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Procº nº 448/2000.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 3 de Junho de 2000 (fls. 546 a 552 dos autos) lavrou o relator decisão sumária com o seguinte teor:-
'1. P..., veio, juntamente com outros, requerer contra D..., CRL, providência cautelar de arresto, sendo que, após ter sido, pelo Juiz do 3º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e em 30 de Junho de 1999, proferida sentença, foi determinado que, até ao montante de Esc. 10.000.000$00, fosse arrestada determinada conta bancária detida pela requerida no Banco Espírito Santo.
Vindo a D... a deduzir oposição ao arresto, foi, em 9 de Novembro de
1999, proferida sentença que, julgando-a procedente, revogou o arresto anteriormente ordenado.
Desse decisão agravou o requerente para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, na alegação que produziu, formulado, por entre outras, as seguintes «conclusões»:-
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46 - Embora o Meritíssimo Juiz a quo aceite que é pacífico o entendimento de que já não é necessária a comprovação do risco de insolvência como no Cód. de 61, para que se verifique o risco de perda de garantia patrimonial,
47 - Do conteúdo da decisão parece resultar que o mesmo apenas mantivesse o arresto se verificasse a existência do risco de falência.
Uma vez que,
48 - Desloca a problemática da perda da garantia patrimonial para a viabilidade ou inviabilidade da recorrida.
49 - A viabilidade de uma empresa apenas se discute quando a mesma se acha numa situação de insolvência.
Assim,
50 - A decisão recorrida procede a errada interpretação e aplicação da norma contida no art. 406º, nº 1 do CPC.
Acresce que,
51 - o Recorrente beneficia do direito à retribuição consagrado no art. 59º, nº 1, al, a) da CRP.
52 - A norma do art. 406º, nº 1 do CPC - perda de garantia patrimonial
- deve ser interpretada à luz desse direito constitucional,
53 - Direito esse que tem eficácia jurídica directa à luz do art. 18º da CRP.
Assim,
54 - A decisão recorrida procede a uma implicita interpretação dessa norma por infringir aquelas regras constitucionais.
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Por acórdão de 7 de Janeiro de 2000 a Relação de Lisboa negou provimento ao agravo.
Disse-se, em determinados passos, nesse aresto:-
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O procedimento cautelar do arresto consiste numa apreensão judicial de bens (art. 406º do C.P.C.).
Para obter o seu decretamento deve o credor-requerente alegar e provar, sem audiência da parte contrária, os factos conducentes à demonstração, ainda que perfunctória, dos requisitos do arresto e que são dois: a possibilidade de existência do crédito do requerente e o receio justificado da perda de garantia patrimonial.
Não se discutindo nestes autos a existência do crédito do requerente, importa apenas apurar se o seu receio da perda de garantia patrimonial se justifica.
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Dos factos apurados pela 1ª instância resulta claro que a situação económica e financeira da agravada não é a melhor, sendo mesmo algo difícil, o que, aliás, foi reconhecido na decisão sob censura.
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Mas daí, ou seja, dessas dificuldades económicas, não decore necessariamente que haja, quanto ao aqui arrestante, o ‘justificado receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito’ ou ‘o justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito’ de que nos falam os artigos 406º do Código de Processo Civil e 619º do Código Civil.
É que, como se diz no douto Acórdão do S,T,J. de 3.03.98, publicado na C.J., Ac. do S.T.J., Tomo I, Ano VI-1988, '...não basta o receio subjectivo, porventura exagerado do credor, de ver insatisfeita a pretensão a que tem direito.
O que é decisivo é que o credor fique ameaçado de lesão por acto do devedor e seja razoável e compreensível o seu receio de ver frustrado o pagamento do seu crédito.
Numa palavra, o receio, para ser considerado justificado - por exigência da lei - ,«há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação» (cfr. Jacinto Bastos, «Notas». Vol. II, pág. 268).’
O justo receio de perda da garantia patrimonial, justificativo do arresto, terá, portanto, de ser apreciado não em termos egoísticos do interessado, mas sim segundo critérios de razoabilidade e de experiência de vida, atendendo à matéria fáctica apurada.
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Ora, neste caso, atendendo aos factos provados, não nos parece que a requerida ande a inutilizar ou ocultar bens, com vista a eximir-se ao pagamento dos eventuais créditos laborais do aqui recorrente.
Antes resulta dos factos apurados que o estabelecimento de ensino, propriedade da requerida, está em normal funcionamento e a gerar receitas, procurando ela solver os seus compromissos e refazer o seu desafogo económico.
É assim nosso entendimento que, apesar das despesas que a cooperativa necessariamente também tem, não existe um perigo objectivo de o aqui requerente do arresto, se acaso lograr obter procedência na acção que intentou, não vir a ser pago dos créditos por si reclamados nessa acção, por descaminho ou desaparecimento de suficientes bens da recorrida.
O valor dos eventuais créditos do recorrente, quando comparado com as verbas movimentadas anualmente pela D... na gestão da Universidade Moderna, não pode deixar de considerar-se pouco elevado, pelo que nada faz prever uma impossibilidade do seu pagamento por aquela cooperativa.
A revogação da decisão que decretou o arresto afigura-se-nos, assim, totalmente correcta.
De resto, os requerentes do procedimento cautelar, no que se refere às contas bancárias, nem sequer cumpriram o determinado no n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Civil.
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Ora a não discriminação dos bens a arrestar, ou a sua relacionação imperfeita, leva a que não seja possível decretar-se o aresto pedido (neste sentido, veja--se o douto Acórdão do S.T.J. de 27.01.93, in C.J., Tomo I, Ano I-1993, pág. 84).
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Lendo-se a petição do(s) requerente(s), fácil é ver que não houve uma indicação clara, precisa e completa das contas e montantes a arrestar, pelo que o arresto, a nosso ver, e por este outro fundamento, também nunca deveria ter sido decretado no despacho de 30 de Junho de 1999.
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Acrescente-se, para finalizar, que não se descortina como é que a decisão recorrida infringiu ao artigos 18º e 59º, n.º 1, da Constituição da República.
Só uma enviesada leitura do decidido pode encontrar nela infracções à Constituição da República Portuguesa, como as que vêm invocadas.
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É do acórdão de que algumas partes se encontram transcritas que, pelo requerente Paulo Sérgio Lage Monteiro de Azevedo vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o vertente recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo o mesmo, inter alia, no requerimento corporizador do recurso:-
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.............................pretende ver-se declarada a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa do artº 406º, nº 1 do CPC - perda de garantia patrimonial - face às garantias constitucionais decorrentes dos artºs 59º, nº 1, al. a) e 18º da CRP.
Porquanto,
A perda da garantia patrimonial no caso das remunerações de trabalho por conta de outrem, deve ter em conta a injunção constitucional do direito à retribuição do trabalho, consignado no artº 59º, nº 1 da CRP.
A interpretação que o tribunal do trabalho fez do conceito - perda de garantia patrimonial, desinserida de tal contexto normativo, está ferida de inconstitucionalidade material por a interpretação do artº 406º, nº 1 do CPC estar em desconformidade com aquela norma constitucional.
Sendo o direito à remuneração um direito inserido no catálogo dos direitos, liberdades e garantias é directamente aplicável e vincula as entidades públicas e privadas, conforme decorre do disposto no artº 18º, nº 1 da CRP.
Essa aplicabilidade e essa vinculação reforçam a tutela constitucional desse direito, logo a inconstitucionalidade material daquela interpretação.
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O recurso veio a ser admitido por despacho prolatado em 21 de Junho de 2000 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a presente decisão sumária, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da vertente impugnação.
Diga-se, desde logo, que ao caso dos autos não parece ser aplicável a jurisprudência seguida por este Tribunal (cfr., por entre outros, os Acórdãos números 151/85 e 267/91, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 31 de Dezembro de 1985 e 23 de Outubro de 1991) segundo a qual as decisões provisórias não devem ser consideradas decisões dos tribunais para efeitos dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa quando esta se ligue à questão substantiva a decidir no processo principal.
É que, mesmo que se entendesse que, não obstante se tratar de uma oposição a um arresto, ainda aqui estaria em causa uma decisão necessariamente ligada àquele procedimento, o que é certo é que a questão jurídico-constitucional que se intentou submeter à apreciação deste Tribunal não está conexionada com uma questão jurídica que, de um ponto de vista substantivo, tem a ver com aqueloutra que há-de vir a ter resposta no processo principal, pois, na verdade, a aludida questão jurídico-constitucional reporta-se a uma norma processual que rege, justamente, sobre o procedimento cautelar sub iudicio.
2.1. Isto posto, cumprirá indicar as razões que levam a que se não tome conhecimento do objecto do recurso.
Efectivamente, como bem deflui do relato acima efectuado, desde logo se deve anotar que o ora recorrente, aquando da feitura da alegação para o Tribunal da Relação de Lisboa, nunca indicou, com um mínimo de precisão e intelegibilidade, qual a dimensão normativa do nº 1 do artº 406º do Código de Processo Civil que, tendo sido aplicada na decisão proferida na 1ª instância, era, na sua perspectiva, conflituante com a Constituição, outrotanto sucedendo, aliás, com o que se contém no requerimento de interposição de recurso.
Ora, como amiudadas vezes tem sido sublinhado por este Tribunal, estando em causa uma questão de inconstitucionalidade assacada a uma interpretação normativa, mister é que haja, por banda do recorrente, a indicação, de forma clara a inteligível, da dimensão normativa que se reputa de desconforme com o Diploma Básico.
O que, no caso, nunca foi levado a efeito por parte do recorrente.
2.2. Mas, para além deste particular, o que mais releva é que, ainda, que se pudesse sustentar que, pese embora o que se deixou assinalado no antecedente ponto, o que o recorrente desejava era questionar uma interpretação da norma ínsita no nº 1 do artº 406º do Código de Processo Penal e de harmonia com a qual, estando em causa um arresto visando garantir uma futura e eventual condenação de uma empresa a pagar determinados montantes a um seu trabalhador por créditos derivados da relação laboral entre eles existente, a perda de garantia patrimonial a que ali se faz alusão era recondutível às situações de inviabilidade económica dessa empresa, o que não deixa lugar a dúvidas é que não foi com um tal sentido que aquele normativo veio a ser aplicado na decisão que se pretendeu colocar sob a censura deste Tribunal.
De facto, como bem resulta da transcrição acima feita, o acórdão lavrado no Tribunal da Relação de Lisboa, de todo em todo, não entendeu que a perda de garantia patrimonial deveria ser vista como uma situação de inviabilidade económica.
De onde se haver de concluir que, in casu, falta um dos elementos a que deve obedecer o recurso estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82 e que é, precisamente, o da aplicação, pela decisão ora querida impugnar, da interpretação normativa que teria sido posta em crise pelo recorrente.
2.3. Um ponto se vislumbra ainda e que também conduz a que se não deva tomar conhecimento do objecto do recurso.
Consiste ele em no acórdão tirado no Tribunal da Relação de Lisboa se ter sustentado um outro fundamento - para além do consistente em se ter entendido que não havia no caso o risco de perda de garantia patrimonial - que levaria desde logo, na sua óptica, a que o arresto em causa não deveria ter sido decretado, fundamento esse que era baseado na conclusão de que o respectivo requerente não discriminou ou não relacionou de modo perfeito os bens a arrestar.
Ora, havendo este outro fundamento, mesmo que porventura o Tribunal Constitucional viesse a considerar procedente a questão de constitucionalidade normativa que se pretendeu colocar-lhe, nem por isso daí resultaria que outra haveria de ser a decisão a tomar pela Relação de Lisboa no tocante a ordenar o levantamento do arresto, pois que esse levantamento subsistiria em face daquele outro fundamento.
Sabido como é que os recursos de constitucionalidade têm natureza instrumental, por forma a que a decisão de constitucionalidade se possa repercutir utilmente nas decisões tomadas nos tribunais a quo, postando-se, como no caso se posta, uma situação em que, não obstante a decisão a tomar sobre a questão de constitucionalidade, sempre o juízo decisório lavrado pelo tribunal recorrido haveria de ser o mesmo, em face da subsistência de um outro fundamento que não aquele de onde nasceu aquela questão, então há que concluir que, no caso em apreço, a decisão referente à compatibilidade com a Lei Fundamental da (acima aventada e hipotética) interpretação normativa se tornaria meramente académica e sem utilidade.
Em face do exposto, não se toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
Da transcrita decisão sumária reclamou para a conferência, nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o recorrente Paulo Sérgio Lage Monteiro de Azevedo, dizendo, em síntese:-
- na decisão reclamada não se disse que não estavam reunidas as condições para se não tomar conhecimento do recurso, mas antes que deste se não tomava conhecimento;
- esse não conhecimento do recurso equipara-se à negação de provimento, impedindo que ele seja apreciado no seu mérito;
- a decisão sumária, ao dizer que 'o acórdão lavrado no Tribunal da Relação de Lisboa, de todo em todo, não entendeu que a perda de garantia patrimonial deveria ser vista como uma situação de inviabilidade económica' não está a significar que a norma não chegou a ser aplicada no aresto impugnado, mas sim que a ela não foi dada uma interpretação restritiva, violadora dos direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados, o que implica um conhecimento do mérito do recurso quanto à norma do nº 1 do artº 406º do Código de Processo Civil.
Ouvida sobre a reclamação, a D... propugnou no sentido do respectivo indeferimento.
Cumpre decidir.
2. É a todos os títulos evidente a sem razão do reclamante.
Na verdade, a decisão sumária ora sub iudicio é claramente explícita no sentido de se não tomar conhecimento do objecto do recurso com base em duas linhas de raciocínio:-
- por um lado, porque a norma, com o sentido ou com a interpretação que porventura foram, pelo então recorrente, questionados do ponto de vista da sua desconformidade constitucional, não foi aplicada, no acórdão intentado recorrer, com aqueles sentido ou interpretação;
- por outro, porque, ainda que tivesse, em tal aresto, ocorrido uma tal aplicação, o que era certo era que em tal peça processual foi utilizado um outro fundamento que, só por si, levaria a que o arresto não viesse a ser decretado, fundamento esse que sempre subsistiria independentemente da questão de saber se a perda de garantia patrimonial aludida no preceito constante do nº
1 do artº 406º do Código de Processo Civil poderia, ou não, ser recondutível às situações de inviabilidade económica do arrestado.
Neste contexto, é óbvio, que não houve, minimamente que fosse, um conhecimento, ainda que perfunctório, da compatibilidade constitucional do normativo ínsito no falado nº 1 do artº 406º do Código de Processo Civil e, logo por aí, fica afastado aquilo que o ora reclamante diz ter sido uma
'interpretação dada na presente decisão ao art. 78º-A, nº 1' que era, 'ela própria limitadora do direito ao recurso e das garantias de defesa do recorrente', na medida que o impossibilitaria de produzir alegações e de ser notificado para o julgamento.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa