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Processo n.º 721/99
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. O Ministério Público deduziu acusação contra Ad... imputando-lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelas disposições conjugadas dos artigos 11º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na sua redacção originária, e 314º, alínea c), do Código Penal de 1982, e, actualmente, pelo artigo 11º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro. O arguido, notificado da acusação, veio a fls. 8 a 12 dos autos suscitar a questão da prescrição do procedimento criminal. Por despacho de 14 de Junho de 1999, o juiz do processo considerou, entre o mais, 'manifesto que não decorreu o prazo de prescrição aplicável'. Na parte em que não julgou extinto o procedimento criminal por prescrição, o arguido interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o mesmo recurso vindo a ser recebido, por despacho de 12 de Julho do mesmo ano,
'com subida diferida, nos próprios autos, juntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa, e efeito meramente devolutivo (art.ºs
399º, 401º, 406º, 407º, n.º 3, 408º e 411º, n.º 1 do C. P. Penal).'
2. O recorrente reclamou então deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela subida imediata do recurso admitido e sustentando que, se o recurso subisse imediatamente se daria satisfação aos princípios da celeridade e da economia processual, a que alegadamente não faria obstáculo o disposto no artigo 407º do Código de Processo Penal. Finalmente, para a hipótese de assim não se entender, sustentou o arguido que a retenção do recurso o tornaria absolutamente inútil, nos termos do artigo 407º, n.º 2 do referido Código, para além de que outro entendimento seria inconstitucional, por violação da 2ª parte do n.º 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. A reclamação apresentada veio a ser indeferida pelo Presidente da Relação de Lisboa em despacho de 19 de Outubro de 1999, com o fundamento em que
'a retenção do recurso não impede que, portanto, o ora reclamante venha a obter o resultado útil do recurso: a revogação do despacho recorrido, com as suas legais consequências.' Pelo que:
'não se verifica in casu uma situação de absoluta inutilização do recurso, em consequência da sua retenção, que faça aplicar o disposto no art.º 407º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal.' No que concerne à invocada inconstitucionalidade da interpretação dada à norma do artigo 407º do Código de Processo Penal, escreveu-se nesse despacho que:
'é a retenção do recurso até final que favorecerá a concretização de que o julgamento atinja o termo normal, que dada a fase processual em que está o processo principal, é atingível através da sentença final'. E concluiu:
'não se vê que a retenção do recurso até à interposição do recurso da decisão final viole aquela norma constitucional.'
3. Deste despacho interpôs o arguido Ad... recurso de constitucionalidade para este Tribunal, concluindo o respectivo requerimento do seguinte modo:
'1) O artigo 407º do Código de Processo Penal na interpretação que lhe deu o despacho recorrido, é inconstitucional.
2) Pois o recurso deve ter subida imediata, uma vez que o que está em causa é a prescrição do procedimento criminal e, portanto, o arquivamento do processo.
3) Assim, só com a subida imediata do recurso se satisfaz a exigência constitucional contida na última parte do citado artigo 32º de que o arguido deve ser julgado no mais curto espaço possível.
4) E é evidente que a constituição, ao dizer que o arguido deve ser julgado no mais curto espaço de tempo quer referir-se tanto ao julgamento final como ao julgamento de qualquer questão incidental em que seja posto em causa o arquivamento do processo, não havendo razão para distinguir, sendo o mesmo o efeito num caso e noutro.' Em resposta ao despacho do relator proferido ao abrigo do n.º 5 do artigo 75º- A da Lei do Tribunal Constitucional, veio o recorrente indicar a alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional como a alínea ao abrigo da qual o recurso vinha interposto e o n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Penal como norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada:
'pois que o recurso de decisão que declare não extinto o procedimento criminal com fundamento na prescrição e que, portanto, não ponha termo ao processo com esse fundamento ou outro susceptível também de conduzir à extinção do procedimento criminal tem que ter subida imediata ainda que em separado e não diferida, no cumprimento do artigo 32º da constituição segundo o qual o arguido deve ser julgado no mais curto espaço compatível com a defesa.'
4. Produzidas as respectivas alegações neste Tribunal, concluiu o recorrente que:
'O artigo 407º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ao não abarcar na sua previsão também os recursos interpostos de decisões que neguem ou não declarem a extinção do procedimento criminal com base na prescrição ou em qualquer outra circunstância susceptível de conduzir ao arquivamento do processo, não satisfaz a exigência constitucional contida no artigo 32º da Constituição sendo assim inconstitucional.' O Procurador-Geral adjunto em exercício neste Tribunal apresentou contra-alegações e aí formulou as seguintes conclusões:
'1 – Não é inconstitucional, pois não viola qualquer princípio ou preceito da Lei Fundamental, a norma constante do n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Penal, interpretada em termos de só deverem subir imediatamente os recursos aí expressamente previstos, não estando abarcado em tal tipologia taxativa o recurso interposto da decisão interlocutória que haja considerado não se verificar a prescrição do procedimento criminal, invocada pelo arguido antes do julgamento em 1ª instância.
2 – Na verdade, a apreciação a final de tal recurso, nos termos do n.º 3 daquele preceito, mantém plena utilidade para o arguido que, porventura, houvesse sido julgado e condenado, já que a respectiva procedência ditaria a retroactiva anulação de todos os actos processuais subsequentes, incompatíveis com a extinção do procedimento criminal.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. O n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Penal regula o momento da subida dos recursos interpostos de decisões em processo penal, dispondo que
'1. Sobem imediatamente os recursos interpostos: a) De decisões que ponham termo à causa; b) De decisões posteriores às referidas na alínea anterior; c) De decisões que apliquem ou mantenham medidas de coacção ou de garantia patrimonial, nos termos deste Código; d) De decisões que condenem no pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código; e) De despacho em que o juiz não reconhecer impedimento contra si deduzido; f) De despacho que recusar ao Ministério Público legitimidade para a prossecução do processo; g) De despacho que não admitir a constituição de assistente ou a intervenção de parte civil; h) De despacho que indeferir o requerimento para a abertura de instrução; i) Da decisão instrutória, sem prejuízo do disposto no artigo 310.º; j) De despacho que indeferir requerimento de submissão de arguido suspeito de anomalia mental à perícia respectiva'. Nas alegações do presente recurso, questiona-se a constitucionalidade desta norma, interpretada no sentido de 'não abarcar na sua previsão também os recursos interpostos de decisões que neguem ou não declarem a extinção do procedimento criminal com base na prescrição ou em qualquer outra circunstância susceptível de conduzir ao arquivamento do processo', designadamente por, segundo pretende o recorrente, tal dimensão interpretativa violar o artigo 32º da Constituição. Todavia, na verdade, no presente recurso está apenas em causa a extinção do procedimento criminal por prescrição, tendo, aliás, sido apenas nesta dimensão que a norma foi aplicada na decisão recorrida.
6. A questão da constitucionalidade do n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Penal não foi ainda objecto de decisão pelo Tribunal Constitucional, muito embora a conformidade constitucional do seu n.º 2 (segundo o qual 'sobem ainda imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis.') tenha sido por diversas vezes apreciada por este Tribunal. Foi-o, primeiro, no Acórdão 474/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Novembro de 1994), e, depois, nos Acórdãos n.ºs 964/96, 1205/96
(publicados no Diário da República, II Série, de 23 de Dezembro de 1996 e 14 de Fevereiro de 1997, respectivamente), 244/94, 551/98 e 68/00 (ainda inéditos). Ora, é a conjugação de ambos os citados números do artigo 407º do Código de Processo Penal que delimita os recursos que, em processo penal, sobem imediatamente: no n.º 1 elencam-se situações típicas (e taxativas) de recursos com subida imediata; no n.º 2 prevê-se uma cláusula geral que acresce àquelas. Nos casos decididos pelos acórdãos citados, as situações em causa não se encontravam previstas, segundo a interpretação das decisões recorridas, na norma de enumeração – o n.º 1 –, nem foram consideradas incluídas na cláusula geral, sendo esta dimensão interpretativa reportada ao n.º 2 do artigo 407º que era tida por inconstitucional. No caso dos presentes autos, a situação – tal como a configurou a decisão de que se pretendeu recorrer – não se encontra elencada na norma do n.º 1, sendo logo por isso que o recorrente se considera tal norma inconstitucional, com dispensa da sua eventual cobertura pela norma do n.º 2 (a qual, de resto, foi expressamente afastada pela decisão recorrida). Acresce que, além de a norma sindicada não ser a mesma, o sentido tido como inconstitucional – referente à não subida imediata do 'recurso de decisão que declare não extinto o procedimento criminal com fundamento na prescrição' – também não encontra precedente em nenhum dos casos referidos.
7. Esta conclusão não significa, todavia, que os fundamentos subjacentes à jurisprudência deste Tribunal relativa à constitucionalidade do referido n.º 2 do artigo 407– e, também, à relativa ao artigo 734º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em que se baseou (cfr., vg., o Acórdão n.º 208/93, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1993) – não sejam, em grande medida, transponíveis para o presente caso. Assim, para concluir que não existe violação do princípio das garantias de defesa, escreveu-se no citado Acórdão n.º 474/94:
'(...) Em matéria de direito penal, a Constituição garante aos arguidos que o processo penal lhes assegura 'todas as garantias de defesa', ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa é o direito de recorrer
(cfr. Acórdão n.º 8/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pág.
229), precisando todavia a jurisprudência do Tribunal que, ressalvado o 'núcleo essencial' do direito de defesa centrado no direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser admitido relativamente a certos actos do juiz (vg., despacho que designa dia para julgamento em processo correccional – acórdão n.º 31/87, (ibidem, pág.
463), nem garantir um triplo grau de jurisdição (acórdão n.º 178/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., pág. 569). No caso em apreço, o direito de recurso está garantido, na medida em que o recurso foi admitido. Toda a questão resulta, porém, do facto de que, admitido embora o recurso, como o não foi para subir imediatamente não suspende o andamento do processo, que continuará os seus termos normais, já que o recurso apenas será apreciado quando subir e for apreciado o recurso que vier a ser interposto da decisão final. A subida diferida dos recursos assenta claramente numa exigência de celeridade processual – como bem refere, nas suas alegações, o Procurador-Geral Adjunto – que em processo penal é um 'valor constitucionalmente relevante.' Assim, fazendo a lei processual penal subir imediatamente apenas os recursos cuja utilidade se perderia em absoluto se a subida fosse diferida, obvia-se a que a tramitação normal do processo seja afectada por constantes envios do processo à segunda instância para apreciação de decisões interlocutórias e, por outro lado, pode vir a evitar-se o conhecimento de muitos destes recursos que podem ficar prejudicados no seu conhecimento pelo sentido da decisão final.
É certo que o provimento de um recurso deste tipo leva à inutilização dos actos processuais que forem praticados após a sua interposição e que esteja na dependência do acto ou despacho recorrido. Importa aqui, porém, acentuar que o regime de subida diferida em nada diminui as garantias de defesa do arguido que, face ao provimento do recurso, sempre verá a sua posição ser reconhecida jurisdicionalmente'. No mesmo aresto afastou-se, também, a possibilidade de a norma impugnada contrariar o princípio da presunção de inocência do arguido, a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, o princípio do acusatório e do contraditório e o princípio da igualdade. Ora, também no presente caso – em que está em causa um recurso interposto de uma decisão que negou ou não declarou a extinção do procedimento criminal com base na prescrição – pode dizer-se não ser 'absolutamente inútil' o recurso interlocutório, se eventualmente provido a final, pois que, a suceder assim, se teriam de eliminar do processado, quer a decisão julgada inválida, quer os actos dele dependentes. Tal recurso mantém, pois, utilidade, mesmo subindo apenas a final. Foi, aliás, por se considerar o caso dos autos como exterior à previsão do n.º 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal que se pôde circunscrever a questão de constitucionalidade à sua não previsão no n.º 1 do mesmo artigo.
8. Convém salientar que a excepção de prescrição deve ainda ser apreciada na subsequente fase processual, nos termos do artigo 338º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Para além disso, nota-se que o interesse digno de tutela, que justificaria o conhecimento imediato do recurso sobre a decisão da prescrição, antes do julgamento (onde essa prescrição será também reapreciada, como se disse), seria, nomeadamente, o de evitar que o arguido fosse submetido a julgamento, se, eventualmente, se viesse a considerar que o procedimento criminal estava prescrito. Está, pois, em causa saber se a continuação do processo sem subida e decisão imediata do recurso da decisão que indeferiu a requerida prescrição do procedimento criminal – e designadamente com a submissão do arguido a julgamento
– importa violação das garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas. Recorde-se que a Constituição não impõe, como já reconheceu este Tribunal, uma exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a presumível condenação do arguido, como decorrente de um hipotético direito deste de não ser submetido a julgamento. Como se escreveu no Acórdão n.º 31/87, publicado no Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987,
'(...) a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação.' Ora, o mesmo pode e deve dizer-se da imediata reapreciação de decisão sobre a existência de uma causa extintiva do procedimento criminal como a prescrição, quando tal existência foi já verificada, e negada, pelo juiz. É certo que este, quando indefere a requerida prescrição do procedimento criminal, pode eventualmente ter ajuizado mal sobre a verificação ou não dos respectivos pressupostos no caso concreto, prosseguindo o processo e efectuando-se o julgamento, nesse caso, num procedimento criminal que poderá já estar extinto, e cuja extinção poderia ser verificada mediante a reapreciação, em recurso com subida imediata, da decisão a ela relativa. Diga-se, antes do mais, que este risco se afigura como inerente à própria ponderação das exigências de celeridade processual, a qual é, também, um valor constitucional, sendo direito do arguido o de ser julgado 'no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa' (cfr. o n.º 2 do artigo 32º da Constituição). Na verdade, um alargamento das situações de recurso com subida imediata terá sempre como efeito a diminuição da celeridade processual, pelo que tal invocada celeridade não se afigura como argumento a favor do alargamento da norma do artigo 407º, n.º 1, do Código de Processo Penal – conforme pretende o recorrente –, mas antes como um dos fundamentos da natureza taxativa do seu n.º
1 (temperada embora pelo seu n.º 2). Acresce que, como se disse, a prescrição do procedimento pode e deve ser reapreciada no início da audiência (cfr. o artigo 338º, n.º 1 do Código de Processo Penal), sendo tal possibilidade de apreciação da prescrição como que
'renovada', antes da subida do recurso que terá lugar – se então ainda se justificar – no momento da subida do recurso da decisão final (artigo 407º, n.º
3 do Código de Processo Penal), e vindo a reapreciação ainda a verificar-se no recurso, quando este subir. Pode, assim, concluir-se que a interpretação do artigo 407º que só permite a subida imediata nos casos expressamente previstos no seu n.º 1 (e também nos que correspondem à previsão do seu n.º 2), não se encontrando entre eles o do recurso de decisão que indefira o pedido de extinção do procedimento criminal com fundamento na prescrição, não se afigura contraditória com o princípio constitucional das garantias de defesa do arguido, na parte em que impõe que este deva ser julgado no mais curto prazo possível. E, deste modo, impõe-se concluir pela inexistência de inconstitucionalidade da norma sub iudicio, na interpretação em causa, a qual não viola as garantias de defesa previstas no artigo 32º da Constituição da República. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, condenando o recorrente em custas com 15 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa