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Processo n.º 212/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Em 1998, M. B. propôs acção de despejo contra A.....,Ld.ª, pedindo o despejo do local arrendado – o patamar de entrada do prédio n.º ... da Av. F.... em Coimbra, prédio que adquirira por partilha homologada em 16 de Novembro de 1997 no âmbito de processo de inventário obrigatório – com fundamento em realização de obras não consentidas pelo senhorio. Na 1ª instância a decisão foi desfavorável à autora, tendo a demandada sido absolvida do pedido. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio este, por Acórdão de 25 de Maio de 1999, a revogar a sentença recorrida, decretando a resolução do contrato de arrendamento e o despejo do locado. Requerida pela demandada – e indeferida, por Acórdão de 28 de Setembro de 1999 – a aclaração do anterior acórdão, veio a mesma arguir a nulidade do Acórdão de 25 de Maio de 1999, acrescentando a final que:
'Para além da nulidade invocada, a argumentação expendida pelo acórdão, no que concerne à proibição da instalação de um estabelecimento de café e snack-bar no patamar (independentemente da dimensão deste) de um qualquer prédio viola as disposições constitucionais do n.º 1 do artigo 61º, alínea c) do artigo 80º e n.º 1 do artigo 86º, todos da Constituição da República Portuguesa no que à protecção da liberdade da iniciativa económica e de organização empresarial concerne'. Na mesma ocasião, também imputou a demandada ao Acórdão de 28 de Setembro de
1999 violação 'das garantias constitucionais estabelecidas nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa' por se ter ele limitado 'a uma remissão genérica para os fundamentos de facto e de direito da sentença
(sic) a aclarar'. Por Acórdão de 7 de Dezembro de 1999, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu as arguidas nulidades, considerando, quanto à inconstitucionalidade imputada à decisão precedente, após transcrição do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20º da Constituição, que 'não se vislumbra em que possa ter sido violada esta garantia constitucional, com a remissão genérica para os fundamentos do acórdão, na resposta ao pedido de aclaração', já que 'se o acórdão é claro, nada há a aclarar.' Por outro lado, em relação à inconstitucionalidade imputada à decisão de fundo, por violação do n.º 1 do artigo 61º, da alínea c) do artigo 80º e n.º
1 do artigo 86º da Constituição, considerou que:
'de nenhum ponto do acórdão se pode extrair que a decisão parta do pressuposto de que naquele lugar esteja proibido instalar um estabelecimento de café e snack-bar. Desde que satisfaça os demais requisitos legais, a Ré poderá desenvolver o ramo de actividade que bem entender, desde que respeite também a vontade contratual da outra parte.'
2. Pretendeu a ré então interpor recurso para o Tribunal Constitucional
'ao abrigo das alíneas a) e b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional indicando-se desde já nos termos do n.º 2 do artigo 75º-A do mesmo diploma que a requerente considera que houve violação por parte deste tribunal dos princípios constitucionais consagrados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20º e 202º da constituição na interposição (sic) que faz das alíneas c) e d) do artigo 668º do Cod. de Processo Civil que do n.º 4 do artigo 646º do mesmo código e ainda dos princípios constitucionais da protecção da liberdade de iniciativa económica e de organização empresarial decorrentes das disposições constitucionais combinadas do n.º 1 do artigo 61º, da alínea c) do artigo 80º e do n.º 1 do artigo 86º todos da Constituição da República Portuguesa.' Tal recurso não foi admitido no tribunal a quo, considerando o Desembargador-relator, no seu despacho de 1 de Fevereiro de 2000, que:
'vendo a decisão impugnada, fácil é de constatar que nem foi recusada a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, nem foi suscitada e muito menos aplicada qualquer norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo. O que se passou, pura e simplesmente,
é que a decisão, aplicando e interpretando os normativos que são de aplicar, não acolheu a pretensão da ré. Assim, não se verificando os pressupostos legais, e sendo manifestamente infundado o recurso interposto, indefiro o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado pela ré, nos termos do artigo
76º da dita Lei.'
3. É deste despacho que a ré traz reclamação a este Tribunal, nos seguintes termos:
'A.....,Ld.ª [...] julga assistir-lhe razão no recurso para este Tribunal Constitucional uma vez que considera ter havido violação por parte do Tribunal da Relação dos Princípios constitucionais consagrados nos n.ºs 1 e 4 do art. 20º e 202º da Constituição, na interpretação que faz quer das alíneas c) e d) do art. 668º do Cód. Proc. Civil quer do n.º 4 do art. 646º do mesmo código e ainda dos princípios constitucionais da protecção da liberdade de iniciativa económica e da organização empresarial decorrentes das disposições constitucionais combinadas do n.º 1 do art. 61º da alínea c) do art. 80º e do n.º 1 do art. 86º todos da Constituição da República Portuguesa.' O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, pronunciando-se sobre a reclamação, considerou-a manifestamente infundada, porquanto:
'a) não houve qualquer desaplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, pelo que a invocação da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ‘é ininteligível’; b) não foi suscitada qualquer inconstitucionalidade normativa durante o processo, inviabilizando também o enquadramento do recurso na alínea b) do mesmo normativo; c) não foi explicitado o sentido supostamente inconstitucional das ‘normas processuais civis que regem sobre os incidentes pós-decisórios (art. 668º, 1, c) e d)) e sobre os poderes de cognição do colectivo (artigo 647º, n.º 4)’ '. Cumpre decidir. II. Fundamentos
4. Convém começar por salientar que a recorrente não identificou claramente no requerimento do recurso de constitucionalidade que não foi admitido no tribunal a quo a decisão de que pretendia interpor recurso, limitando a dizer que
'notificado da resposta à arguição de nulidades por si efectuada, pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional'. Tal requerimento foi, porém, interpretado, no despacho sob reclamação, como reportando-se à decisão de 7 de Dezembro de 1999, que continha efectivamente a
'resposta à arguição de nulidades'. Ora, muito embora a ora reclamante pretendesse fundar o seu recurso no disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é manifesto que, não tendo havido qualquer recusa de aplicação de uma qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade nessa decisão (ou em qualquer outra durante o processo – designadamente, nos Acórdãos de 25 de Maio e de 28 de Setembro de 1999), não poderia nunca haver recurso ao abrigo da primeira daquelas alíneas, sendo a sua invocação, conforme refere o Ministério Público,
'ininteligível'.
5. Quanto ao recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, exige ele, como requisitos cumulativos, a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi na decisão recorrida, o esgotamento dos recursos ordinários que cabiam no caso e a suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo. Ora, estes requisitos não se encontram preenchidos no caso. É o que se passa a demonstrar sucintamente para a decisão recorrida, isto é o Acórdão de 7 de Dezembro de 1999.
6. A invocada violação dos artigos 20º, n.ºs 1 e 4, e 202º da Constituição decorreria, segundo a reclamante, da interpretação feita pelo tribunal a quo, na sua decisão de 7 de Dezembro de 1999, das normas das alíneas c) e d) do artigo
668º e n.º 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil. Porque tais normas foram pela primeira vez invocadas nesta decisão, poderia eventualmente concluir-se que a sua impugnação no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que se lhe seguiu, era tempestiva, ultrapassando-se ambos os impedimentos ao conhecimento do recurso interposto da decisão de 25 de Maio de 1999 que antes se referiram. Porém, seria ainda necessário que o sentido ou dimensão normativa das normas tidas como inconstitucionais tivesse sido explicitado
'de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores de direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição' (Acórdão n.º 367/94, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994). Ou, como se salientou no Acórdão n.º 178/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995):
'[...] tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível [...], impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver que reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental.' Não tendo a interpretação das alíneas c) e d) do artigo 668 e n.º 4 do artigo
646º do Código de Processo Civil pretendida impugnar pela recorrente sido identificada por esta, como deveria ter sido (antes apenas remetendo para a decisão que as aplica), não se poderia, pois, também em relação a tais normas, conhecer do recurso de constitucionalidade.
7. Pode, aliás, acrescentar-se que os requisitos do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional não se verificam, também, em relação à decisão de mérito, proferida pelo Acórdão de 25 de Maio de
1999). A invocada violação dos princípios constitucionais da protecção da liberdade de iniciativa económica e de organização empresarial foi sempre imputada pela reclamante à intervenção do Tribunal da Relação de Coimbra (vejam-se as passagens transcritas da arguição de nulidade, do requerimento de interposição do recurso e da reclamação) e não a uma qualquer norma. Ora, como é sabido, 'no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas' (cfr. vg. Acórdãos n.ºs 388/87, 177/91 e 269/94, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 15 de Dezembro de 1987, de
7 de Setembro de 1991 e de 18 de Junho de 1994). Por outro lado, além de se não ter suscitado uma questão de constitucionalidade normativa, nem sequer se suscitou esta inconstitucionalidade (da própria decisão) durante o processo, é dizer, em tempo, e em termos, de o tribunal recorrido poder pronunciar-se sobre tal questão (cfr. Acórdãos n.ºs 62/85,
450/87 e 94/88, publicados no Diário da República, II Série, de 31 de Maio de
1995 – o primeiro – e de 22 de Agosto de 1988 – os dois últimos) o que, também, só por si, já inviabilizaria o conhecimento do recurso.
8. Ou seja, e em síntese: a. O recurso que se pretendeu interpor ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional não fazia sentido, no caso, por não se ter recusado a aplicação de nenhuma norma com fundamento em inconstitucionalidade ou qualquer outro. Não estando preenchidos os seus requisitos não poderia ser admitido, como não foi. b. No recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Dezembro de 1999, igualmente ao abrigo da alínea b) da mesma disposição, a inconstitucionalidade 'não foi suscitada de forma clara e perceptível' – ou seja não o foi 'em termos processualmente adequados' por não terem sido 'indicados os sentidos dos preceitos' tidos por inconstitucionais (para retomar as expressões empregues na síntese final do Acórdão n.º 178/95, já citado). A presente reclamação tem, pois, de ser indeferida. III. Decisão Com estes fundamentos, indefere-se a reclamação apresentada e, em consequência, condena-se o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 21 de Junho de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa