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Proc. nº 383/97
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por sentença de 14 de Dezembro de 1989, transitada em julgado, proferida na acção com processo ordinário (n.º 19/89), movida por B. S. (ora recorrente) contra F. B. (ora recorrido), o Tribunal de Círculo de Chaves:
· Decretou a nulidade de um contrato de trespasse verbal celebrado por ambos em Abril de 1981, tendo por objecto a Farmácia M..., também conhecida por Farmácia S....;
· Condenou o aí Réu e aqui recorrido, a 'restituir imediatamente ao A. aquela farmácia com uma existência de medicamentos e demais produtos farmacêuticos da qualidade e valor equivalente ao que resulta do inventário, valor esse do montante de 1.952.854$00, ou a indemnizá-lo pelo valor do que restitua a menos, valor esse a apurar em liquidação de sentença';
· Condenou o aí Réu e aqui recorrido a 'pagar ao A. a indemnização que se liquidar em execução da sentença correspondente ao rendimento médio mensal líquido que deixou de auferir desde 22 de Maio de 1986 até efectiva entrega da farmácia, por estar privado do gozo da Farmácia S....' e respectivos juros vencidos, à taxa legal, a partir da citação';
· Declarou que 'o valor das verbas recebidas pelo R. do A. referente à transferência da farmácia é do montante de 5.000.000$00, que será compensado com o valor das indemnizações devidas pelo R. ao A. e aqui arbitradas, condenando-se o Réu a reconhecê-lo'.
2. F. B., ora recorrido, intentou, em Março de 1994, no Tribunal do Círculo de Chaves, uma acção declaratória de condenação com processo ordinário
(n.º 53/94) contra B. S. (ora recorrente), alegando na respectiva petição inicial, além do mais, que:
· 'Na pendência da execução da referida sentença [de 14 de Dezembro de
1989], promovida pelo ora Réu, foi feito um balanço de todos os medicamentos e produtos farmacêuticos existentes na farmácia e então pertencentes ao ora Autor, do qual se mostra que o seu valor global era de 13.409.571$00 no dia 15 de Maio de 1991, data em que, aliás, o Réu foi investido judicialmente na posse da sua farmácia (...);
· No período imediatamente anterior (entre 1 e 15 de Maio/91) ao do encerramento da farmácia para elaboração do referido balanço, o Autor, ainda na sua gerência, aviou várias receitas (...), mas o pagamento dessas importâncias só veio a ser feito, por cheques, depois de encerrada a farmácia e de o Autor ter entregue as suas chaves aos peritos nomeados para elaboração do falado balanço, tendo o Réu recebido aqueles cheques, no valor global de 544.295$00, que gastou em proveito próprio, sem serem levados a esse balanço. Pelo que terá essa quantia de ser adicionada ao valor do mesmo balanço, resultando uma soma total de 13.953.866$00;
· Abatendo a esta importância o valor de 1.952.854$00 que o Autor ficou obrigado a restituir ao Réu, logo se verifica que este, a partir da aludida data de 15 de Maio de 1991 tem vindo a dispor e a usufruir dum valor de
12.001.012$00, só ao A. pertencente';
· Esta quantia de 12.001.012$00 teria vencido juros desde 15 de Maio de
1991 à taxa legal de 15%, pelo que 'terá de lhe ser acrescida, por agora, a importância de escudos 6.750.571$50, correspondente a esses juros já vencidos até 15 do passado mês de Fevereiro (45 meses), a que serão acrescidos os juros a vencer até integral pagamento e a liquidar em execução de sentença';
· B. S. teria ainda de lhe devolver as quantias de 900.000$00 (crédito da farmácia), de 346.000$00 (quantia referente a objectos a si pertencentes, de que se teria apoderado aquando da sua restituição à posse plena da farmácia) e de 5.000.000$00 (correspondente ao valor da transferência da farmácia, dada a declaração de nulidade do respectivo contrato verbal de trespasse, restituição esta que teria de ser feita à mesma taxa legal de 15%). Ascenderia assim, segundo F. B. (ora recorrido), a 28.747.583$50 a importância devida por B. S. (ora recorrente), à data de 10 de Março de 1994, pelo que pedia a sua condenação no respectivo pagamento, com juros à taxa legal de 15% só em relação a 13.247.012$00.
3. Por sentença de 22 de Maio de 1995, proferida no âmbito deste processo (fls. 288 e seguintes), o juiz do Tribunal de Círculo de Chaves considerou que:
· A farmácia foi restituída ao Réu com uma existência de medicamentos e produtos farmacêuticos no valor líquido de 9.031.590$00, medicamentos e produtos esses que pertenciam ao A.;
· O valor dessas existências que o Autor tinha de assegurar, aquando da entrega da farmácia, era apenas de 1.952.854$00;
· Existindo na farmácia medicamentos e produtos farmacêuticos em quantidade superior àquela que tinha de garantia – produtos esses que pertenciam ao Autor e reverteram para o Réu –, é evidente que este se locupletou com aquilo que lhe não pertencia e terá, portanto, de abrir mão do correspondente valor a favor do A., em conformidade com o estabelecido no art. 473º C. Civil;
· Para encontrar o montante desse enriquecimento, ou seja, a quantia a restituir pelo Réu ao A., haverá que subtrair ao valor da existência de medicamentos e produtos farmacêuticos que se encontravam na farmácia quando foi restituída ao Réu o valor de idênticas existências que o Autor teria de assegurar quando essa restituição fosse feita;
· Aquela primeira parcela terá de ser do montante de 9.031.590$00, valor das existências que integravam a farmácia quando esta foi restituída ao Réu (15 de Maio de 1991), abatido da percentagem de lucro do farmacêutico na venda desses mesmos produtos;
· A existência de medicamentos e demais produtos farmacêuticos que o Autor deveria assegurar quando entregasse a farmácia ao Réu, no valor correspondente a 1.952.854$00, é reportada a Abril de 1981;
· Para se atingir uma situação de justiça equitativa, há que comparar realidades reportadas ao mesmo período temporal – o que implica que se proceda a uma actualização deste último valor, de modo a fazê-lo reportar a 15 de Maio de
1991;
· Essa actualização terá de ser encontrada de acordo com o índice de correcção monetária fornecido pela Portaria n.º 415-A/90, de 4 de Junho;
· Sendo o coeficiente correctivo a considerar de 3,83, a actualização daquelas existências – 1.952 854$00 – para 1991 dá o quantitativo de
7.479.430$00;
· Abatendo ao valor das existências que integravam a farmácia quando ela foi entregue ao Réu o valor das existências, corrigido, que o Autor tinha de assegurar, verifica-se que aquele se locupletou com o excesso, ou seja,
1.552.160$00 (9.031.590$00 – 7.479.430$00) – sendo portanto esta a importância a restituir pelo Réu ao Autor;
· Estando naquela importância de 9.031.590$00 incluído o valor de
1.222.309$00, correspondente a medicamentos sem etiquetas, uns, e já deteriorados, outros, que não podiam ser vendidos, este valor tem de ser abatido ao quantitativo de 1.552.160$00 que o Autor tinha de receber do Réu;
· Ascende, assim, a 329.851$00 a quantia a receber pelo Autor
(1.552.160$00 – 1.222.309$00);
· Tendo o Réu, uma vez na posse da farmácia, recebido a importância global de 521.903$00 proveniente da venda de medicamentos efectuada pelo Autor, essa quantia pertencia ao Autor, e haveria, por isso, que somá-la àquela parcela de 329.851$00;
· Deste modo, tem o Autor a receber do Réu a importância global de
851.754$00 (521.903$00 + 329.851$00);
· A verba de 5.000.000$00, apesar de se encontrar fixada na sentença proferida em 14 de Dezembro de 1989, e de, portanto, se apresentar líquida a partir desse momento, teria de ser compensada com o valor das indemnizações devidas pelo Autor ao Réu: como apenas neste momento se ficou a saber a quantia exacta que aquele tinha a receber, só a partir deste momento são devidos os juros. Nestes termos, o tribunal condenou B. S. a pagar a F. B. a quantia de
5.851.754$00, acrescida de juros à taxa legal, a partir do momento da sentença e até efectivo pagamento.
4. O Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 23 de Maio de 1996, proferido no recurso de apelação interposto por F. B. daquela decisão (fls. 351 e seguintes) considerou que existiam três questões a apreciar e decidir:
- 'qual o valor dos medicamentos e produtos farmacêuticos existentes na Farmácia S.... na data em que esta foi entregue ao Apelado';
- 'o valor de Esc. 1.952.854$00 referido na sentença proferida em 14-12-89 deve ou não ser actualizado';
- 'desde quando são devidos juros sobre as quantias em que o Réu foi ou venha a ser condenado'. Relativamente à primeira questão, entendeu a Relação que o valor global dos medicamentos e produtos farmacêuticos existentes na Farmácia S.... na data em que esta foi entregue ao Apelado (15 de Maio de 1991) ascendia a 11.571.414$00 e ao valor líquido de 9.031.590$00, ou seja, abatido aquele da percentagem de lucro do farmacêutico na venda desses mesmos produtos, conforme resultava da resposta a um dos quesitos. Relativamente à segunda questão, entendeu a Relação que:
- 'A prestação a restituir pelo Autor – tal como, aliás, a prestação a restituir pelo Réu, 5.000.000$00 –, porque decorrente da declaração de nulidade de um contrato (o contrato de trespasse celebrado em Abril de 1981) não podia, como o foi na decisão recorrida, ser actualizada com referência a 15 de Maio de 1991. Pensamos, aliás, que com tal actualização se poderia violar o caso julgado que em tal sede terá sido formado pela sentença proferida em 14 de Dezembro de 1989
– art.º 671º n.º 1 do Cód. de Proc. Civil –.'.
- Para efeito de cálculo do enriquecimento do Réu e consequente empobrecimento do Autor, entendeu a Relação (tal como o Tribunal de Círculo de Chaves, na decisão recorrida), que se deve atender ao valor líquido de 9.031.590$00 e não ao valor de 11.571.414$00, na medida em que o inventário de fls. 64 e 65 também se reporta a valores líquidos.
- 'Àquele valor de 9.031.590$00 haverá, no entanto, que deduzir a quantia de
1.222.309$00 respeitante a medicamentos que não possuíam etiquetas ou que se encontravam deteriorados e que, por isso, não poderiam ser vendidos, não tendo, assim, valor económico efectivo, e não representando a sua existência qualquer enriquecimento para o Réu (...).
- O Autor tem, pois, a haver do Réu a diferença entre aquelas quantias –
9.031.590$00 – 1.222.309$00 = 7.809.281$00 –, acrescida dos montantes de
521.903$00 e de 5.000.000$00 (...), ou seja, o montante global de
13.331.184$00'. Quanto à terceira questão, considerou a Relação que 'está o Réu obrigado a restituir ao Autor as quantias de 7.809.281$00 – respeitante à diferença entre o valor líquido das existências em medicamentos e demais produtos farmacêuticos existentes na Farmácia, respectivamente, em Abril de 1981 e 15 de Maio de 1991 – e de 521.903$00 – relativa a receitas aviadas pelo Autor e cujas importâncias foram pelo Réu recebidas –, valores de que o Réu, sem causa justificativa, se enriqueceu à custa do Autor. A obrigação do Réu, porque os pressupostos determinantes da fixação do seu montante se encontravam já pré-determinados, é, pois, uma obrigação líquida. (...) Assim, não tendo a obrigação prazo certo, a mora do devedor iniciou-se com a interpelação, isto é, a partir da citação. Sobre os montantes devidos pelo Réu ao Autor são, pois, devidos juros, à taxa legal, desde a data da citação – 20-04-94 (...) – até efectivo e integral pagamento'. Nestes termos, a Relação concedeu provimento parcial à apelação, condenando o Réu a pagar ao Autor a quantia de Esc. 13.331.184$00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo pagamento.
5. Do acórdão da Relação foi interposto recurso de revista por B. S.. Nas alegações de recurso o recorrente invocou a inconstitucionalidade do
'entendimento implícito dado ao art. 683º do C.P.C. [o recorrente, certamente por lapso, escreveu 683º, quando pretendia referir-se ao artigo 673º] pela Relação, segundo o qual o caso julgado não abrangeria matéria já decidida desde que a mesma careça de apuramento ou quantificação posteriores', por violação do princípio constitucional da protecção da confiança. O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 20 de Maio de 1997 (fls. 401 e seguintes), considerou estar em causa a apreciação da seguinte questão: a quantia a pagar por B. S. (Réu e ora recorrente) a F. B. (Autor e ora recorrido), correspondente à diferença de valores entre os bens que aquele tinha deixado a este em 1981 (valor líquido de 1.952.854$00, segundo o inventário desta data) e os bens que este havia devolvido àquele em 1991 (valor líquido de
9.031.590$00, segundo o inventário desta data, ao qual se teria de descontar o valor de 1.222.309$00, relativo aos medicamentos sem etiqueta ou deteriorados), devia ser calculada atendendo à depreciação monetária ? Como se salienta no acórdão, 'para a 1ª instância devem comparar-se os valores líquidos dos inventários de 1981 e 1991 (...) tendo em conta a depreciação monetária, enquanto a Relação não considera tal elemento. É este o tema do recurso'. E acrescentou-se que:
'não pode (...) ver-se na restituição proveniente da nulidade do negócio uma repetição do indevido (...), pelo que a prestação a restituir em virtude da declaração da nulidade do negócio não pode ser actualizada (v. também 2ª parte do n.º 1 do art.º 289º). O acórdão recorrido escolheu, pois, a solução correcta, cabendo, porém, neste momento dizer apenas que, por mero lapso, se não abateu o montante de 1.952.854$00, valor de medicamentos e produtos entregues ao Autor, pelo que restará a quantia de 11.378.330$00.'.
Decidiu-se, então, conceder em parte a revista, condenando-se o Réu, no que diz respeito ao objecto do recurso, não na quantia de 13.331.184$00, mas na de
11.378.330$00.
6. B. S. interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 673º do Código de Processo Civil, por violação do princípio constitucional da protecção da confiança. O recurso foi admitido por despacho de fls. 415 do processo.
7. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações. O recorrente B. S. concluiu assim as suas alegações:
'a) Correu em Chaves a acção n.º 19/89, que foi decidida, com trânsito em julgado, nos termos que constam de fls. 5 e ss.; b) Tal decisão constitui caso julgado, nos precisos limites e termos em que julga, como estipula o art. 673º do C.P.C.; c) Nessa decisão o então R. e ora recorrido foi condenado ao seguinte:
'a restituir imediatamente ao A. aquela farmácia e com uma existência de medicamentos e demais produtos farmacêuticos de qualidade e valor equivalente ao que resulta do inventário, valor esse do montante de 1.925.854$00 ou a indemnizá-lo pelo valor que restitua a menos, valor esse a apurar em liquidação de sentença'; d) Porém, a decisão ora recorrida, tal como a Relação, permitiu-se julgar sem ter em conta o enquadramento já definido pela decisão judicial anterior transitada em julgado, quantificando o montante a pagar pelo recorrente sem considerar os limites e os termos daquela decisão; e) O entendimento implícito feito pelo S.T.J., tal como pela Relação, do art.
673º do C.P.C., segundo o qual o caso julgado não abrangeria matéria já decidida desde que a mesma careça de apuramento ou quantificação posteriores, viola o princípio constitucional da protecção da confiança, que compreende o respeito integral pelo caso julgado;
(...)'.
Por sua vez, o recorrido F. B. disse:
' (...)
3ª - Fixado que foi o valor a restituir em 1.952.854$00, sem recurso, o ora recorrido, ao entregar a farmácia ao recorrente, em 15/5/91, com uma existência de medicamentos e produtos farmacêuticos com o valor global líquido de
9.031.590$00 (...), abateu aquela importância a este valor, e veio exigir o excedente, na presente acção.
4ª - E é só nesta acção que o M.º Juiz da 1ª instância, na douta sentença de
22/5/95, veio quantificar o aludido valor de 1.952.854$00, alterando assim o que já estava decidido com trânsito em julgado.
5ª - Só que nem a Relação, nem o Supremo Tribunal deram acolhimento a tal alteração, mantendo os 1.952.854$00 exactamente como tinham sido fixados (...).
6ª - De resto, nunca os ditos 1.952.854$00 poderiam ser alterados ou actualizados, já que, para além do invocado trânsito em julgado, acontece que se tratava duma restituição fundada em nulidade dum contrato de promessa, e por isso, e por ser tudo (além da farmácia) o que havia a restituir, insusceptível de qualquer alteração ou actualização, como decorre do art. 289º do Cód. Civil.
7ª - Tendo, pois, o Supremo Tribunal – tal como o fizera a Relação – julgado em perfeito enquadramento com a decisão anterior, consubstanciada na aludida douta sentença de 14/12/89, respeitou inteiramente o caso julgado. E assim,
8ª - Não violou o princípio constitucional da protecção da confiança, como quer o recorrente.
(...)'.
Na sequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
8. Nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, foi notificado ao recorrente o parecer em que a relatora propunha que o Tribunal Constitucional não tomasse conhecimento do recurso, pelos seguintes fundamentos:
' Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
- que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de uma norma (ou de uma determinada interpretação de uma norma);
- que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade. O recorrente submete ao julgamento do Tribunal Constitucional a norma constante do artigo 673º do Código de Processo Civil.
É o seguinte o teor da norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada:
'Artigo 673º
(Alcance do caso julgado) A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.' O recorrente pretende todavia que o Tribunal Constitucional aprecie a norma transcrita numa determinada dimensão normativa, pois entende que tal norma é inconstitucional no 'entendimento implícito efectuado pelo S.T.J, tal como pela Relação (...), segundo o qual o caso julgado não abrangeria matéria já decidida desde que a mesma careça de apuramento ou quantificação posteriores (...)', por tal entendimento violar o princípio constitucional da protecção da confiança, que compreende o respeito integral pelo caso julgado (cfr. requerimento de interposição do recurso, a fls. 412 do processo). O primeiro pressuposto do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional encontra-se, no presente caso, preenchido. Efectivamente, o recorrente suscitou, nas alegações apresentadas junto do Supremo Tribunal de Justiça, a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação da norma constante do artigo 673º do Código de Processo Civil. Vejamos agora se o segundo pressuposto do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o de que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade – se encontra preenchido. No tribunal recorrido, e como se referiu, estava em causa a questão de saber se a quantia a pagar pelo Réu ao Autor, correspondente à diferença de valores entre os bens deixados por aquele a este em 1981 (valor líquido de 1.952.854$00, segundo o inventário desta data) e os bens devolvidos por este àquele em 1991
(valor líquido de 9.031.590$00, segundo o inventário desta data, ao qual se teria de descontar o valor de 1.222.309$00, relativo aos medicamentos sem etiqueta ou deteriorados), devia ser calculada atendendo à depreciação monetária. Para responder a esta questão, o tribunal recorrido aplicou a norma constante do n.º 1 do artigo 289º do Código Civil, nos termos da qual 'tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente'. Aplicando esta norma, o tribunal entendeu que a prestação a restituir pelo Réu ao Autor, por força da declaração de nulidade do contrato de trespasse verbal celebrado por ambos em Abril de 1981, não podia ser actualizada. Ou, dito de outro modo, entendeu que o valor líquido correspondente aos bens deixados pelo Réu na Farmácia S... – e que era, à data de 1981, de 1.952.854$00 – não podia ser actualizado à data de 1991, data esta em que foi feito o inventário dos bens devolvidos pelo Autor ao Réu. Assim sendo, o tribunal condenou o Réu no pagamento de uma quantia correspondente à diferença entre valores líquidos obtidos em momentos diferentes (1981 e 1991). Em vão se procura no acórdão recorrido alguma referência ao alcance do caso julgado constituído pela sentença de 14 de Dezembro de 1989, na medida em que a questão a decidir foi expressamente resolvida por aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 289º do Código Civil e não por aplicação do disposto no artigo 673º do Código de Processo Civil. Todavia, e como atrás se referiu, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade de uma dada interpretação desta última norma (a do artigo 673º do Código de Processo Civil), interpretação essa que estaria implícita no acórdão recorrido. Lê-se nas alegações apresentadas pelo recorrente junto do Tribunal Constitucional, de que salientamos as passagens mais significativas para o que aqui interessa:
'O ora recorrido não foi condenado [na sentença de 14 de Dezembro de 1989] numa pura obrigação pecuniária, mas sim na obrigação de reconstituir uma existência de produtos de valor e qualidade equivalentes às que existiam em 1981. Entregue a farmácia em 1991, havia então que apurar se os bens existentes na farmácia em
1991 correspondiam em valor e qualidade aos que existiam em 1981. (...) Ora, a decisão da Relação objecto de recurso para o Supremo Tribunal – ao rediscutir os efeitos da nulidade do contrato-promessa apreciados na acção de 1989 – ofendeu o caso julgado. Independentemente da bondade da tese segundo a qual, nulo um contrato, há que restituir o que se recebeu em singelo, tal qual, sem considerar sequer a depreciação monetária, o certo é que esse problema, neste segmento, já fora julgado noutra acção. E nessa outra acção, que fez caso julgado, foi decidido que o ora recorrido tinha de restituir a farmácia ao recorrente com uma existência de valor e qualidade equivalentes à existência de 1981. Este dado não podia agora, nesta acção, ser revisto. (...) Ainda que não expressamente, o certo é que, de forma implícita, a Relação interpretava e aplicava o art. 673º do C.P.C., de forma a considerar que o caso julgado não abrangeria matéria já decidida desde que a mesma carecesse de algum apuramento ou quantificação posterior, como aqui acontece. (...) O Supremo Tribunal não se pronunciou expressamente sobre este tema, o que significa que, implicitamente, continuou a perfilhar o entendimento da Relação que acima se refere.' Ora, do acórdão recorrido não decorre qualquer entendimento, explícito ou implícito, segundo o qual o caso julgado não abrangeria matéria já decidida, desde que a mesma carecesse de algum apuramento ou quantificação posterior. E isto pela simples razão de que, no acórdão recorrido, não se considera que – e para utilizar a expressão do recorrente – a matéria já decidida (no caso, a constante da sentença de 14 de Dezembro de 1989) esteja carecida de qualquer apuramento ou quantificação posterior. Se bem se reparar, o recorrente alicerça a sua argumentação na interpretação que faz de uma certa passagem da sentença de 14 de Dezembro de 1989, já transitada, e que aliás transcreve várias vezes de modo incompleto. De acordo com a interpretação que faz, nessa sentença ter-se-ia condenado o ora recorrido, não numa pura obrigação pecuniária, mas numa obrigação de reconstituir uma existência de produtos de valor e qualidade equivalentes à existência de 1981. E seria por isso necessário fazer o respectivo apuramento ou quantificação exactos em momento posterior, através do recurso a um qualquer critério que permitisse estabelecer tal equivalência. No acórdão recorrido, porém, não se fez tal interpretação dessa passagem da sentença de 14 de Dezembro de 1989. O Supremo Tribunal de Justiça apenas se limitou a considerar provado que, naquela sentença, 'condenou-se o aí Réu, e aqui Autor, a restituir imediatamente essa farmácia ao Autor, e aqui Réu, com uma existência de medicamentos e demais produtos farmacêuticos de valor correspondente a 1.952.854$00 ou a indemnizá-lo pelo valor do que restitua a menos'. E a única questão que analisou foi a de saber se esse valor de
1.952.854$00 que havia sido fixado na sentença devia ser actualizado. Desse modo de análise do problema depreende-se que, para o tribunal recorrido, a sentença transitada em julgado não havia condenado o então Réu e agora recorrido a apenas
'reconstituir uma existência de produtos de valor e qualidade equivalentes às que existiam em 1981', como diz o recorrente, mas a reconstituir essa existência com um certo valor, que logo fixou. Na medida em que, na sua análise do problema, o tribunal recorrido se centrou na questão da actualização daquele valor de 1.952.854$00, conclui-se que não concebeu a matéria decidida na sentença de 14 de Dezembro de 1989 como matéria carecida de algum apuramento ou quantificação posterior. Concebeu, sim, tal matéria como já apurada ou quantificada, para usar as palavras do recorrente. De resto – e usando novamente um argumento do recorrente, desta vez aquele segundo o qual, ao não se ter pronunciado sobre um tema por si suscitado, o Supremo Tribunal de Justiça continuaria implicitamente a perfilhar o entendimento da Relação –, sempre se poderá dizer que tão nítido é o enfoque dado ao valor fixado (ou à quantificação feita) na sentença transitada que no acórdão do Tribunal da Relação se diz claramente que a eventual actualização do montante de 1.952.854$00 'poderia violar o caso julgado que em tal sede terá sido formado pela sentença proferida em 14 de Dezembro de 1989 – art.º 671º n.º
1 do Cód. de Proc. Civil'. Verifica-se, assim, que o acórdão recorrido não aplicou a norma constante do artigo 673º do Código de Processo Civil, no entendimento implícito apontado pelo recorrente, uma vez que nem sequer considerou, explícita ou implicitamente, estarem reunidos os pressupostos fácticos da aplicação de tal norma com esse entendimento. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, conclui-se que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do presente recurso, por não se encontrar verificado um dos pressupostos estabelecidos pelo artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.'.
9. Respondeu o recorrente, reiterando que, perante a decisão da sentença de 14 de Dezembro de 1989, '(...) não se pode colocar qualquer dúvida de que o ora recorrido não foi condenado numa pura obrigação pecuniária, mas sim na obrigação de reconstituir uma existência de produtos de valor e qualidade equivalentes aos que existiam em 1981' (4º).
Acrescentou, em síntese, que:
· 'O S.T.J., na decisão recorrida, não fez, ao contrário do que diz a Exma Relatora, qualquer interpretação da passagem que ora releva da sentença de
1989, limitando-se a reproduzir, de forma incompleta e truncada, as partes dessa sentença que estão em causa (...)' (12º);
· 'Limitou-se a ignorar um dos seus segmentos fundamentais, pela única e exclusiva razão de que não concordava com a solução de direito adoptada na primeira acção' (14º);
· '(...) isso tem implícito – o que significa que não precisa de ter sido exteriorizado e expresso – o entendimento acima referido a propósito do art. 673º do C.P.C.' (18º).
10. Notificado também para se pronunciar sobre o parecer da relatora, o recorrido não respondeu.
II
11. A resposta do recorrente não abalou a exposição-parecer da relatora.
O recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto a apreciação de norma que tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Ora, e como se explicou, a norma constante do artigo 673º do Código de Processo Civil, no entendimento implícito apontado pelo recorrente, só poderia ter sido aplicada na decisão recorrida se, nesta mesma decisão, se tivesse concebido a matéria decidida na sentença transitada (de 14 de Dezembro de 1989) como matéria carecida de algum apuramento ou quantificação posterior. O que, como também se explicou, não sucedeu. Alega o recorrente que a decisão recorrida não procedeu sequer a qualquer interpretação da sentença transitada, limitando-se a ignorar um dos seus segmentos fundamentais. Simplesmente, ao Tribunal Constitucional não compete determinar se, do texto dessa sentença, resulta, ou não resulta, que o ora recorrido foi condenado numa pura obrigação pecuniária. Ou, dito de outro modo, ao Tribunal Constitucional não compete determinar os termos e os limites em que essa sentença transitada julgou, estabelecendo o alcance do caso julgado por ela constituído à luz do disposto no artigo 673º do Código de Processo Civil. A interpretação, por este Tribunal, da sentença transitada, além de arvorar a apreciação do texto da sentença transitada em objecto de recurso de constitucionalidade – o que, de modo nenhum, se enquadra na previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional –, redundaria ainda num controlo da legalidade (ou conformidade constitucional) da própria decisão recorrida (isto é, numa avaliação do cumprimento, pela decisão recorrida, dos termos e limites a que alude o artigo 673º do Código de Processo Civil ). Tal controlo, manifestamente, também não pode constituir objecto do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Arredada que estava a possibilidade de fixação, pelo Tribunal Constitucional, dos termos e limites em que julgou a sentença transitada, bem como a possibilidade de controlo da legalidade e conformidade constitucional da decisão recorrida, restava-lhe, no presente caso, verificar se a decisão recorrida aplicou a norma constante do artigo 673º do Código de Processo Civil, no entendimento implícito apontado pelo recorrente. O que, como foi demonstrado, não sucedeu.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida