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Proc. nº 575/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã foi a ora recorrente, M..., condenada na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 800$00, pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º do Código Penal. Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado pelo assistente Manuel Correia de Oliveira e, em consequência, foi a arguida, ora recorrente, condenada a pagar-lhe a quantia de 5.000$00, a título de danos patrimoniais.
2 – Inconformada com o teor desta decisão a recorrente pretendeu recorrer para o Tribunal da Relação de Coimbra, recurso que não foi admitido com base na seguinte fundamentação:
'(...). Sucede que a recorrente limita a impugnação, através deste recurso, apenas à parte da decisão relativa à condenação no pagamento da indemnização civil – fls.
122 -. E o montante condenatório é apenas de 5.000$00 (cinco mil escudos), quantia esta inferior a metade da alçada do Tribunal recorrido. Acordamos, nestes termos, em não admitir o recurso interposto, que deve ser rejeitado – art.s 400º, nº 2, e 419º, nº 4, al. a), ambos do CP Civil'.
3 – Desta decisão reclamou a arguida, reclamação que foi rejeitada pelo acórdão de 9 de Junho de 1999 que, para tanto, se apoiou na seguinte fundamentação:
'Estabelece o art. 403º, nº 1 do CP Penal a liberdade de o recorrente limitar o recurso a parte da decisão desde que haja autonomia entre elas e mais refere que
«é nomeadamente autónoma a parte da decisão que se referir a matéria penal relativamente àquela que se referir a matéria civil» - cf. seu nº 2 a). Ora, foi precisamente desta faculdade que a recorrente se socorreu dizendo que
«não se conformando com a douta sentença na parte em que a condenou ... no pagamento de indemnização civil dela interpõe recurso delimitado apenas a esta parte da decisão nos termos do art. 403º, nº 1 do C.P. Penal...». Como assim, não pode vir agora dizer que foi seu intuito recorrer da decisão in totum como decorre da motivação e das conclusões do recurso. Indefere-se, nestes termos, o requerimento'.
4 – É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso. Pretende a recorrente, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade do art. 403º, nº 1 do Código de Processo Penal, na interpretação que dele fez a decisão recorrida, por alegada violação do artigo
32º, nº 1 da Constituição.
5 – Recebido o recurso foi a recorrente notificada, por despacho do relator, para 'indicar a interpretação da norma contida no art. 403º, nº 1 do Código de Processo penal que considera inconstitucional'.
6 – Em resposta à solicitação do relator a recorrente apresentou o requerimento de fls. 153 a 156 dos autos.
7 – Notificada para alegar, o que fez, a recorrente concluiu da seguinte forma:
'1. No Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã foi proferida sentença em processo criminal, que absolveu a arguida dos crimes de injúrias e que a condenou no crime de danos e respectiva indemnização.
2. a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra da parte da sentença que a condenou. Por isso logo na sua interposição diz «... não se conformando com a douta sentença na parte em que a condenou pelo crime de danos p.p. pelo art. 212º, 1 do Código Penal e a condenou no pagamento de indemnização civil nos termos do art. 403º, nº 1 do C.P. Penal...». Note-se que não indicou o nº 2 do mesmo artigo.
3. No início da motivação pede a absolvição também do crime de danos (nem sequer ali pede a absolvição do pedido civil). Todas as conclusões dizem respeito ao crime de danos. Máxime na 11ª conclusão que é a última, volta a pedir a absolvição do crime de danos.
4. No entanto a relação entendeu que apenas recorreu da condenação no pagamento de 5.000$00 ao ofendido. Espantada a recorrente apresentou reclamação e a Relação desatendeu-a. Ficou assim sem possibilidade de recurso ordinário para os tribunais.
5. Conforme o art. 280º da CRP o art. 70º, nº 1, b) da LTC o pressuposto de aplicação de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, verifica-se no entanto, por a inconstitucionalidade se ter verificado de forma imprevisível e não a ter podido suscitar antes.
6. Também se verifica o pressuposto da não possibilidade de recurso ordinário conforme conclusão 4ª e art. 70º, 3 da LTC.
7. O Tribunal da Relação de Coimbra ao negar-lhe o direito do recurso penal interposto, aplicou e interpretou a disposição do art. 403º, nº 1 do CPP de forma a violar o direito que a CR lhe garante na parte final do nº 1 do art.
32º.
8. Inclusivamente violou o direito fundamental do acesso aos Tribunais, art.
20º, nº 1 CR, isto é, o direito a ser julgada por Tribunal art. 17º e 202º também da CRP.
9. No conjunto dos direitos violados a recorrente ficou privada de ver a sua causa julgada em 2ª instância, e foi afastada de lhe ser aplicada justiça pelos nossos tribunais.
10. Ora conforme disposições citadas, o acórdão da Relação de Coimbra com a interpretação e aplicação que fez do nº 1 do art. 403º do CPP, violou as disposições constitucionais identificadas'.
8 – O Ministério Público produziu igualmente alegações, tendo concluído que:
'1 – Não compete ao Tribunal Constitucional, em recurso de fiscalização concreta, sindicar o modo como o tribunal «a quo» interpretou os termos do requerimento de interposição do recurso para a Relação pelo arguido, considerando – face ao teor do respectivo «cabeçalho» - que aquele apenas pretendia impugnar uma parcela da decisão condenatória, proferida em 1ª instância.
2 – Na verdade, tal questão não incide sobre normas ou interpretações normativas, não constituindo objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade, pelo que não deverá conhecer-se do recurso interposto'.
9 – Notificada a recorrente para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio a mesma aos autos para sustentar a sua improcedência.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
10 – Questão prévia: pressupostos de admissibilidade do recurso. Sustenta o Ministério Público que a recorrente não coloca ao Tribunal Constitucional qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de ser objecto do recurso que pretendeu interpor, antes imputando a inconstitucionalidade à interpretação que o Tribunal da Relação fez dos termos do seu requerimento de interposição do recurso da decisão proferida, em 1ª instância, pelo Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã. A ser assim, faltará efectivamente um dos pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, tem por objecto exclusivo a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas. Vejamos. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (fls. 149 dos autos) a recorrente limita o objecto do recurso 'à interpretação inconstitucional dada ao art. 403º, nº 1 do C. P. Penal, de que resultou a negação do direito ao recurso'. Notificada pelo Relator para indicar a 'interpretação da norma contida no artigo
403º, nº 1, do Código de Processo Penal, que considera inconstitucional' a recorrente apresentou o requerimento de fls. 153 a 156 dos autos. Verifica-se, porém, que a recorrente não foi capaz de identificar aí uma norma – ou interpretação normativa – susceptível de constituir objecto do recurso de constitucionalidade, limitando-se a procurar demonstrar a incorrecção da interpretação que o Tribunal da Relação fez dos termos do seu requerimento de interposição do recurso. Como este Tribunal tem afirmado repetidamente nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. Ora, é manifesto que a recorrente não enunciou na resposta à solicitação do Relator para que identificasse a interpretação normativa do art. 403º, nº 1 que considera inconstitucional, nos termos antes expostos, o sentido normativo do artigo 403º, nº 1, do CPP que considera inconstitucional, limitando-se, como já se referiu, a procurar demonstrar a incorrecção da interpretação que o Tribunal da Relação fez dos termos do seu requerimento de interposição do recurso. Ora, tal interpretação, não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, que tem, nesta matéria, a sua competência limitada à apreciação de questões de constitucionalidade normativa. Em face do exposto, não pode efectivamente conhecer-se do objecto do recurso, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilida.
III – Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 11 de Outubro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida