na interpretação do douto Acórdão recorrido, acarreta grave disparidade entre expropriados de menores recursos e expropriados de maiores recursos dado que estes podem desde logo fazer face aos encargos de uma instalação que substitua o local cujo arrendamento foi expropriado' (cfr. conclusão c) das mesmas alegações).
9. Vejamos, antes de mais, se o Tribunal Constitucional pode conhecer do presente recurso, começando por resolver as questões prévias suscitadas pelos recorridos. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pela recorrente – é um recurso de uma decisão que tenha aplicado norma (ou norma, numa certa interpretação) cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
9.1. Segundo os recorridos, a decisão recorrida não teria aplicado a norma constante do n.º 3 do artigo 36º do Código das Expropriações de 1976, na medida em que se teria limitado a acolher uma interpretação constante de um acórdão já transitado em julgado que, esse sim, fixou o direito aplicável ao caso dos autos: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Abril de 1991
(supra, 3.). Faltaria portanto um dos pressupostos processuais do presente recurso: o da aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja inconstitucionalidade se suscita. Acrescentam ainda os recorridos que, não tendo a recorrente interposto recurso para o Tribunal Constitucional do mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Abril de 1991, ficou precludida a apreciação posterior, por esse Tribunal, da questão de inconstitucionalidade que agora vem suscitar. Como, de acordo com o n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, e, no presente processo, o tribunal recorrido não podia conhecer dessa questão, não estaria preenchido um segundo pressuposto processual do recurso para o Tribunal Constitucional: o de a questão de inconstitucionalidade ter sido suscitada, de modo adequado, durante o processo. Quanto a este aspecto, não têm, porém, razão os recorridos. Se bem se reparar, o tribunal recorrido, embora se tenha limitado a remeter para os fundamentos da decisão perante si impugnada, nos termos do n.º 5 do artigo
713º do Código de Processo Civil, conheceu do objecto da apelação interposta pela recorrente, na medida em que lhe negou provimento. Como nessa apelação a recorrente pedia a revogação da sentença recorrida, com o fundamento de que nela se havia procedido a uma errada interpretação do artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976, ao negar provimento à apelação necessariamente o tribunal recorrido aplicou a norma contida neste preceito, numa determinada interpretação. Situação diversa ocorreria se o tribunal recorrido se tivesse abstido de conhecer do objecto do recurso perante ele interposto, designadamente com o fundamento de que a decisão sobre o direito aplicável à fixação da indemnização
à recorrente já havia transitado em julgado. Em tal situação, não poderia efectivamente sustentar-se a aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma reputada inconstitucional, já que essa aplicação apenas teria sido feita na decisão transitada. Não se trata, porém, da situação dos autos. Conclui-se, pois, que o acórdão recorrido aplicou a norma contida no n.º 3 do artigo 36º do Código das Expropriações de 1976, numa determinada interpretação. Acresce, ainda quanto a este ponto, que na sentença impugnada perante o tribunal recorrido (supra, 4.) se tecem algumas considerações sobre os danos a indemnizar nos termos do n.º 3 do artigo 36º do Código das Expropriações de 1976, que de algum modo complementam a interpretação que o primeiro acórdão da Relação fez deste preceito (supra, 3.). Efectivamente, nessa sentença entendeu-se que 'nas despesas relativas à nova instalação se enquadram as resultantes do pagamento de uma nova renda mais elevada', aspecto sobre o qual não havia directamente versado o primeiro acórdão da Relação (tal como, aliás, se reconhece no despacho da 1ª instância de fls. 231, subsequente a este acórdão e anterior àquela sentença: despacho cujo conteúdo, merece a pena lembrar, havia sido criticado pelos próprios recorridos, nas alegações de fls. 323 e seguintes). Assim, ao confirmar esta sentença e remeter para os seus fundamentos, o tribunal recorrido não se limitou a (re)aplicar a doutrina estabelecida no primeiro acórdão da Relação quanto à interpretação a dar ao artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976: aplicou igualmente esta norma num sentido não expressamente tido em conta por esse acórdão. Não é, portanto, e também por este motivo, sustentável o entendimento dos recorridos de que a Relação se teria limitado a aceitar a interpretação acolhida numa sua anterior decisão.
9.2. Relativamente à segunda questão prévia levantada pelos recorridos – a de que a questão de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo
36º do Código das Expropriações de 1976, numa determinada interpretação, não teria sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) –, cumpre salientar que o tribunal recorrido, ao aderir aos fundamentos da decisão perante si impugnada (a sentença da primeira instância: supra, 4.), rejeitando assim implicitamente os argumentos posteriormente invocados pela recorrente nas suas alegações de apelação (supra,
5.), necessariamente se pronunciou sobre essa questão de inconstitucionalidade. Com efeito, na sentença da 1ª instância disserta-se sobre a conformidade constitucional de vários preceitos, nomeadamente do constante do n.º 3 do artigo
36º do Código das Expropriações de 1976, à luz do princípio do pagamento de justa indemnização em caso de expropriação por utilidade pública (artigo 62º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), e o acórdão recorrido avoca a inerente fundamentação. Assim sendo, o argumento de que a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada de modo processualmente adequado, porque ao tribunal recorrido estava precludida a apreciação de tal questão, não pode proceder com esse fundamento.
Só que a questão de inconstitucionalidade suscitada 'durante o processo' não corresponde inteiramente àquela que foi delimitada pela recorrente nas alegações apresentadas perante o Tribunal Constitucional.
Na verdade, perante o tribunal recorrido, não foi suscitada a questão de inconstitucionalidade da norma impugnada na interpretação referida na conclusão b) das alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional, segundo a qual a indemnização em caso de expropriação do direito ao arrendamento comercial só pode ter em conta as despesas com a deslocação para outro local, não atendendo 'à natureza e montante da perda do estabelecimento comercial, designadamente a perda de um local de exercício de actividade geradora de proveitos e susceptível de valorização'.
Por outras palavras, nas alegações produzidas junto deste Tribunal, a recorrente alargou o âmbito da questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada. Logo, nesta parte, tem de concluir-se que tal questão não foi suscitada de modo processualmente adequado, isto é, de modo a dar ao tribunal recorrido a oportunidade de sobre ela se pronunciar, e de modo a permitir que o julgamento do Tribunal Constitucional se faça em recurso.
Não pode portanto o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso na parte relativa à eventual inconstitucionalidade da interpretação referida na alínea b) das conclusões das alegações da recorrente, uma vez que essa questão não foi suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido.
9.3. Resta averiguar se estão verificados os pressupostos processuais do recurso interposto relativamente à interpretação referida na conclusão c) das alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional, segundo a qual 'a restrição do n.º 3 do artigo 36º do CE de 1976, de encargos com a nova instalação, na interpretação do douto Acórdão recorrido, acarreta grave disparidade entre expropriados de menores recursos e expropriados de maiores recursos dado que estes podem desde logo fazer face aos encargos de uma instalação que substitua o local cujo arrendamento foi expropriado'.
Esta questão foi efectivamente suscitada perante o tribunal recorrido (cfr. supra, 5., em especial, conclusão g)). Simplesmente, a norma do artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976 não foi aplicada pelo tribunal recorrido com esse sentido reputado inconstitucional pela recorrente.
Na verdade, resulta do teor das alegações que a recorrente produziu perante o tribunal recorrido (supra, 5.) que a situação configurada e os danos invocados são meramente hipotéticos: assim, danos que a recorrente – ou um qualquer locatário – sofreria caso não pudesse fazer face a uma renda comercial de valores actuais e se visse forçado à venda ambulante; danos que sofreria se não tivesse podido fazer face à transferência para outro local; danos que sofreria caso tivesse optado pela compra de um local para sua instalação.
Ora, não foi esta a dimensão interpretativa considerada nos autos. Basta recordar os termos da sentença do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (7º Juízo), de 9 de Junho de 1995 (supra, 4.) – confirmada pelo acórdão aqui recorrido –, onde se decidiu que: 'a arrendatária transferiu-se para uma loja por si já arrendada e situada na mesma rua da cidade de Lisboa. Por isso, a arrendatária não tem direito a ser indemnizada por uma despesa que, efectivamente, não fez em resultado da expropriação'.
Não pode portanto o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso na parte relativa à eventual inconstitucionalidade da interpretação referida na alínea c) das conclusões das alegações da recorrente, uma vez que na decisão recorrida não foi atribuído à norma impugnada nos autos – a norma do artigo 36º, n.º 3, do Código das Expropriações de 1976 – o sentido reputado inconstitucional pela recorrente.
III
10. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 24 de Outubro de 2000- Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa