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Processo nº 201/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (2ª Secção), proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. G....,SA, sociedade comercial com sede na Gafanha da Nazaré - Ílhavo, veio,
'nos termos e para os efeitos do disposto nos Artºs 70º, nº 1, b) e nº 2 e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional', interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão da 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Fevereiro de 2000, que confirmou 'as decisões recorridas' das instâncias, negando o recurso de revista interposto pela recorrente, e no respectivo requerimento limitou-se a invocar que 'os preceitos constitucionais que se consideram violados são os Artºs. 20º e 202º, nº 2 da CRP, na interpretação que
é dada aos Artºs 3º, 3º-A, 544º, nº 1, 545º, 546º, 549º e 550º do CPC, bem como aos Artºs 372º, 374º e 376º do Cód. Civil, assim sendo configurada a nulidade prevista no Artº 201º do CPC, tendo a questão da inconstitucionalidade sido deduzida nas alegações e conclusões do recurso de Revista'. A convite do Relator, nos termos do disposto no artigo 75º-A, nº 1, da citada Lei, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13º-A/98, de 26 de Fevereiro, e 'para esclarecer em que sentido considera violadora dos preceitos constitucionais invocados a interpretação dada às normas de direito ordinário, também invocadas, no douto Acórdão Recorrido, bem como o sentido que entende dever ser dado a essas normas para que esteja conforme aos mesmos preceitos constitucionais', veio dizer o seguinte:
'1. A questão prende-se com a não admissão da Recorrente a prestar prova, que oportunamente requereu, na impugnação de documentos juntos ao processo, designadamente, sobre a falsidade do respectivo conteúdo - documentos esses que vieram, bem como o respectivo conteúdo, a ter influência decisiva na douta Decisão de mérito.
2. No sentido da não admissão daquela prova, foi doutamente entendido no douto Acórdão recorrido que apenas é admitida a impugnação de falsidade, sobre o conteúdo de documentos, quando se trate de documentos autênticos ou, quando se trate de documentos particulares, que tenham força probatória equiparada, sendo certo que,
3. No caso concreto não se trata de documentos com aquela força probatória, uma vez que são documentos particulares e não elaborados nem assinados pela Recorrente - caso em que a esta nada mais será admitido que impugná-los dizendo não saber se o seu conteúdo e assinatura são verdadeiras, ou seja, quanto à autoria e assinatura, estando-lhe vedado fazer a contraprova sobre o seu conteúdo.
4. A Recorrente, salvo sempre o devido respeito pela opinião contrária, no seu modesto entendimento considera que, mesmo nesse caso, deverá ser admitida a fazer a contraprova do conteúdo dos documentos, o que vale dizer da falsidade do mesmo, sob pena de, como veio a acontecer, ver tais documentos e respectivo conteúdo a reverterem - o que vale dizer, a fazerem prova - contra si.
5. No modesto entender da Recorrente, tal douto entendimento e interpretação das normas de direito ordinário oportunamente invocadas, limitam e prejudicam o acesso ao direito, à efectiva tutela jurisdicional que aos Tribunais cabe assegurar e prosseguir, assim estando, salvo sempre o devido respeito, violado o disposto nos Artºs 20º e 202º, nº 2, da CRP - cujos princípios apenas estarão prosseguidos, no caso concreto, com a admissão da Recorrente a produzir prova sobre a falsidade do conteúdo dos documentos impugnados.'
2. Suposto que o presente recurso obedece aos pressupostos processuais exigidos em geral e especificamente pelo artigo 70º, nº 1, b) da Lei nº28/82, admitindo-se, portanto, e para maior comodidade de raciocínio, que a recorrente suscitou adequadamente a pretensa questão de inconstitucionalidade que, na sua linguagem, se prende 'com a não admissão da Recorrente a prestar prova, que oportunamente requereu, na impugnação de documentos juntos ao processo, designadamente, sobre a falsidade do respectivo conteúdo - documentos esses que vieram, bem como o respectivo conteúdo, a ter influência decisiva na douta Decisão de mérito', o certo é que tal questão se revela manifestamente infundada, e daí o uso da faculdade a que se refere o nº 1 do artigo 78º-A, da mesma Lei nº 28/82. Desde logo, e como se regista no acórdão recorrido, sendo 'fácil invocar a Constituição da República Portuguesa', não se vê 'onde é que a recorrente não viu assegurado o seu acesso ao direito e aos tribunais, nem onde estes deixaram de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos'. E é assim mesmo.
3. Com efeito, reduzindo-se a essência da controvérsia à 'admissão da Recorrente a produzir prova sobre a falsidade do conteúdo dos documentos impugnados', pois no decorrer da audiência de julgamento em primeira instância foi indeferido na respectiva acta o seu pedido de produção de prova ao impugnar diversos documentos juntos pela autora e ora recorrida M....,SA, sociedade comercial com sede em Bruxelas-Bélgica, a resposta foi dada no acórdão do Tribunal da Relação
- o acórdão impugnado perante o Supremo Tribunal de Justiça - e aí, depois de se ter desenvolvidamente explicado o esquema da prova documental, à luz do 'novo regime do C.P.C. revisto', quer quanto a documentos autênticos, quer quanto a documentos particulares, e esclarecido também o entendimento relativamente aos
'vícios susceptíveis de afectar o relevo probatório dos documentos', pode ler-se o seguinte:
'Delineados estes princípios, importa saber se eles foram devida e convenientemente aplicados ao incidente de impugnação deduzido pela R.. Ora, no caso vertente, não estamos confrontados com qualquer documento autêntico. De facto, todos os documentos impugnados pela agravante são documentos particulares simples, uns da autoria da A. , outros de terceiros e um só da R. e só um deles apresenta reconhecimento notarial por semelhança, que é justamente uma declaração, aliás, de tipo testemunhal, subscrita pelo mencionado Al. M.. No entanto, este documento nem deveria sequer ser admitido por estar destituído de qualquer valor probatório. Com efeito, o referido Al., que teve uma intervenção decisiva nos negócios alegadamente feitos entre a A. e a R. e relativos ao fornecimento de marisco e outro peixe congelado, discriminados nas facturas juntas com a p. i., foi oportunamente indicado como testemunha e a declaração manuscrita por ele subscrita, bem como o anexo que juntou, é uma espécie de depoimento escrito que não podia ser admitido senão nos termos taxativos do artº 639° n° 1 do C.P.C. e que reza assim:
«1. Quando se verifique a impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal, pode o juiz autorizar, havendo acordo das partes que o depoimento da testemunha seja prestado através de documento escrito, datado e assinado pelo seu autor e do qual consta a relação discriminada dos factos a que assistiu ou que verificou pessoalmente e das razões de ciência invocadas. » Ora, este condicionalismo não foi observado no caso vertente, pelo que o teor da referida declaração e que aliás consta de fotocópia não autenticada, está desprovido de qualquer valor probatório (v. neste sentido, entre outros, o já citado Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 258 e o Ac. da R.L. de
3/11/92, B.M.J. 421°, 512). Se exceptuarmos este caso e que sempre tornaria inútil a inquirição das testemunhas indicadas pela agravante para impugnação da genuinidade da assinatura e a própria falsidade dos factos declarados, todos os demais carecem de força probatória plena, já que devidamente impugnados quanto à sua letra e assinatura, com excepção do atribuído à própria R. e que esta confirma, apenas discordando do sentido e alcance que lhe é atribuído pela A..
Desta feita não se justificava a produção de qualquer prova testemunhal no
âmbito do incidente regulado no artº 545° atrás citado. Com efeito, todos esses documentos seriam sempre passíveis de livre apreciação do seu valor probatório pelo tribunal, sendo que a R. tão pouco pretendeu fazer a prova da genuinidade da respectiva letra e assinatura. Mas a R. veio também impugnar a falsidade dos factos neles declarados, dando por reproduzidas as afirmações e alegações da respectiva contestação. Sucede que, como atrás se disse, não faria aqui qualquer sentido a discussão da falsidade do conteúdo dos documentos, já que tal só se justificaria se estivesse reconhecido o seu valor probatório no tocante à genuinidade da respectiva autoria. Ora, no caso em apreço, a R. impugnou a letra e a assinatura de todos esses documentos, alegando o seu desconhecimento, por não lhe serem atribuídos. Logo, bem andou o Mmo. Juiz em não dar seguimento a semelhantes incidentes, por de todo inúteis'. E no acórdão recorrido reconhece-se que a arguição de falsidade dos documentos particulares 'só pode ter lugar depois da sua força probatória se encontrar reconhecida pela lei', concluindo-se deste modo:
'Assim, in casu, vedada estava a produção da indicada prova testemunhal quer porque foi impugnada a letra e a assinatura dos documentos, cujo valor probatório foi de livre apreciação pelo tribunal quer porque, como bem se diz no acórdão recorrido, a R. tão pouco pretendeu fazer a prova da genuinidade da respectiva letra e assinatura'. Tal resposta, primitivamente dada no tribunal de relação e depois assumida também no acórdão recorrido, ainda que tenha o sentido interpretativo que lhe dá a recorrente, não envolve nenhum afrontamento ao princípio geral do acesso à via judiciária que se colhe do artigo 20º e se conjuga com o artigo 202º, nº 2, ambos da Constituição.
É que não foi vedado em nenhum momento à recorrente o acesso à prestação da Justiça, pois ela e a recorrida produziram prova através da inquirição de testemunhas e da junção de diversos documentos e foi adequada a utilização das regras processuais pelas partes (a recorrente e ré na acção impugnou os documentos particulares simples em causa, carecendo eles, por isso, de força probatória plena, já que foram impugnados quanto à sua letra e assinatura,
'alegando o seu desconhecimento, por não lhe serem atribuídos'). Estando, no caso, sempre em crise o valor e a força probatória de tais documentos, dada a impugnação deduzida pela recorrente e ré na acção, 'não se justifica a produção de qualquer prova testemunhal no âmbito do incidente regulado no artº 545º atrás citado', não se vendo aqui violação do citado princípio geral. Com o que, e encurtando razões, se revela manifestamente infundado o presente recurso.
4. Termos em que, DECIDINDO, nego provimento ao recurso e condeno a recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta'. B. Dessa Decisão veio a recorrente, 'nos termos e para efeitos do disposto no nº
3 do Artº 78º-A da LTC, deduzir Reclamação para a Conferência' sustentando que ela seja revogada, 'proferindo-se outra que, em sua substituição, conceda provimento ao recurso', com invocação destes fundamentos:
'1. Os documentos em referência tiveram significado de relevo na douta fundamentação da douta Decisão de Facto, bem como na douta Sentença de 1ª Instância, tendo influído na formação da convicção do Tribunal, designadamente, pelo seu conteúdo,
2. Não tendo a ora recorrente tido a oportunidade de demonstrar a inveracidade do mesmo - o que, pelo exposto, interessava à decisão de mérito e não seria, assim, inútil ou despropositado, sendo, pelo contrário, muito relevante para a descoberta da verdade e defesa da ora Reclamante,
3. Do mesmo passo que era, como continua a ser, expressamente admitido por Lei - cfr. Artºs 544º/545º e 549º do CPC'. C. Respondeu a ora recorrida M....,SA, sustentando que 'deve ser mantida a decisão proferida e, em consequência, rejeitado o recurso', na base nas seguintes razões:
'1. Ao recorrente foram assegurados todos os direitos à defesa, nomeadamente em sede de 1ª instância, a quando da audiência de discussão e julgamento.
2. Na verdade, o Recorrente em sede própria recorreu do despacho que indeferiu o pedido de produção de prova quanto à impugnação de diversos documentos juntos pela Recorrida.
3. Nos termos do direito adjectivo vigente, foi possível ao Recorrente expor as suas razões quanto a tal questão junto do Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, os quais negaram razão ao Recorrente.
4. Assim, bem andou esse Venerando Tribunal na sua Decisão Sumária, dado que não se vislumbram qualquer violação da Lei Fundamental nomeadamente, as suas disposições contidas nos artºs 20º e 202º, nº 2 da CRP.' D. Tudo visto, cumpre decidir. Confrontada a recorrente com a posição das instâncias, a que, no essencial, se aderiu na Decisão Sumária, concluindo-se que o recurso de constitucionalidade
'se revela manifestamente infundado', a recorrente não adiantou nenhuma razão consistente que invalide tal conclusão. Por consequência, não vem minimamente abalada pela recorrente a afirmação de que não lhe foi vedado em nenhum momento 'acesso à prestação da Justiça' e daí não se vislumbrar ' nenhum afrontamento ao princípio geral do acesso à via judiciária que se colhe do artigo 20º e se conjuga com o artigo 202º, nº 2, ambos da Constituição'. Há, assim, que manter a Decisão Sumária e reiterar o juízo de negar provimento ao presente recurso. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 5 de Julho de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa