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Procº nº 17/2000
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Em 10 de Janeiro de 2000 o Presidente da Câmara Municipal de Barrancos enviou a este Tribunal ofício no qual requeria a apreciação da constitucionalidade e legalidade de uma consulta local à população de Barrancos e a coberto do qual, para o que ora releva, juntava uma certidão comprovativa de uma deliberação, tomada pela Assembleia Municipal daquele Município e por unanimidade em 7 de Janeiro de 2000, deliberação essa denominada 'PROPOSTA DE CONSULTA LOCAL SOBRE AS TOURADAS TRADICIONAIS DE BARRANCOS', na qual se aprovara uma proposta, levada a efeito pela Câmara Municipal do aludido concelho, que também se encontra certificada, tomada em 27 de Dezembro de 1999 e igualmente por unanimidade, visando a efectivação de uma consulta local subordinada às perguntas que a seguir se transcrevem, a cada uma sendo apostas as locuções
'SIM' e 'NÃO'.
Tais perguntas são do seguinte teor:-
'Concorda que continuem a realizar-se as Festas de Agosto na sua integralidade, tal como é tradição, sem qualquer excepção?'
'Concorda que se requeira a inconstitucionalidade por omissão ao Tribunal Constitucional através do Presidente da República, a fim de legalizar-se a morte dos touros no quadro das Festas de Agosto?'
'Concorda que se requeira a fiscalização abstracta da constitucionalidade do Decreto nº 15355 que proíbe os touros de morte, sem excepção, ao Tribunal Constitucional, através do Presidente da República, do Procurador Geral da República ou de 1/10 dos deputados à Assembleia da República?'
Igualmente o indicado ofício capeava uma fotocópia certificada de um edital, subscrito pelo Presidente da Assembleia Municipal de Barrancos e datado de 28 de Dezembro de 1999, convocando aquela Assembleia para uma reunião extraordinária, a ter lugar em 7 de Janeiro de 2000 e com um ponto único da
«ordem de trabalhos», qual fosse a tomada de uma deliberação 'SOBRE A REALIZAÇÃO DE UMA CONSULTA LOCAL SOBRE AS TOURADAS TRADICIONAIS DE BARRANCOS'.
2. Por despacho proferido em 13 de Janeiro de 2000 pelo Vice-Presidente deste Tribunal e ao abrigo do nº 2 do artº 12º da Lei nº 49/90, de 24 de Agosto, foi determinada a notificação do Presidente da Assembleia Municipal de Barrancos para sanar a irregularidade consistente em, atento o disposto no nº 1 do artº 11º daquela Lei, o pedido ter sido efectuado, não pelo notificando, mas sim pelo Presidente da Câmara Municipal daquele concelho.
Na sequência desse despacho, o Presidente da Assembleia Municipal de Barrancos enviou a este órgão de administração de justiça um ofício, datado de
17 dos mesmos mês e ano, por intermédio do qual solicitava a verificação da constitucionalidade e legalidade da consulta em causa.
Tendo os autos sido distribuídos, cumpre tomar decisão.
II
1. De harmonia com o prescrito nos artigos 1º, 2º, nº 2, 3º, nº 1,
6º, números 1 e 2, 8º, alínea a), 9º, nº 1, 10º e 11º, todos da Lei nº 49/90, uma assembleia municipal pode deliberar, com pluralidade de votos e no prazo de quinze dias a contar da recepção de proposta formulada pelo órgão executivo dessa autarquia, a realização de consulta directa aos cidadãos a nível do município, proposta que deve conter as perguntas, num máximo de três, a submeter a tais cidadãos, desde que a respectiva matéria não incida sobre questões financeiras nem quaisquer outras que, nos termos da lei, devam ser resolvidas vinculadamente pelos órgãos autárquicos ou que já tenham sido objecto de decisão irrevogável, sendo que, no prazo de oito dias a contar da deliberação, o presidente dessa assembleia deve enviar ao Tribunal Constitucional requerimento de apreciação da constitucionalidade e legalidade da consulta, acompanhado do texto da deliberação e da cópia da acta da sessão em que tiver sido tomada.
Face a tais prescrições, e ponderando o relato acima efectuado, não se suscitam dúvidas de que os vertentes autos não apresentam agora irregularidades de índole processual.
2. Impõe-se, por isso, aferir ponderada e circunstanciadamente, sobre as perguntas ínsitas na consulta cuja apreciação é pedida a este Tribunal, iniciando essa aferição pela primeira delas cujo teor, como se transcreveu, é:
'Concorda que continuem a realizar-se as Festas de Agosto na sua integralidade, tal como é tradição, sem qualquer excepção?'.
Em face desse teor, tomado este numa perspectiva de primo conspectu, poder-se-á, num primeiro momento, aceitar que a mesma se insere em matéria da competência dos órgãos autárquicos (e, por ora, sem se entrar na questão de saber se, acerca do estatuído no nº 1 do artº 2º da Lei nº 49/90, se imporá uma
«interpretação corrigida», ponderando o que se dispõe no nº 1 do artigo 240º da Constituição, na versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, que, reportadamente à versão da Lei Fundamental que emergiu da Revisão Constitucional de 1982, deixou de conter o vocábulo exclusiva que se surpreendia, no tocante à competência de tais órgãos para os efeitos de efectivação de consultas directas aos cidadãos eleitores, na correspondente norma ínsita no nº 3 do artigo 243º).
Na verdade, os municípios dispõem de atribuições no domínio do património e cultura [cfr. alínea e) do nº 1 do artº 13º da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro] e é incumbência das autarquias locais, quer consideradas qua tale, quer na qualidade de entidades públicas (cfr. artigos 2º, nº 2, e 3º, números 1 e 2, da Lei nº 13/85, de 6 de Julho), promover a salvaguarda, protecção, valorização, divulgação e fruição do património cultural do povo português, cabendo-lhes ainda apoiar ou comparticipar no apoio a actividades de interesse municipal, de natureza social, cultural e recreativa [alínea b) do nº 4 do artº
64º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro] e licenciar e fiscaliza recintos de espectáculos [alínea a) do nº 2 do artº 21º da Lei nº 159/99].
E, neste particular, curial é, também, chamar à colação para o que se encontra prescrito no nº 2 do artigo 235º da Constituição, que atribui às autarquias locais a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (a esse propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 882, perfilham o entendimento de que esses interesses 'radicam nas comunidades locais, enquanto tais, isto é, que são comuns nos residentes, e que se diferenciam dos interesses da comunidade nacional e dos interesses próprios das restantes comunidades locais'), princípio que teve consagração, desde logo, no nº 1 do artº 2º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, diploma hoje revogado pela Lei nº 169/99.
2.1. Cumpre, desde logo, sublinhar que este Tribunal não pode escamotear que o desiderato do órgão promotor da consulta e do órgão ora requerente (e - para além de ser uma questão de que tanto relevo tem sido dado, designadamente nos órgãos de comunicação social e em iniciativas legislativas tomadas em sede parlamentar, como resulta dos Projectos de Lei números 8/VIII,
26/VIII, 29/VIII e 41/VIII, rejeitados na generalidade pela Assembleia da República na sua sessão plenária de 22 de Dezembro de 1999, como se extrai do Diário da Assembleia da República, 1ª Série, de 23 de Dezembro de 1999 -, quanto mais não fosse, tendo em conta as duas restantes perguntas e o próprio epíteto que foi dado à deliberação de que emanou o pedido sub iudicio) é, justamente, o de nas denominadas «Festas de Agosto», uma das suas componentes, quiçá lúdicas, ser a realização de denominadas «touradas», nas quais se realiza a também denominada «sorte de morte».
Por outro lado, e como é facto do conhecimento geral e, por isso, não carecido de demonstração, nas indicadas «Festas de Agosto» compreendem-se muitos outros eventos que se encontram arreigados, como valores materiais e imateriais, nas tradições e costumes da população barranquenha e que, por isso e para além do mais, se podem inquestionavelmente, considerar como manifestações de uma identidade cultural dessa parcela do povo português.
Não se sabe, nem isso é minimamente demonstrado pelo órgão requerente, se existe, ainda que por mera tradição, um «programa festivo» do qual decorra uma enunciação de todos os eventos festivos e de que nunca estaria arredada a realização das «touradas» com «sorte de morte».
Aceitando, porém, a existência, ainda que só tradicional, desse programa e no que respeita àquele último evento, poder-se-ia colocar a questão de saber se a primeira pergunta de que ora se cura, tal como formulada está, se não apresenta como pouco clara e precisa (cfr. artigo 115º, nº 6, primeira parte, da Constituição e o Acórdão deste Tribunal nº 398/99, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 11 de Outubro de 1999, de onde decorre a aplicação daquele comando às consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local; cfr., ainda, o Acórdão deste Tribunal nº 288/98, publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 18 de Abril de 1998, onde se afirma que a clareza da pergunta necessariamente se há-de conexionar com a sua precisão e objectividade). É que - dir-se-ia - quem estivesse de acordo com a realização das «Festas de Agosto» com todos os eventos que tradicionalmente as integram, com excepção das «touradas» com «sorte de morte», poderia, ou ser levado a responder afirmativamente à pergunta em apreço, se se convencesse que a continuação da realização dessas «Festas» não implicava a componente das
«touradas», ou, reversamente, responder de modo negativo, caso entendesse que aquela realização tinha uma tal implicação.
Não se perguntaria, assim, se, acaso não fossem realizadas
«touradas» com «sorte de morte», as «Festas de Agosto» deixariam de se efectuar.
Isso significava, de um lado, que, com tal formulação, e ainda que o resultado do sufrágio fosse maioritariamente pela resposta negativa, não resultava que as «Festas de Agosto» se não realizassem com os demais eventos que as compõem, exceptuada a realização das «touradas» com «sorte de morte».
Mas, de outro, e ainda na hipótese de o resultado ser maioritariamente negativo, é certo que também dele não decorria, com força vinculativa para os órgãos autárquicos, a impossibilidade de realizarem, promoverem ou licenciarem as «Festas de Agosto», sem algum dos seus eventos (que tradicionalmente têm tido lugar), mas continuando um deles a ser justamente o da realização das «touradas» com «sorte de morte».
Neste circunstancionalismo, e para além do que se veio de referir, poder-se-ia sustentar que, tal como formulada está, a pergunta em causa escamoteia ou faz um «encapotamento» da finalidade que nela se contém, ou seja, questionar, e só, se concorda se, aquando da realização das «Festas de Agosto», se continuem a efectuar «touradas» com «sorte de morte».
Por esse motivo, a pergunta em questão, dado o que acarreta implicitamente sem, porém, o explicitar de modo devido, revestir-se-ia de equivocidade e, ao permitir que houvesse 'a mera possibilidade de se atribuir mais do que um sentido', isso denotaria 'o seu carácter equívoco e a consequente falta de clareza' (utilizaram-se as palavras do Acórdão nº 531/98, publicado na
1ª Série-A do Diário da República de 30 de Julho de 1998).
Nesta postura, poder-se-ia, pois, sustentar que tal pergunta enfermaria de contraditoriedade com o que se encontra estatuído no nº 1 do artº
7º da Lei nº 49/90.
2.1.2. Não se olvida, porém, que poderá haver quem convenha que o que se questiona é se se concorda na continuidade da realização das «Festas de Agosto», tal como tradicionalmente vêm a ter lugar, e sem se excepcionar qualquer um dos seus eventos ou componentes. E - pelo menos num actual contexto temporal que nem sequer se pode considerar recente -, que um desses eventos é a realização de «touradas» com «sorte de morte», é algo de que se não duvida e que
- o que é mais importante ainda - a população a que a intentada consulta local se dirige seguramente não desconhece.
E, para quem tenha esta visão das coisas, não se divisaria falta de clareza, precisão ou equivocidade da primeira pergunta, pois que se fundaria na consideração de que as circunstâncias concretas que levaram à proposta de consulta local e do universo eleitoral a quem essa consulta se destina não podiam deixar de apontar para que a sua interpretação deveria ser a de que o respectivo desiderato era o da realização das «Festas de Agosto» com o evento das «touradas» com «sorte de morte», o que até resultaria da conexão com as duas outras perguntas.
2.1.2.1. Mas, mesmo para quem partilhe desta última óptica, de todo o modo a pergunta não se revela legalmente admissível.
De facto, atenta a circunstância de a este Tribunal estar cometida a competência para apreciação da legalidade das consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local, mister é saber se a pergunta em apreço respeita tais requisitos.
Vejamos.
Por decreto de 19 de Setembro de 1836 foi proibida a realização das
«touradas», diploma que, menos de um ano decorrido, veio a ser revogado pela Lei de 30 de Junho de 1837.
Durante a vigência desta Lei, e como dá notícia o preâmbulo do Decreto nº 15.355, de 11 de Abril de 1928, 'algumas vezes, a despeito da vigilância das autoridades competentes', assistiu-se à realização de «touradas» com «sorte de morte», o que motivou a proibição destas últimas pela Portaria nº
2.700, de 6 de Abril de 1921. Ainda de acordo com a «exposição de motivos» constante do assinalado preâmbulo do Decreto nº 15.335, continuando-se a assistir a comportamentos violadores dessa proibição que, na óptica do legislador de então, se impunha acentuadamente sancionar, foi editado tal Decreto que, no seu artigo 1º - corpo -, estabeleceu a proibição absoluta, em todo o território nacional, das touradas com touros de morte, quer quando realizadas nas praças a esse fim destinadas, quer em qualquer outro recinto para esse fim improvisado, cominando diversas penalidades para o proprietário dos touros ou novilhos (nº 1º e também nº 4 do § único daquele artigo 1º), para os empresários da «praça» onde se realizar a «corrida» (nº 2º do dito § único) e para os «matadores» (nº 3º do mesmo § único).
A proibição ditada, ao menos pelo Decreto nº 15.355, tem perdurado ao longo de mais de sete décadas, da mesma nunca o legislador tendo excluído qualquer parcela (ou quaisquer parcelas) do território mesmo que consabidamente nelas tenha perdurado uma cultura específica derivada de variados factores e no seio da qual (ou das quais) não será de considerar a realização de «touradas» com «sorte de morte» como uma forma de manifestação de um 'divertimento bárbaro', criador de hábitos de 'crime' e de 'ferocidade' (que foram as expressões ideográficas utilizadas pelo legislador de 1836 para determinar a proibição das «touradas»).
Trata-se, assim, de uma lei penal de conteúdo geral e abstracto, em vigor para todo o território e cuja «bondade» não poderá agora ser sindicada por este Tribunal.
2.1.2.2. Ora, se porventura se afigurasse como possível a formulação de uma pergunta de onde decorresse a vinculação do órgão autárquico a promover, em representação da comunidade barranquenha, determinada actuação com vista a que o competente órgão legislativo viesse a proceder, quer à revogação da lei proibitiva das «touradas» com «sorte de morte», quer à sua modificação ou alteração, por forma a excluir essa proibição em determinadas comunidades locais, atenta as respectivas tradição e cultura, outrotanto já não sucede quando aquela vinculação implique, ou a própria realização de um acto que, pelo ordenamento jurídico vigente, é proibido e considerado sancionável criminalmente, ou que esse órgão promova ou licencie tal realização.
E, de igual modo, outrotanto não ocorre quando, por intermédio da consulta popular, se pretende, consoante o resultado do sufrágio, alcançar para o universo concreto onde essa consulta ocorre, uma fractura do ordenamento jurídico vigente.
Na verdade, a proibição ditada pelo Decreto nº 15.355, tal como existe, vincula, aliás, qualquer órgão autárquico nacional a não realizar, promover ou licenciar «touradas» com «sorte de morte», sabido como é que constitui princípio fundamental da Administração Pública a subordinação dos respectivos órgãos e agentes à lei (cfr. nº 2 do artigo 266º da Constituição; cfr., ainda, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 921, para quem, desde que os preceitos individualmente considerados não especifiquem o âmbito de aplicação, os princípios consagrados no Título IX da Lei Fundamental, porque
'têm um conteúdo institucional geral', são extensivos a todas as formas de administração pública, assim se abrangendo a administração local).
Em face de uma tal vinculação - e admitindo, como se disse acima, que a real questão que encera a primeira pergunta, tendo em atenção o universo eleitoral a que se destina, é, pelo mesmo, facilmente atingível e, consequentemente, a deve considerar clara, perceptível e inequívoca - nunca poderão os órgãos autárquicos, pela via referendária desejada com tal pergunta, ficar adstritos à realização, promoção ou licenciamento de um evento que é proibido pelo ordenamento jurídico vigente.
Proibição essa, aliás, que não poderia alguma vez fundar um desrespeito da lei por um órgão autárquico, pois que se não antolha como patentemente contrária à Constituição, designadamente não sendo ofensiva de direitos, liberdades e garantias fundamentais.
E, de outra banda, essa proibição não é passível de um juízo de abrogação pela vinculação externa de Portugal ao Tratado da União Europeia - que, no seu actual artº 151º (anterior artº 128º), dispõe, para o que ora interessa, nos seus números 1 e 4, respectivamente, que a Comunidade contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional, e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum e que na sua acção ao abrigo de outras disposições do presente Tratado, a comunidade terá em conta os aspectos culturais, a fim de, nomeadamente, respeitar e promover a diversidade de culturas-, nem pelo Protocolo nº 33 anexo àquele Tratado, intitulado «Protocolo relativo à protecção e ao bem-estar dos animais» (publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C340, de 11 de Novembro de 1997) - por claramente outro ser o seu sentido - , no qual as Partes Contratantes, tendo em vista a garantia de 'uma protecção reforçada e um maior respeito pelo bem-estar dos animais, enquanto seres dotados de sensibilidade', acordaram em que '[n]a definição e aplicação das políticas comunitárias nos domínios da agricultura, dos transportes, do mercado interno e da investigação, a Comunidade e os Estados-Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados-Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional (cfr., neste particular, Jean-Michel Lattes, em À la recherce d’un statut juridique des toreros et quadrillas. Le Droit Européen, Aliié ou Ennemi?, publicado nos Annales de l’Université des Sciences Sociales, tomo XLV, Toulouse, 1997)
2.1.2.3. Refira-se ainda que, à míngua de elementos concretos, não poderá o Tribunal, de forma inequívoca, asseverar que a realização de «touradas» com «sorte de morte» no concelho de Barrancos representa um nítido costume local constitutivo de fonte de direito vinculativo para as autoridades (cfr. nota 59 de página 130 da Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 1999, de Inocêncio Galvão Telles), costume esse que implicaria a revogação ou derrogação, naquela comunidade local, da proibição de tais eventos (e isto, obviamente, sem qualquer aprofundamento da difícil questão de saber se os usos e costumes poderão, e mais a mais quando se não está perante qualquer lacuna legal, constituir fonte de direito, nomeadamente para efeitos de revogação de legislação de índole criminal e se, face ao artigo 3º da Constituição, poderia este Tribunal dar atendimento a um tal costume como forma de fonte normativa).
É que, não só se não demonstra a 'clara consciência da respectiva população' quanto à legitimidade e juridicidade da aludida realização, como ainda se não pode omitir que as autoridades estaduais não têm, de todo, assumido, ao menos sistematicamente, uma postura de tolerância quanto à realização, no concelho de Barrancos, das «touradas» com «sorte de morte», o que
é ilustrado, como é sabido, pela insistência de actuações de natureza policial e jurisdicional, designadamente a instauração de processos-crime na comarca cuja competência abarca o concelho de Barrancos.
Pelo exposto, de concluir é - mesmo para quem, nos termos acima referidos, perfilhe a perspectiva de que a primeira pergunta da consulta em análise é clara e inequívoca - que ela se apresenta como ofensiva do nº 2 do artº 2º da Lei nº 49/90 [efectue-se aqui uma nota para dar notícia do que se pretende vir a ser consagrado como matérias que são expressamente excluídas no
âmbito dos referendos locais, nomeadamente a alínea b) do nº 1 do artº 4º da Proposta de Lei nº 8/VIII, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 6 de Janeiro de 2000).
3. Enfrentemos agora a questão referente à segunda pergunta, cujo teor, como se viu, é: 'Concorda que se requeira a inconstitucionalidade por omissão ao Tribunal Constitucional através do Presidente da República, a fim de legalizar-se a morte dos touros no quadro das Festas de Agosto?'.
Do seu teor resulta, numa dada leitura, que se pretende que os cidadãos eleitores do concelho de Barrancos se pronunciem no sentido de solicitarem a este Tribunal a verificação de inconstitucionalidade por omissão, o que fariam por intermédio do Presidente da República.
Nesta leitura, desde logo se poderia suscitar a questão de não estar directamente em causa o exercício do direito político - por parte daqueles cidadãos ou por intermédio de um seu representante - de petição dirigido a um
órgão de soberania, com vista a uma determinada actuação, tendo em conta a defesa de um interesse considerado geral para aquele universo eleitoral (cfr., sobre o direito de petição em geral, a Lei nº 43/90, de 10 de Agosto, alterada pela Lei nº 6/93, de 1 de Março; cfr. também, sobre direito de petição a apresentar por pessoa colectiva, Luís Barbosa Rodrigues, «O Direito de Petição Perante a Assembleia da República», em Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constituição de 1976, Vol. II, 1977, 651 e segs.).
3.1. De outro lado, não será, de todo em todo, admissível uma pergunta da qual resulte, ao fim e ao resto, que o órgão de soberania Presidente da República tenha de actuar como, passem as expressões, um mero «intermediário» de uma vontade alheia, «despojando-o» da adequada ponderação no sentido de requerer ao Tribunal Constitucional que verifique se, numa determinada situação jurídica, se está perante uma omissão ou inacção por parte do Estado, ali onde existe o dever de legislar, quer por comando ou imposição constitucional concretos, quer porque, para se obterem os desejos constitucionais, não existe a adequada, suficiente ou exequível mediação legislativa (cfr. Jorge Miranda, Estudos Sobre a Constituição, I, 1977, «Inconstitucionalidade por omissão»).
Por fim, deve sublinhar-se que, ainda para quem aceite que não é vedado aos órgãos autárquicos a efectivação de um direito político de petição em geral, o que é certo é que o mesmo só por si não pode legitimar que aqueles
órgãos realizem consultas directas aos cidadãos a nível local destinadas a que estes se pronunciem sobre quaisquer perguntas, mormente se estas se não incluem em matéria do âmbito da competência específica autárquica. E, logo por aqui se concluirá pela falta de competência do órgão requerente.
É, desta arte, vedada a formulação da segunda pergunta, porque ofensiva do nº 1 do artº 1º e do nº 1 do artº 7º, ambos da Lei nº 49/90.
4. Incidindo agora a atenção sobre a terceira e última das perguntas
(de harmonia com a qual se interroga se se '[c]oncorda que se requeira a fiscalização abstracta da constitucionalidade do Decreto nº 15355 que proíbe os touros de morte, sem excepção, ao Tribunal Constitucional, através do Presidente da República, do Procurador Geral da República ou de 1/10 dos deputados à Assembleia da República'), haverá que dizer que, mutatis mutandis, o que acima se veio de expor no que concerne à segunda pergunta, tem aqui cabimento e aplicação, pelo que se dispensa o Tribunal de, expressamente, tecer, relativamente a esta terceira pergunta, outras considerações que, ao fim e ao resto, mais não seriam que a reedição das já efectivadas.
E, por consequência, também aqui se haverá de concluir pela violação dos artigos 2º, nº 1, e 7º, nº 1, da Lei nº 49/90.
III
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não ter por verificada a legalidade das perguntas constantes da proposta de consulta directa aos cidadãos eleitores aprovada pela deliberação de 7 de Janeiro de 2000 da Assembleia Municipal de Barrancos. Lisboa, 15 de Fevereiro de 2000 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa